Quanto
à literatura romana, CARPEAUX nos
diz:
“A
literatura romana, apesar de ter produzido grandes poetas e grandes prosadores,
parece de segunda mão. A comédia romana já se nos revelou como reflexo
da comédia nova ateniense, e a tragédia de Sêneca será reflexo da tragédia de
Eurípides. Os poetas líricos romanos imitam Teógnis, Alceu e Safo; Virgílio
seria a sombra de Homero; os retores e historiógrafos acompanham os métodos
gregos; os filósofos romanos procuram, como ecléticos, um caminho de
compromisso entre as discussões das escolas de Atenas e da Ásia Menor. Em
geral, é uma literatura de imitação.
Conhecemos grande parte da literatura
grega – particularmente da poesia lírica e do teatro cômico – só através das
imitações latinas. Não há, porém, uma equivalência perfeita entre as duas
literaturas, porque os romanos – donos duma capacidade de assimilação comparável
só à dos ingleses – modificaram o espírito dos modelos, produzindo sempre
coisas um tanto diferentes. São justamente essas diferenças que nos aproximam
da literatura romana.
[...] Mas entre a literatura romana,
imitação de uma literatura estrangeira por parte de uma elite culta, e as
instituições romanas, obra original da nação, há um abismo. Por força das suas
origens e da sua própria existência, a literatura
romana constitui o modelo de uma literatura de elite, literatura
intencional, artística, de evasão. Os literatos romanos já são humanistas
no sentido moderno da palavra. A separação entre os escritores romanos e a
realidade romana tem contaminado a nossa própria civilização inteira”.
“[...]
O espírito grego cria as suas realidades: Estado e poesia, religião e teatro
estão no mesmo plano; a distinção entre realidade material e realidade
espiritual, para o grego, não tem sentido. A realidade romana é construção em
material dado. É realidade econômica, política, jurídica, administrativa. O
romano não criou o seu mundo; encontrou-o, dominou-o, continuou a dominá-lo,
pensando em termos administrativos. A realidade espiritual, importada de
fora, é uma planta exótica em Roma; e os que pretendem viver nela só podem fazê-lo
como um alto funcionário que nas horas de ócio se entrega a caprichos de
diletante, ou como um boêmio que se afasta das ocupações sérias da vida.
Existe, no entanto, entre o
diletantismo romano e o diletantismo moderno, uma diferença; e nessa diferença reside
aquele ‘algo de novo’ que os romanos introduziram na imitação dos modelos
gregos. O diletantismo moderno é sempre participação, às vezes incompetente, às
vezes irresponsável, na realidade espiritual; entre nós sobrevive – na arte, na
literatura, na ciência – a herança grega duma realidade espiritual, criada
pelos próprios homens. A realidade romana não era assim; era força
alheia ao espírito. E os representantes romanos do espírito defenderam a
sua independência contra essa realidade material, com a mesma coragem e
tenacidade de estoicos natos com as quais os seus antepassados tinham
conquistado o mundo e os seus descendentes, mais tarde, haveriam de sucumbir
aos bárbaros.
Aí está o elemento original da
literatura romana. Para os romanos e para nós. Entre nós, como entre os gregos,
existe uma realidade espiritual; mas só ao lado da realidade material, sem o equilíbrio
do realismo homérico. Entre nós, o Espírito está sempre ameaçado. A sua defesa
tirou as lições mais edificantes do exemplo da defesa dos romanos cultos contra
a sua realidade bruta. A literatura romana não é um templo da beleza; é uma lição
de coragem, uma escola de oposição.
Eis o ‘lugar na vida’ dessa pretensa literatura de evasão, que é, na
verdade, uma alta escola de humanidade”.
***
Sobre
Cícero e Lucrécio, CARPEAUX diz:
“A
tradição classificou as obras de Cícero
distinguindo discursos forenses e parlamentares, tratados filosóficos e cartas.
Cícero é jornalista, advogado, político, vulgarizador das ideias filosóficas
gregas em Roma; é literato. Aplicando-lhe os critérios rigorosos da
profundidade na filosofia e da solidez de uma política baseada em ideologia
certa, Cícero não sai bem: foi um jornalista algo superficial, em todos os
setores da sua atividade. Esse ‘jornalista’ exerceu, porém, uma influência tão
universal como – além de Platão – nenhum autor da Antiguidade. Durante séculos,
todos os homens cultos, os ‘letrados’ da Europa inteira, falaram e escreveram a
língua de Cícero; e pode-se afirmar que a sua influência criou o tipo do homme
de lettres. Julgado como exemplo supremo desse tipo, Cícero apresenta-se de
maneira mais favorável e até a sua volubilidade política é a de um intelectual,
incapaz de conformar-se com a disciplina dos partidos políticos.
[...] Contudo, Cícero não é um filósofo
profundo. Assim como na política, não sabe decidir-se entre as ideologias,
todas exigentes e demasiadamente dogmáticas. Abraçando o cepticismo moderado da
Academia Nova, não rejeita porém inteiramente a religião tradicional,
interpretando-lhe o credo como suma de símbolos de verdades mais profundas;
levando a vida despreocupada de um epicureu culto e abastado, é no entanto
capaz de afirmar sinceramente a moral estoica, ao ponto de morrer assim como
ela o exige. Afinal, Cícero, sem criar um sistema filosófico, criou a ‘filosofia’,
a atitude dos intelectuais em muitos séculos. E de outra maneira, mais
coerente, não teria sido possível introduzir filosofia política na política
romana.
[...] Cícero foi sempre alvo de
discussões e objeto das apreciações mais divergentes. É o destino do ideólogo
incoerente, mas também o destino do homme de lettres fora dos partidos,
do intelectual independente”.
“O
homem de letras tem de agir; ou terá de se retirar para a Natureza, que fica
insensível às mudanças insignificantes que os homens operam. [...] É a
alternativa entre Cícero e Lucrécio”.
“Independência
mais segura, Lucrécio encontrou-a na contemplação da natureza. Mas não era
contemplação desapaixonada, nem era Lucrécio um homem feliz.
[...] O próprio Lucrécio é um
mestre. De Rerum Natura é um poema didático. Lucrécio pretende ensinar,
convencer. Fala da teoria atomística, da pluralidade dos mundos, da cosmologia,
antropologia e sexualidade, terremotos, enchentes, vulcões e outros fenômenos
da Natureza que se explicam de maneira científica, e cujas consequências fatais
não justificam a superstição, da qual tiram proveito os sacerdotes. Em Lucrécio
encontram-se quase todas as teorias do positivismo científico. Seria um grande
erudito, se não fosse um grande poeta.
[...] De Rerum Natura é,
entre todos os poemas didáticos da literatura universal, a única obra de poesia
autêntica: obra de lirismo sincero, do poeta mais original em língua latina e
do poeta mais moderno da Antiguidade”.
“Com
Cícero e Lucrécio acaba uma fase decisiva da literatura romana: a tentativa de
introduzir espírito filosófico na política ou na religião de Roma não foi,
depois, repetida. A literatura romana volta-se para individualismo algo
evasionista que lhe convém, produzindo uma série admirável de poetas líricos,
poetas menores, sim, mas por isso mais perto da poesia lírica moderna do que
qualquer poeta lírico grego”.
***
Na pasta de arquivos online, consta um PDF de Da amizade, um diálogo de Cícero sobre o tema: https://www.dropbox.com/home/Grupo%20de%20Estudo%20e%20Leitura%20dos%20Cl%C3%A1ssicos
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