Falando
rapidamente dos três primeiros poetas romanos dignos de nota, Catulo, Propércio
e Tibulo, os comentários de CARPEAUX podem se resumir no seguinte:
“Catulo é um poeta muito humano. A ele
também, nada de humano foi alheio [...]. Catulo é, no primeiro século antes da
nossa era, um poeta moderno. É, entre os poetas, o primeiro que se comove com a
paisagem. [...] Dos outros elegíacos romanos, só Propércio se compara um tanto a ele. A imitação dos modelos gregos
sufoca-o. É um decadente. Complica os assuntos com multidão de alusões mitológicas,
perde-se em confusões sintáticas; a sua linguagem é a mais obscura e difícil de
todos os poetas romanos. [...] Propércio é artista; menos nas tentativas de
solenes elegias patrióticas [...] do que na música extraordinária das suas
palavras. [...] Enfim, quanto a Tibulo,
é forçoso confessar que não somos capazes de formar uma ideia bem clara da sua
poesia. [...] É confuso como Propércio, mas muito mais suave [...]. Tibulo é,
entre os elegíacos, o mais elegíaco”.
“A injustiça evidente da preferência
dada a Tibulo explica-se pela modificação semântica que a acepção da palavra elegia sofreu. Propércio é
elegíaco; mas não é ‘elegíaco’ sentimental. Com mau gosto infalível, a posteridade
elegeu Ovídio, o mais sentimental entre os elegíacos romanos, excessivamente
sentimental porque desiludido pela própria fraqueza, e conferiu-lhe uma glória
póstuma sem par. ‘Sentimentalismo é sentimento, comprado abaixo do preço’ – a frase
de Meredith aplica-se bem a Ovídio”.
***
Quanto
a Ovídio, CARPEAUX diz:
“A
diversidade das suas obras revela o virtuose. Sabe fazer tudo. Cria, nos
Amores e nas Heroides, cartas imaginárias de amantes famosos, uma
‘teoria do amor’ que exercerá influência profunda nos troubadours da Idade
Média. Cria até, na Arte de Amar, uma verdadeira estratégia da conquista
erótica, e logo depois, nos Remedia Amoris, a estratégia da ‘libertação’.
Os Fastos acompanham com pequenas poesias narrativas o calendário das
festas romanas; ao lado de idílios encantadores, aparecem versões fastidiosas
de episódios patrióticos – é pela segunda vez, depois de Propércio, que
encontramos isso. As Metamorfoses regalam-nos com uma multidão de contos
mitológicos bem conhecidos, conhecidos até demais: Vênus e Adônis, Faetonte, Píramo
e Tisbe, Perseu e Andrômeda, Eco e Narciso, Ícaro, Níobe, Orfeu, Midas, Dáfnis,
Filêmon e Baucis, Polifemo e Galateia. Ovídio
contaminou a literatura universal, fornecendo-lhe assuntos tediosos; enfim, o tédio
tornou-se seu próprio destino. Exilado, por motivo de qualquer affaire
de femme, para a região bárbara do Mar Negro, mandou para Roma suas elegias
sentimentais: as Tristes e Epistolae ex Ponto. São comoventes.
Mas Ovídio não é um poeta sério. Nele perdeu-se, pela ambição do mitologismo
falso, um notável poeta ligeiro, talvez um humorista à maneira de Heine ou
Musset. Contudo, não são nomes desprezíveis estes, embora não convenha colocá-los
ao lado de Goethe e Racine. Mas foi justamente isso o que aconteceu com Ovídio.
A posteridade tomou-o a sério: já o lê nas escolas a mocidade, há quase
doze séculos. Os meninos não lhe compreendem o erotismo; os adultos não lhe
compreendem a malícia. Do outro mundo, Ovídio poderia repetir o que gemeu entre
os bárbaros do Oriente onde ninguém lhe compreendeu a língua: ‘Barbarus hic ego sum, quia non intelligor
ulli’ [Sou um bárbaro neste lugar, aqui onde ninguém me entende]. É um artista
elegante, um parnasiano à maneira de Banville”.
***
Quanto
à poesia destes que são tidos como os
maiores poetas romanos – Ovídio, Horácio e Virgílio –, CARPEAUX explica
suas opiniões, que podem soar um tanto controversas a princípio:
“A
desporporção ovidiana entre assunto e estilo é um fenômeno geral da literatura
romana; é reflexo da desproporção entre a realidade romana e a literatura
latina. As tentativas de poesia patriótica em Propércio e Ovídio são
sintomas de uma crise aguda dessa convivência, daquele momento transitório que
foi considerado pela posteridade como época de apogeu da literatura latina; a ‘época
augustana’. Por isso, aconteceu que os lugares de maiores poetas romanos, devidos
a Lucrécio e Catulo, couberam, na tradição dos séculos, a Horácio e Virgílio.
O restabelecimento da paz por
Autusto parecia tornar possível a conjunção dos esforços políticos e culturais.
A proteção que Mecenas deu às letras é uma tentativa de conseguir
artificialmente a unidade das realidades material e espiritual, própria dos
gregos. O Estado romano esperava os seus Homeros e Píndaros. A literatura
latina, porém, por força das suas origens, é individualista e elegíaca. A
dois grandes poetas menores, Horácio e Virgílio, coube a tarefa de realizar uma
poesia maior. A consequência foi o artifício sublime: o classicismo”.
***
Quanto
a Horácio, diz CARPEAUX:
“Horácio é, talvez, o maior entre os
poetas menores: sensível sem sentimentalismo, alegre sem excesso,
espirituoso sem prosaísmo. Para falar em termos da filosofia antiga, é um eclético,
como Cícero e quase todos os romanos: dado ao gozo epicureu da vida, é capaz de
atitudes estoicas. Verifica-se certa ambiguidade em Horácio, e esta, aliada ao domínio
perfeito e até virtuoso da língua e de todos os metros da poesia grega, criou um
poeta autêntico. [...] Não é o maior, mas o mais completo dos poetas
romanos. Os quatro livros de Odes constituem a coleção mais variada
de poesias.
[...] Horácio é um anacreôntico, um
epicureu ligeiro, um irônico polido e elegante. O grande moralismo político não
é o seu lado mais forte. É menos poeta do que artista, virtuoso admirável da
construção de poemas, da eurritmia do verso, dos metros complicados. Não é
gênio titânico. É um poeta culto, ligeiramente epígono, ligeiramente romântico.
E não só culto, mas que sabe viver, e que se retira, em tempos de guerra
civil e perturbação social, para a vila no campo e para a poesia. Estaremos em
presença de um evasionista? Não. Ele é antes um grande egoísta. São apenas os
seus prazeres e as suas melancolias que o preocupam. Nas tempestades do mundo lá
fora, Horácio conserva a cabeça e o bom senso: o que importa é o homem, o indivíduo.
Não é romano típico, mas é poeta romano típico.
Horácio é o poeta culto entre e para
os poetas cultos, um ‘poet’s poet’. [...] Criou uma
infinidade de versos memoráveis, expressões inesquecíveis; e se se tornaram
frases feitas e lugares-comuns, não é sua culpa, e sim a sua glória, o seu ‘monumentum aere perennius’. Horácio criou
um dicionário poético e uma língua poética comuns à humanidade inteira.
***
Quanto
ao historiador Tito Lívio, CARPEAUX
nos diz:
“Virgílio
morreu antes de terminar a última redação dos versos da Eneida; e da
obra histórica de Tito Lívio, Ab
urbe condita, só possuímos fragmentos: os livros I – X e XX – XLV, tratando
dos anos 753 – 293 e 218 – 167 da nossa era, e ainda com lacunas. Isso não tem
grande importância, porque as duas obras, nascidas do mesmo impulso de idealizar
a história romana, se completam.
É difícil imaginar perfeição maior
que os versos virgilianos; e quanto às lacunas em Lívio, a perda da
historiografia não é muito sensível. Lívio não é uma fonte de primeira ordem.
É inexato, não tem espírito crítico, aceita lendas e invenções patrióticas,
vê tudo do ponto de vista de um aristocrata romano, não tem perspectiva histórica.
Gosta de engrandecer os acontecimentos, como se a cidadezinha bélica,
meio selvagem, dos primeiros tempos já tivesse sido a ‘Urbs’ do Império. São resultados dessa teatralização os famosos
episódios que conhecemos da escola – Rômulo e Remo, o rapto das Sabinas, os Horácios
e Curiácios, a morte de Lucrécia, a revolta de Coriolano, a virtude cívica de
Cincinato, Ápio e Virgínia, a invasão dos gálios, Aníbal ‘ante portas’ e em Cápua,
a morte de Sofonisba e a obstinação de Catão.
À idealização da história romana corresponde
o estilo solene, às vezes poético, quase sempre monótono. Lívio escreve
o comentário em prosa daquelas odes patrióticas. Na escola, serve ainda como
espelho de feitos do mais alto patriotismo; e tornou-se modelo internacional
quando a historiografia moderna começou a escrever a história nacional das pátrias
europeias.
[...] Lívio inventou só onde não
havia fontes; teve de inventar, porque os romanos haviam esquecido a sua própria
história primitiva. E o moralismo de Lívio torna-se suportável pela ligeira
melancolia de um espírito aristocrático que sabe decadente a moral da sua própria
época. Afinal, não pretendeu dar historiografia exata, mas uma história
exemplar; não como foi, mas como devia ser. Fê-lo de maneira tão discreta
que épocas posteriores puderam interpretá-lo de maneira anacrônica, tirando das
suas lendas os axiomas da mais alta sabedoria política. Não há outro historiógrafo
que possa gabar-se de comentadores como Maquiavel, Vico e Montesquieu. A história
ideal dos romanos transformou-se em história ideal da Humanidade”.
***
Quanto
ao mais consagrado e tido como maior poeta romano, Virgílio, autor da Eneida,
fala-nos CARPEAUX o seguinte:
“O
mesmo idealismo prejudicou a poesia de Virgílio.
O gênio do idílio realista não conseguiu o realismo homérico; só o idealizou.
Mas quase criou, com isso, uma poesia ideal.
Para provar a primeira parte da tese
– o realismo inato de Virgílio – não é preciso afirmar a autenticidade duvidosa
do idílio ‘Moretum’, descrição exata da preparação de uma refeição de
camponeses. Basta comparar as Bucólicas e as Geórgicas. As Bucólicas,
obra da mocidade, já dão testemunho da predileção de Virgílio pela poesia rústica
[...]. Mas Virgílio não é homem dos campos; tem apenas a nostalgia do homem
urbano pela vida rústica, que [...] lhe aparece como ‘ócio’, o que é
significativo.
O estilo corresponde a esse erro
melancólico: é melódico e altamente artificial. Virgílio é responsável
pelas inúmeras éclogas da Renascença, com os seus pastores amorosos e as alusões
a acontecimentos políticos que preocupam os poetas. Em comparação, o poema didático
Geórgicas é realista num sentido elevado. Realismo classicista, talvez
realismo clássico. Aí, também, não estão ausentes as preocupações políticas:
Virgílio faz propaganda da reagrarização da Itália, pronunciando-se contra o
latifúndio, para salvar a ‘justissima tellus’. Mas as descrições da
agricultura, da vida das árvores, da criação de gado, da apicultura, são de
um realismo sereno [...]. É uma paisagem altamente humanizada, à qual Virgílio
está saudando.
[...] A esta ‘Mãe Itália’ está
dedicada a Eneida. Comparações com Homero, provocadas pela imitação
manifesta, não são, no entanto, convenientes. O espírito é diverso. O estilo ‘rápido,
direto e nobre’ é substituído por certa dignidade melancólica e monótona; o espírito
bélico, pelo civismo e senso de justiça; o antropomorfismo, pela fria religião
de Estado. Mas Virgílio é o que Homero não foi e não podia ser: é artista.
Um artista incomparável do verso, da música das palavras. As expressões
poéticas do imperalismo romano estão como que envolvidas no ‘altum silentium’ da música virgiliana.
Sol e lua da Itália real levantam-se
e põem-se – ‘fugit irreparabile tempus’
– sobre personagens pálidas e acontecimentos penosamente inventados. A tarefa
de inventar uma tradição oficial do Império Augustano inspirou ao poeta uma
utopia das virtudes políticas dos romanos, quase já uma política cristã. A
Idade Média cristã, encantada pelos amores de Dido e Eneias, não viu esse
aspecto de Virgílio; só Dante o adivinhou, após a derrota da sua própria utopia
política – e por todos os séculos depois ecoou o verso modesto e profético: ‘Forsan et haec olim meminisse juvabit’ [Talvez
um dia nos dê prazer recordar essas coisas].
“A Virgílio aplica-se, mais do que a
outro qualquer poeta, a distinção de Schiller entre ‘poesia ingênua’ e ‘poesia
sentimental’. Virgílio não é nada ingênuo, e desde que o romantismo descobriu o
gênio na poesia popular e de boêmios indisciplinados, a glória multissecular de
Virgílio empalideceu. Em comparação com o ‘gênio popular’ Homero, Virgílio foi
considerado como poeta da decadência, de falsa dignidade, incapaz de
representar a vida real. É verdade que Virgílio pertence a uma época de decadência;
e é justamente por isso que não quer reproduzir a realidade que lhe pretendem
impor. É artista, inventa um mundo ideal, melhor, superior. Apresenta-nos santos
e heróis artificiais, porque não existem outros. Não como romano, mas como
intelectual romano, Virgílio é da Resistência. Opõe ao caos moral da sua época
os ideais do trabalho rústico [...], da justiça imparcial [...] e do amor ao próximo
[...].
A ideia central da sua obra
inteira é a utopia de uma ‘aetas aurea’:
utopia romântica nas Bucólicas, utopia social nas Geórgicas,
utopia política na Eneida. Sente, com amargura melancólica, a distância
entre esse ideal e a sua época crepuscular [...], e qualquer acontecimento insignificante,
como o nascimento de uma criança, lhe sugere logo esperanças indefinidas de um
futuro melhor, como naquele verso – ‘Magnus
ab integro, saeclorum nascitur ordo’ [Eis que nasce uma era toda nova] – da
Écloga IV das Bucólicas. Então, aquele crepúsculo melancólico aparece
como aurora esperançosa de uma nova era, e o poeta pagão Virgílio, insatisfeito
com a religião oficial e os sistemas filosóficos, ergue a voz como um profeta
no Advento.
Com efeito, todos os séculos cristãos
interpretaram a Écloga IV como profecia pagã do nascimento do Cristo.
Compararam-se as viagens mediterrâneas de Eneias às do apóstolo Paulo, a fundação
da Urbs à da Igreja. Lembrou-se a unificação do Império Romano por Augusto, o
soberano de Virgílio, como condição indispensável da missão do cristianismo. A
Idade Média não sabia explicar a profecia e o gênio de Virgílio senão
transformando-o em feiticeiro poderoso, em herói de inúmeras lendas; em Dante,
Virgílio já é o representante da ‘Razão’ pagã, não batizada, mas ‘naturaliter christiana’ e iluminando
todo o mundo latino e católico.
Chamaram a Virgílio ‘pai do
Ocidente’. Virgílio é ‘pai do Ocidente’ num sentido muito amplo. O seu
ideal do ‘labor’ está na disciplina
dos monges de S. Bento, união do trabalho nos campos e do trabalho intelectual;
e o seu ideal do ‘otium’ está na dedicação dos humanistas à ciência
desinteressada. Até a música dos seus versos melancólicos ensinou a todas as épocas
a transformação da angústia em arte. Homero é maior, sem comparação; mas é
Virgílio que nos convém”.
***
Retomando
suas justificativas quanto à poesia
romana, CARPEAUX conclui:
“A
posição de Horácio e Virgílio dentro da literatura romana é diferente da que
ocupam na literatura universal. As inúmeras tentativas, em todas as épocas e
literaturas, de imitar a ode solene de Horácio e a epopeia heroica de Virgílio,
não foram, as mais das vezes, bem sucedidas. A verdadeira influência dos poetas
está na elaboração de um tom poético finamente humano e expressivo, na sátira
horaciana e na écloga virgiliana. Na literatura universal, Horácio e Virgílio
são os maiores entre os poetas menores. Na literatura romana, são os últimos
poetas ‘maiores’. Com eles, acabam as tentativas de poesia de interesse
coletivo. Desde então, toda a literatura romana está na oposição. É possível
interpretar essa oposição como resistência da gente culta contra o despotismo
dos Césares [...]. Contudo, essa oposição não é um fenômeno transitório nem
meramente político; exprime o caráter íntimo da literatura romana, que só
durante poucos decênios, imediatamente antes do começo da nossa era, acreditava
na possibilidade de penetrar na realidade hostil, retirando-se depois para a
região na qual individualismo, intelectualismo, temperamento elegíaco e resignação
estoica se encontram”.
***
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