quinta-feira, 28 de maio de 2015

Os opositores da decadência romana. Oitava leitura: "Meditações", de Marco Aurélio

CARPEAUX havia dito que, com Horácio e Virgílio, acabaram-se as tentativas de poesia de interesse coletivo, ou seja, que desde então, toda a literatura romana está na oposição individualista, com certa resignação estóica, de uma gente culta que se põe sempre contra o despotismo dos Césares. Isto, segundo ele, não é um fenômeno meramente transitório, mas exprime o caráter íntimo da literatura romana, que quase nunca acreditou seriamente na possibilidade de penetrar na realidade hostil, e que acabou retirando-se para uma região na qual se fundem individualismo, intelectualismo, temperamento elegíaco e resignação estoica. São esses traços, portanto – ao menos para CARPEAUX –, a essência mesma de uma “última fase” agonizante da literatura romana.

A seguir, CARPEAUX comenta uma série de retóricos, poetas, prosadores, biógrafos e historiadores – literatos romanos “da última hora”, que exemplificam, de uma forma ou de outra, o diagnóstico que deu acima; seriam como que os opositores da decadência. Resumindo um pouco as análises, temos o seguinte:

“O sentido político da oposição está claro em Lucano, que morreu como conspirador contra Nero. A Farsália é hoje pouco lida; já não se leem as epopeias históricas, e certos manuais chegam a considerar Lucano como sucessor fraquíssimo de Virgílio. Nada mais errado. Apesar da diferença dos temperamentos, é Lucano de uma originalidade absoluta; foi o primeiro poeta que pensou em basear uma epopeia em acontecimentos históricos, até em acontecimentos do passado imediato. Lucano descreve [...] o fim da República Romana. O assunto histórico-político implica o abandono do aparelho mitológico: nesse sentido a Farsália é uma criação sui generis na literatura universal; nem Voltaire teve essa coragem. E Lucano é corajoso. Ousa tomar atitude contra o César, opondo-se ao consenso do mundo e dos séculos. [...] É um poeta da grande cólera, como poucos na literatura universal, um satírico vigoroso, um mestre do desprezo altivo. A indignação moral e a coragem política têm raízes no seu credo estoico. Lucano é o primeiro estoico autêntico da literatura romana – daí a sua linguagem violenta”.

Sêneca é homem da ação também; mas a situação da ‘opposition sous les Césars’ explica bem que na sua vida a atividade literária e a atividade política estejam separadas, encontrando-se só no final, quando o político obedeceu ao conselho do literato estoico, suicidando-se. Dentro da sua atividade literária existe separação semelhante: entre os escritos filosóficos e as tragédias. Estas, as únicas tragédias romanas que subsistem, são obras de epígono; versões fortemente retóricas de peças gregas, substituindo a vida dramática por efeitos brutais, assassínios no palco, aparições de espectros vingadores, discursos violentos, cheios de brilhantes lugares-comuns filosóficos; até nas situações mais trágicas as personagens soltam trocadilhos espirituosos, de ironia cruel.

O filósofo Sêneca é como se fosse outra pessoa. Escreve em estilo coloquial, embora com energia apaixonada, violando a sintaxe, acumulando as elipses. A moral que recomenda ao seu correspondente Lucílio [...] é o estoicismo. Mas Sêneca está longe da imperturbabilidade estoica que professa. Está possuído pela imagem da morte que em toda a parte o espia, e a recomendação permanente do suicídio, como saída definitiva [...] é menos evasão do que tentativa de vencer a morte pela própria morte. Qualquer oportunidade de ‘sair’ vale como caminho da liberdade.

Em face dessa moral do suicídio, não se compreende bem como tantos séculos puderam acreditar no cristianismo clandestino de Sêneca, inventando até um encontro dele com o apóstolo Paulo. Na verdade, Sêneca não foi influenciado pela religião cristã; foi, muito ao contrário, o cristianismo, em sua atitude ética, que foi profundamente influenciado pelo estoicismo de Sêneca, transformando porém o suicídio em martírio. O que Sêneca tinha em comum com os cristãos da Igreja primitiva era a angústia. A mesma angústia que invade as suas tragédias, alterando completamente o espírito dos seus modelos gregos, transformando-os em quadros grandiosos de tirania sangrenta, medo, pânico e terror sinistro.

A filosofia estoica de Sêneca é uma tentativa, apaixonada porque infrutífera, de vencer a angústia, que se exprime nas suas tragédias. Sêneca, como filósofo, está convencido da possibilidade de vencer o terror pela elevação espiritual [...]. Sêneca, como poeta, sabe o mundo povoado de demônios e de almas decadentes, já incapazes de resistir. Em versos notáveis anuncia a ‘última decadência dos tempos’, e a necessidade de morrer, sem temores, com este mundo”.

“[N]a sátira de Petrônio, sátira sem moralismo, [...] o satírico participa da moral do seu ambiente: novos-ricos, pederastas, parasitos, levando uma vida devassa em bordéis e estações de águas. [...] As intenções de Petrônio não são muito puras; parece que pretendeu ridicularizar a oposição burguesa e intelectual para agradar a Nero. Nós, porém, não temos motivos para acusá-lo de calúnia nem para indignar-nos com a licenciosidade das suas expressões. O ambiente de Petrônio é o das nossas capitais, da nossa ‘alta sociedade’. Apenas somos nós que nem sempre temos a coragem de dizer a verdade com o realismo do romano, nem a capacidade de exprimi-la com o seu riso espirituoso. A obra de Petrônio é de estranha e alegre atualidade. Se a obra completa de Petrônio fosse conservada, apareceria ele, talvez, maior do que os poetas da sua época. E dessa época poucos restam”.

“Somente no século II, quando o pesadelo do despotismo era desaparecido e a oposição política se tornara dispensável, é que os conformistas cínicos ou ingênuos desaparecem também; e surge, então, outra oposição mais radical. Em Juvenal, chega quase à força de expressão profética. Juvenal trata, nas suas 16 sátiras, os assuntos de Horácio: hipócritas devassos (sát. II), loquazes importunos na rua (III), efeminação dos ricos (IV), lascívia das mulheres (VI), literatos ridículos (VII), caçadores de heranças (IX), métodos errados de educar os filhos (XIV), orgulho dos militares (XV). Mas Juvenal não tem nada de Horácio; ou antes, Horácio não tem nada de Juvenal. Este estoico duro só pretende dizer a verdade, e neste afã encontra as palavras mais justas, mais definitivas. ‘Si natura negat, facit indignatio versum’; e a indignação não lhe negou as expressões de um profeta bíblico. Como um Amós ou um Jeremias, Juvenal sentou-se no alto da colina e viu a massa brutalizada, enfurecida pelas paixões mais baixas, dançando e gritando sem perceber a tempestade que se aproximava. Roma apresentou-se ao seu espírito excitado como um grande quadro histórico do século XIX, de Couture: uma aurora terrível, iluminando a sala cheia de mulheres embriagadas, homens esgotados, o vinho derramado por toda a parte. E Juvenal gritou – não contra o déspota, como o haviam feito Lucano e os intelectuais, mas contra a sociedade inteira. Juvenal é um tribuno irritado – se bem que apolítico –, um panfletista de eloquência torrencial e sem requintes poéticos, um profeta dos subúrbios de Roma, a voz da consciência romana. Os seus versos aliás fariam melhor figura em linhas de prosa”.

“[Q]uanto ao prosador Suetônio; é verdade que [em A vida dos doze Césares] ele conta os crimes horrorosos de um Tibério, de um Calígula, de um Nero, de um Domiciano, com a frieza de um autor de relatórios oficiais; então, crueldade e infâmia ressaltam tanto mais quanto os horrores são apresentados como as coisas mais naturais do mundo. Mas Suetônio, sem vontade de mentir, nem sempre disse a verdade. Caluniou Tibério, porque não entendeu nada da tragédia psicológica do imperador traído, e quem sabe quantas vezes Suetônio só notou a maledicência e as calúnias de cortesãos preteridos. Uma larga credulidade plebeia e a vontade de atribuir tudo aos ‘ricos’ [que] também se encontram em Juvenal”.

“Cumpre não esquecer que a literatura romana é de oposição sistemática. É uma literatura de elegíacos e satíricos, de invidualistas. Só assim se compreende a atitude de Tácito. Este grande romano foi interpretado pela posteridade como ele pretendeu ser interpretado: como advogado destemido da nação mais nobre contra a tirania mais infame. Mas não é tanto assim; e Tácito nos deixou um documento, escrito na mocidade, no qual revela os seus verdadeiros motivos. O Dialogus de Oratoribus, sive de causis corruptae eloquentiae, é uma conversa entre quatro advogados sobre a decadência da retórica romana: atribuem a responsabilidade dessa decadência aos métodos pedagógicos errados, ao mau gosto literário, à servidão política. Roma, é a conclusão, está em decadência irremediável, e a eloquência afunda-se com a cidade; é melhor deixar a prosa e retirar-se para a poesia. O estranho, no caso, é que Tácito não obedeceu ao próprio conselho. A decadência continuou assunto principal da sua atividade literária – mas sempre em prosa. Parece aristocrata, mas na sua época já não havia aristocracia; o despotismo nivelara tudo. Tácito é burguês e intelectual, preocupado com a decadência da retórica. É um moderado. A sua oposição é mais moral do que política; e por isso é oposição sistemática. [O] problema psicológico está no próprio autor e chama-se: o comportamento do indivíduo livre em face da tirania e do aviltamento geral. Tácito resolveu o problema pelas expressões do pessimismo mais profundo, e foi injusto: esqueceu que a sua época produzira um Tácito”.

Como parêntese, CARPEAUX faz um brilhante comentário sobre os escritores satíricos:

“No exagero profissional dos satíricos existe uma contradição: são pessimistas sistemáticos, acreditando na maldade permanente da natureza humana, e, por outro lado, são pessimistas imperfeitos, convencidos de que o homem é melhor em outras partes – na Germânia, de Tácito – ou que o homem foi melhor nos bons velhos tempos – na República, de Juvenal; só na própria época e na própria cidade do satírico a corrupção é enorme, a catástrofe iminente. É por força dessa contradição que o satírico tem razão de modo geral e é desmentido pelos fatos particulares”.

Luciano, natural de Samosata, na Mesopotâmia, é um jornalista [...]. Num diálogo seu, Deorum concilium, os deuses olímpicos, reunidos em conselho de emergência, deliberam providências contra a concorrência desleal dos deuses asiáticos importados. O próprio Luciano é produto de importação asiática. Não entende realmente a civilização grega, da qual se serve como os parasitos se servem da capa de filósofo. [...] No Somnium, diálogo autobiográfico, conta como lhe apareceram, em sonho, duas deusas, propondo-lhe rumos diferentes na sua carreira, e como ele abandonou a deusa da escultura para seguir a da ‘retórica’, quer dizer, a literatura e o jornalismo. Para isso, era mister tornar-se ‘filósofo’. Mas se os filósofos são todos uns charlatães? É porque o mundo, sob a lua, não é mais moral nem mais inteligente do que o Olimpo; quer ser enganado pelos falsos ‘intelectuais’ que se vendem a preço baixo – aparecem assim em De mercede conducti, autorretrato involuntário de Luciano.

O mundo de Luciano é um caos espiritual. O ecletismo filosófico de Plutarco, transformado em mercado de opiniões. O céu de Píndaro, transformado em Olimpo de Offenbach, de opereta. Tudo está de cabeça para baixo, revelando as suas vergonhas e ridículos. Visto do Hades (Menippus, Mortuorum dialogi) ou da Lua (Icaromenippus), o nosso mundo é um manicômio. Luciano é um grande humorista: Erasmo, Rabelais, Swift, Voltaire encontram nesse grego falsificado as melhores inspirações. Mas não é um satírico, porque não conhece critério moral. Não compreende aquilo de que zomba. Dá-se ares de Anti-Homero, mas não passa de animador de um show humorístico na qual homens e deuses dançam o último cancã do mundo greco-romano”.

“[O] romance Metamorphoseon seu Asinus aureus, de Apuleio, [...] é um panorama completo da época. [...] O romance parece autobiográfico, com as suas aventuras lascivas e vicissitudes de literato viajante, embora a insinceridade inata de Apuleio e a sua habilidade de narrador não permitam distinguir realidade e ficção, nem na sua ficção nem na sua vida. [...] Apuleio é um grande literato. É maior do que Luciano, porque tem um estilo próprio. Escreve um latim meio requintado, meio bárbaro, em que se misturam as frases feitas da escola retórica, as elegâncias do jornalismo grego, as fórmulas místicas do Oriente e a linguagem violenta de Tertuliano. É uma figura da época: o literato desarraigado que encontra a solução das suas angústias nos arrepios místicos do Oriente”.

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Depois de tantos nomes e tanta oposição “sistemática”, surgem aqueles que CARPEAUX considera, esses sim, “os últimos romanos”: Marco Aurélio e Boécio. Quanto ao primeiro, CARPEAUX nos diz:

“Existem vários autores de língua latina aos quais a posteridade conferiu o título honroso de ‘o último dos romanos’. Na verdade, no processo vagaroso da decomposição apareceram muitos ‘últimos romanos’ – o ‘realmente último’ será Boécio – mas o primeiro entre eles foi um grego: o imperador romano e escritor grego Marco Aurélio.

O imperador, educado por filósofos estoicos, era homem de ação e escritor ao mesmo tempo. Filósofo introspectivo e defensor corajoso das fronteiras setentrionais do Império contra os bárbaros. Morreu onde fica hoje a cidade de Viena, e em Roma erigiram-lhe uma estátua, a primeira estátua equestre de um imperador; passado não muito tempo, o monumento verá transformado o bairro de Latrão em ninho de malária e de ladrões. Tudo, no destino de Marco Aurélio, é paradoxo: o homem de ação por desespero, e escritor por firme resolução; sendo o último dos grandes individualistas romanos, anota os movimentos da sua alma solitária em língua grega. Mas, como ele dizia, ‘tudo o que te acontecerá estava preestabelecido assim, desde o começo, e a cadeia das coisas ligava firmemente a tua existência e o teu destino’.

Assim fala um estoico, cheio de fé na providência, ‘cujos germes se encontram em toda a parte’. Mas a doutrina estoica do ‘Sentido’, espalhado em germes por toda a parte, serve ao imperador romano, não para construir um universo ideal, e sim para justificar a própria existência de indivíduo isolado. Mas Marco Aurélio é romano; quer dizer, quando pensa, não escapa à trivialidade do lugar-comum. Mas dá testemunho de que, no fim da história romana, até o imperador se encontra sozinho em face da realidade impenetrável. E ela aparece-lhe na figura da Morte. O livro inteiro das Meditações foi escrito para afugentar a obsessão desse homem poderoso com a ideia da morte. A ideia estoica da coesão na Natureza, do determinismo razoável que rege tudo, não lhe serve para aprender a viver, e sim a morrer. Ao contrário do que muitas vezes se pensava, Marco Aurélio, que fez mártires, nada tem de cristão; o que o faz parecer cristão é a clemência meio indiferente de uma melancolia que ele sabe nada adiantar. Marco Aurélio soube exprimir esse pensamento banal em mil fórmulas, cada vez mais impressionantes, que fizeram do seu livro um breviário para os velhos, durante séculos a fio; a sua eloquência simples e convincente de uma ideia fixa revela a sinceridade de um grande poeta”.

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Na pasta de arquivos online, consta um PDF das "Meditações", de Marco Aurélio:
https://www.dropbox.com/home/Grupo%20de%20Estudo%20e%20Leitura%20dos%20Cl%C3%A1ssicos

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