quinta-feira, 21 de maio de 2015

Os poetas romanos

Falando rapidamente dos três primeiros poetas romanos dignos de nota, Catulo, Propércio e Tibulo, os comentários de CARPEAUX podem se resumir no seguinte:

Catulo é um poeta muito humano. A ele também, nada de humano foi alheio [...]. Catulo é, no primeiro século antes da nossa era, um poeta moderno. É, entre os poetas, o primeiro que se comove com a paisagem. [...] Dos outros elegíacos romanos, só Propércio se compara um tanto a ele. A imitação dos modelos gregos sufoca-o. É um decadente. Complica os assuntos com multidão de alusões mitológicas, perde-se em confusões sintáticas; a sua linguagem é a mais obscura e difícil de todos os poetas romanos. [...] Propércio é artista; menos nas tentativas de solenes elegias patrióticas [...] do que na música extraordinária das suas palavras. [...] Enfim, quanto a Tibulo, é forçoso confessar que não somos capazes de formar uma ideia bem clara da sua poesia. [...] É confuso como Propércio, mas muito mais suave [...]. Tibulo é, entre os elegíacos, o mais elegíaco”.

“A injustiça evidente da preferência dada a Tibulo explica-se pela modificação semântica que a acepção da palavra elegia sofreu. Propércio é elegíaco; mas não é ‘elegíaco’ sentimental. Com mau gosto infalível, a posteridade elegeu Ovídio, o mais sentimental entre os elegíacos romanos, excessivamente sentimental porque desiludido pela própria fraqueza, e conferiu-lhe uma glória póstuma sem par. ‘Sentimentalismo é sentimento, comprado abaixo do preço’ – a frase de Meredith aplica-se bem a Ovídio”.

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Quanto a Ovídio, CARPEAUX diz:

“A diversidade das suas obras revela o virtuose. Sabe fazer tudo. Cria, nos Amores e nas Heroides, cartas imaginárias de amantes famosos, uma ‘teoria do amor’ que exercerá influência profunda nos troubadours da Idade Média. Cria até, na Arte de Amar, uma verdadeira estratégia da conquista erótica, e logo depois, nos Remedia Amoris, a estratégia da ‘libertação’. Os Fastos acompanham com pequenas poesias narrativas o calendário das festas romanas; ao lado de idílios encantadores, aparecem versões fastidiosas de episódios patrióticos – é pela segunda vez, depois de Propércio, que encontramos isso. As Metamorfoses regalam-nos com uma multidão de contos mitológicos bem conhecidos, conhecidos até demais: Vênus e Adônis, Faetonte, Píramo e Tisbe, Perseu e Andrômeda, Eco e Narciso, Ícaro, Níobe, Orfeu, Midas, Dáfnis, Filêmon e Baucis, Polifemo e Galateia. Ovídio contaminou a literatura universal, fornecendo-lhe assuntos tediosos; enfim, o tédio tornou-se seu próprio destino. Exilado, por motivo de qualquer affaire de femme, para a região bárbara do Mar Negro, mandou para Roma suas elegias sentimentais: as Tristes e Epistolae ex Ponto. São comoventes. Mas Ovídio não é um poeta sério. Nele perdeu-se, pela ambição do mitologismo falso, um notável poeta ligeiro, talvez um humorista à maneira de Heine ou Musset. Contudo, não são nomes desprezíveis estes, embora não convenha colocá-los ao lado de Goethe e Racine. Mas foi justamente isso o que aconteceu com Ovídio. A posteridade tomou-o a sério: já o lê nas escolas a mocidade, há quase doze séculos. Os meninos não lhe compreendem o erotismo; os adultos não lhe compreendem a malícia. Do outro mundo, Ovídio poderia repetir o que gemeu entre os bárbaros do Oriente onde ninguém lhe compreendeu a língua: ‘Barbarus hic ego sum, quia non intelligor ulli’ [Sou um bárbaro neste lugar, aqui onde ninguém me entende]. É um artista elegante, um parnasiano à maneira de Banville”.

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Quanto à poesia destes que são tidos como os maiores poetas romanos – Ovídio, Horácio e Virgílio –, CARPEAUX explica suas opiniões, que podem soar um tanto controversas a princípio:

“A desporporção ovidiana entre assunto e estilo é um fenômeno geral da literatura romana; é reflexo da desproporção entre a realidade romana e a literatura latina. As tentativas de poesia patriótica em Propércio e Ovídio são sintomas de uma crise aguda dessa convivência, daquele momento transitório que foi considerado pela posteridade como época de apogeu da literatura latina; a ‘época augustana’. Por isso, aconteceu que os lugares de maiores poetas romanos, devidos a Lucrécio e Catulo, couberam, na tradição dos séculos, a Horácio e Virgílio.

O restabelecimento da paz por Autusto parecia tornar possível a conjunção dos esforços políticos e culturais. A proteção que Mecenas deu às letras é uma tentativa de conseguir artificialmente a unidade das realidades material e espiritual, própria dos gregos. O Estado romano esperava os seus Homeros e Píndaros. A literatura latina, porém, por força das suas origens, é individualista e elegíaca. A dois grandes poetas menores, Horácio e Virgílio, coube a tarefa de realizar uma poesia maior. A consequência foi o artifício sublime: o classicismo”.

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Quanto a Horácio, diz CARPEAUX:

Horácio é, talvez, o maior entre os poetas menores: sensível sem sentimentalismo, alegre sem excesso, espirituoso sem prosaísmo. Para falar em termos da filosofia antiga, é um eclético, como Cícero e quase todos os romanos: dado ao gozo epicureu da vida, é capaz de atitudes estoicas. Verifica-se certa ambiguidade em Horácio, e esta, aliada ao domínio perfeito e até virtuoso da língua e de todos os metros da poesia grega, criou um poeta autêntico. [...] Não é o maior, mas o mais completo dos poetas romanos. Os quatro livros de Odes constituem a coleção mais variada de poesias.

[...] Horácio é um anacreôntico, um epicureu ligeiro, um irônico polido e elegante. O grande moralismo político não é o seu lado mais forte. É menos poeta do que artista, virtuoso admirável da construção de poemas, da eurritmia do verso, dos metros complicados. Não é gênio titânico. É um poeta culto, ligeiramente epígono, ligeiramente romântico. E não só culto, mas que sabe viver, e que se retira, em tempos de guerra civil e perturbação social, para a vila no campo e para a poesia. Estaremos em presença de um evasionista? Não. Ele é antes um grande egoísta. São apenas os seus prazeres e as suas melancolias que o preocupam. Nas tempestades do mundo lá fora, Horácio conserva a cabeça e o bom senso: o que importa é o homem, o indivíduo. Não é romano típico, mas é poeta romano típico.

Horácio é o poeta culto entre e para os poetas cultos, um ‘poet’s poet. [...] Criou uma infinidade de versos memoráveis, expressões inesquecíveis; e se se tornaram frases feitas e lugares-comuns, não é sua culpa, e sim a sua glória, o seu ‘monumentum aere perennius’. Horácio criou um dicionário poético e uma língua poética comuns à humanidade inteira.

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Quanto ao historiador Tito Lívio, CARPEAUX nos diz:

“Virgílio morreu antes de terminar a última redação dos versos da Eneida; e da obra histórica de Tito Lívio, Ab urbe condita, só possuímos fragmentos: os livros I – X e XX – XLV, tratando dos anos 753 – 293 e 218 – 167 da nossa era, e ainda com lacunas. Isso não tem grande importância, porque as duas obras, nascidas do mesmo impulso de idealizar a história romana, se completam.

É difícil imaginar perfeição maior que os versos virgilianos; e quanto às lacunas em Lívio, a perda da historiografia não é muito sensível. Lívio não é uma fonte de primeira ordem. É inexato, não tem espírito crítico, aceita lendas e invenções patrióticas, vê tudo do ponto de vista de um aristocrata romano, não tem perspectiva histórica. Gosta de engrandecer os acontecimentos, como se a cidadezinha bélica, meio selvagem, dos primeiros tempos já tivesse sido a ‘Urbs’ do Império. São resultados dessa teatralização os famosos episódios que conhecemos da escola – Rômulo e Remo, o rapto das Sabinas, os Horácios e Curiácios, a morte de Lucrécia, a revolta de Coriolano, a virtude cívica de Cincinato, Ápio e Virgínia, a invasão dos gálios, Aníbal ‘ante portas’ e em Cápua, a morte de Sofonisba e a obstinação de Catão.

À idealização da história romana corresponde o estilo solene, às vezes poético, quase sempre monótono. Lívio escreve o comentário em prosa daquelas odes patrióticas. Na escola, serve ainda como espelho de feitos do mais alto patriotismo; e tornou-se modelo internacional quando a historiografia moderna começou a escrever a história nacional das pátrias europeias.

[...] Lívio inventou só onde não havia fontes; teve de inventar, porque os romanos haviam esquecido a sua própria história primitiva. E o moralismo de Lívio torna-se suportável pela ligeira melancolia de um espírito aristocrático que sabe decadente a moral da sua própria época. Afinal, não pretendeu dar historiografia exata, mas uma história exemplar; não como foi, mas como devia ser. Fê-lo de maneira tão discreta que épocas posteriores puderam interpretá-lo de maneira anacrônica, tirando das suas lendas os axiomas da mais alta sabedoria política. Não há outro historiógrafo que possa gabar-se de comentadores como Maquiavel, Vico e Montesquieu. A história ideal dos romanos transformou-se em história ideal da Humanidade”.

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Quanto ao mais consagrado e tido como maior poeta romano, Virgílio, autor da Eneida, fala-nos CARPEAUX o seguinte:

“O mesmo idealismo prejudicou a poesia de Virgílio. O gênio do idílio realista não conseguiu o realismo homérico; só o idealizou. Mas quase criou, com isso, uma poesia ideal.

Para provar a primeira parte da tese – o realismo inato de Virgílio – não é preciso afirmar a autenticidade duvidosa do idílio ‘Moretum’, descrição exata da preparação de uma refeição de camponeses. Basta comparar as Bucólicas e as Geórgicas. As Bucólicas, obra da mocidade, já dão testemunho da predileção de Virgílio pela poesia rústica [...]. Mas Virgílio não é homem dos campos; tem apenas a nostalgia do homem urbano pela vida rústica, que [...] lhe aparece como ‘ócio’, o que é significativo.

O estilo corresponde a esse erro melancólico: é melódico e altamente artificial. Virgílio é responsável pelas inúmeras éclogas da Renascença, com os seus pastores amorosos e as alusões a acontecimentos políticos que preocupam os poetas. Em comparação, o poema didático Geórgicas é realista num sentido elevado. Realismo classicista, talvez realismo clássico. Aí, também, não estão ausentes as preocupações políticas: Virgílio faz propaganda da reagrarização da Itália, pronunciando-se contra o latifúndio, para salvar a ‘justissima tellus’. Mas as descrições da agricultura, da vida das árvores, da criação de gado, da apicultura, são de um realismo sereno [...]. É uma paisagem altamente humanizada, à qual Virgílio está saudando.

[...] A esta ‘Mãe Itália’ está dedicada a Eneida. Comparações com Homero, provocadas pela imitação manifesta, não são, no entanto, convenientes. O espírito é diverso. O estilo ‘rápido, direto e nobre’ é substituído por certa dignidade melancólica e monótona; o espírito bélico, pelo civismo e senso de justiça; o antropomorfismo, pela fria religião de Estado. Mas Virgílio é o que Homero não foi e não podia ser: é artista. Um artista incomparável do verso, da música das palavras. As expressões poéticas do imperalismo romano estão como que envolvidas no ‘altum silentium’ da música virgiliana.

Sol e lua da Itália real levantam-se e põem-se – ‘fugit irreparabile tempus’ – sobre personagens pálidas e acontecimentos penosamente inventados. A tarefa de inventar uma tradição oficial do Império Augustano inspirou ao poeta uma utopia das virtudes políticas dos romanos, quase já uma política cristã. A Idade Média cristã, encantada pelos amores de Dido e Eneias, não viu esse aspecto de Virgílio; só Dante o adivinhou, após a derrota da sua própria utopia política – e por todos os séculos depois ecoou o verso modesto e profético: ‘Forsan et haec olim meminisse juvabit’ [Talvez um dia nos dê prazer recordar essas coisas].

“A Virgílio aplica-se, mais do que a outro qualquer poeta, a distinção de Schiller entre ‘poesia ingênua’ e ‘poesia sentimental’. Virgílio não é nada ingênuo, e desde que o romantismo descobriu o gênio na poesia popular e de boêmios indisciplinados, a glória multissecular de Virgílio empalideceu. Em comparação com o ‘gênio popular’ Homero, Virgílio foi considerado como poeta da decadência, de falsa dignidade, incapaz de representar a vida real. É verdade que Virgílio pertence a uma época de decadência; e é justamente por isso que não quer reproduzir a realidade que lhe pretendem impor. É artista, inventa um mundo ideal, melhor, superior. Apresenta-nos santos e heróis artificiais, porque não existem outros. Não como romano, mas como intelectual romano, Virgílio é da Resistência. Opõe ao caos moral da sua época os ideais do trabalho rústico [...], da justiça imparcial [...] e do amor ao próximo [...].

A ideia central da sua obra inteira é a utopia de uma ‘aetas aurea’: utopia romântica nas Bucólicas, utopia social nas Geórgicas, utopia política na Eneida. Sente, com amargura melancólica, a distância entre esse ideal e a sua época crepuscular [...], e qualquer acontecimento insignificante, como o nascimento de uma criança, lhe sugere logo esperanças indefinidas de um futuro melhor, como naquele verso – ‘Magnus ab integro, saeclorum nascitur ordo’ [Eis que nasce uma era toda nova] – da Écloga IV das Bucólicas. Então, aquele crepúsculo melancólico aparece como aurora esperançosa de uma nova era, e o poeta pagão Virgílio, insatisfeito com a religião oficial e os sistemas filosóficos, ergue a voz como um profeta no Advento.

Com efeito, todos os séculos cristãos interpretaram a Écloga IV como profecia pagã do nascimento do Cristo. Compararam-se as viagens mediterrâneas de Eneias às do apóstolo Paulo, a fundação da Urbs à da Igreja. Lembrou-se a unificação do Império Romano por Augusto, o soberano de Virgílio, como condição indispensável da missão do cristianismo. A Idade Média não sabia explicar a profecia e o gênio de Virgílio senão transformando-o em feiticeiro poderoso, em herói de inúmeras lendas; em Dante, Virgílio já é o representante da ‘Razão’ pagã, não batizada, mas ‘naturaliter christiana’ e iluminando todo o mundo latino e católico.

Chamaram a Virgílio ‘pai do Ocidente’. Virgílio é ‘pai do Ocidente’ num sentido muito amplo. O seu ideal do ‘labor’ está na disciplina dos monges de S. Bento, união do trabalho nos campos e do trabalho intelectual; e o seu ideal do ‘otium’ está na dedicação dos humanistas à ciência desinteressada. Até a música dos seus versos melancólicos ensinou a todas as épocas a transformação da angústia em arte. Homero é maior, sem comparação; mas é Virgílio que nos convém”.

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Retomando suas justificativas quanto à poesia romana, CARPEAUX conclui:

“A posição de Horácio e Virgílio dentro da literatura romana é diferente da que ocupam na literatura universal. As inúmeras tentativas, em todas as épocas e literaturas, de imitar a ode solene de Horácio e a epopeia heroica de Virgílio, não foram, as mais das vezes, bem sucedidas. A verdadeira influência dos poetas está na elaboração de um tom poético finamente humano e expressivo, na sátira horaciana e na écloga virgiliana. Na literatura universal, Horácio e Virgílio são os maiores entre os poetas menores. Na literatura romana, são os últimos poetas ‘maiores’. Com eles, acabam as tentativas de poesia de interesse coletivo. Desde então, toda a literatura romana está na oposição. É possível interpretar essa oposição como resistência da gente culta contra o despotismo dos Césares [...]. Contudo, essa oposição não é um fenômeno transitório nem meramente político; exprime o caráter íntimo da literatura romana, que só durante poucos decênios, imediatamente antes do começo da nossa era, acreditava na possibilidade de penetrar na realidade hostil, retirando-se depois para a região na qual individualismo, intelectualismo, temperamento elegíaco e resignação estoica se encontram”.

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