quinta-feira, 14 de maio de 2015

Literatura romana. Sexta leitura: "Da amizade", de Cícero.

Quanto à literatura romana, CARPEAUX nos diz:

“A literatura romana, apesar de ter produzido grandes poetas e grandes prosadores, parece de segunda mão. A comédia romana já se nos revelou como reflexo da comédia nova ateniense, e a tragédia de Sêneca será reflexo da tragédia de Eurípides. Os poetas líricos romanos imitam Teógnis, Alceu e Safo; Virgílio seria a sombra de Homero; os retores e historiógrafos acompanham os métodos gregos; os filósofos romanos procuram, como ecléticos, um caminho de compromisso entre as discussões das escolas de Atenas e da Ásia Menor. Em geral, é uma literatura de imitação.

Conhecemos grande parte da literatura grega – particularmente da poesia lírica e do teatro cômico – só através das imitações latinas. Não há, porém, uma equivalência perfeita entre as duas literaturas, porque os romanos – donos duma capacidade de assimilação comparável só à dos ingleses – modificaram o espírito dos modelos, produzindo sempre coisas um tanto diferentes. São justamente essas diferenças que nos aproximam da literatura romana.

[...] Mas entre a literatura romana, imitação de uma literatura estrangeira por parte de uma elite culta, e as instituições romanas, obra original da nação, há um abismo. Por força das suas origens e da sua própria existência, a literatura romana constitui o modelo de uma literatura de elite, literatura intencional, artística, de evasão. Os literatos romanos já são humanistas no sentido moderno da palavra. A separação entre os escritores romanos e a realidade romana tem contaminado a nossa própria civilização inteira”.

“[...] O espírito grego cria as suas realidades: Estado e poesia, religião e teatro estão no mesmo plano; a distinção entre realidade material e realidade espiritual, para o grego, não tem sentido. A realidade romana é construção em material dado. É realidade econômica, política, jurídica, administrativa. O romano não criou o seu mundo; encontrou-o, dominou-o, continuou a dominá-lo, pensando em termos administrativos. A realidade espiritual, importada de fora, é uma planta exótica em Roma; e os que pretendem viver nela só podem fazê-lo como um alto funcionário que nas horas de ócio se entrega a caprichos de diletante, ou como um boêmio que se afasta das ocupações sérias da vida.

Existe, no entanto, entre o diletantismo romano e o diletantismo moderno, uma diferença; e nessa diferença reside aquele ‘algo de novo’ que os romanos introduziram na imitação dos modelos gregos. O diletantismo moderno é sempre participação, às vezes incompetente, às vezes irresponsável, na realidade espiritual; entre nós sobrevive – na arte, na literatura, na ciência – a herança grega duma realidade espiritual, criada pelos próprios homens. A realidade romana não era assim; era força alheia ao espírito. E os representantes romanos do espírito defenderam a sua independência contra essa realidade material, com a mesma coragem e tenacidade de estoicos natos com as quais os seus antepassados tinham conquistado o mundo e os seus descendentes, mais tarde, haveriam de sucumbir aos bárbaros.

Aí está o elemento original da literatura romana. Para os romanos e para nós. Entre nós, como entre os gregos, existe uma realidade espiritual; mas só ao lado da realidade material, sem o equilíbrio do realismo homérico. Entre nós, o Espírito está sempre ameaçado. A sua defesa tirou as lições mais edificantes do exemplo da defesa dos romanos cultos contra a sua realidade bruta. A literatura romana não é um templo da beleza; é uma lição de coragem, uma escola de oposição.

Eis o ‘lugar na vida’ dessa pretensa literatura de evasão, que é, na verdade, uma alta escola de humanidade”.

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Sobre Cícero e Lucrécio, CARPEAUX diz:

“A tradição classificou as obras de Cícero distinguindo discursos forenses e parlamentares, tratados filosóficos e cartas. Cícero é jornalista, advogado, político, vulgarizador das ideias filosóficas gregas em Roma; é literato. Aplicando-lhe os critérios rigorosos da profundidade na filosofia e da solidez de uma política baseada em ideologia certa, Cícero não sai bem: foi um jornalista algo superficial, em todos os setores da sua atividade. Esse ‘jornalista’ exerceu, porém, uma influência tão universal como – além de Platão – nenhum autor da Antiguidade. Durante séculos, todos os homens cultos, os ‘letrados’ da Europa inteira, falaram e escreveram a língua de Cícero; e pode-se afirmar que a sua influência criou o tipo do homme de lettres. Julgado como exemplo supremo desse tipo, Cícero apresenta-se de maneira mais favorável e até a sua volubilidade política é a de um intelectual, incapaz de conformar-se com a disciplina dos partidos políticos.

[...] Contudo, Cícero não é um filósofo profundo. Assim como na política, não sabe decidir-se entre as ideologias, todas exigentes e demasiadamente dogmáticas. Abraçando o cepticismo moderado da Academia Nova, não rejeita porém inteiramente a religião tradicional, interpretando-lhe o credo como suma de símbolos de verdades mais profundas; levando a vida despreocupada de um epicureu culto e abastado, é no entanto capaz de afirmar sinceramente a moral estoica, ao ponto de morrer assim como ela o exige. Afinal, Cícero, sem criar um sistema filosófico, criou a ‘filosofia’, a atitude dos intelectuais em muitos séculos. E de outra maneira, mais coerente, não teria sido possível introduzir filosofia política na política romana.

[...] Cícero foi sempre alvo de discussões e objeto das apreciações mais divergentes. É o destino do ideólogo incoerente, mas também o destino do homme de lettres fora dos partidos, do intelectual independente”.

“O homem de letras tem de agir; ou terá de se retirar para a Natureza, que fica insensível às mudanças insignificantes que os homens operam. [...] É a alternativa entre Cícero e Lucrécio”.

“Independência mais segura, Lucrécio encontrou-a na contemplação da natureza. Mas não era contemplação desapaixonada, nem era Lucrécio um homem feliz.

[...] O próprio Lucrécio é um mestre. De Rerum Natura é um poema didático. Lucrécio pretende ensinar, convencer. Fala da teoria atomística, da pluralidade dos mundos, da cosmologia, antropologia e sexualidade, terremotos, enchentes, vulcões e outros fenômenos da Natureza que se explicam de maneira científica, e cujas consequências fatais não justificam a superstição, da qual tiram proveito os sacerdotes. Em Lucrécio encontram-se quase todas as teorias do positivismo científico. Seria um grande erudito, se não fosse um grande poeta.

[...] De Rerum Natura é, entre todos os poemas didáticos da literatura universal, a única obra de poesia autêntica: obra de lirismo sincero, do poeta mais original em língua latina e do poeta mais moderno da Antiguidade”.

Com Cícero e Lucrécio acaba uma fase decisiva da literatura romana: a tentativa de introduzir espírito filosófico na política ou na religião de Roma não foi, depois, repetida. A literatura romana volta-se para individualismo algo evasionista que lhe convém, produzindo uma série admirável de poetas líricos, poetas menores, sim, mas por isso mais perto da poesia lírica moderna do que qualquer poeta lírico grego”.


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Na pasta de arquivos online, consta um PDF de Da amizade, um diálogo de Cícero sobre o tema: https://www.dropbox.com/home/Grupo%20de%20Estudo%20e%20Leitura%20dos%20Cl%C3%A1ssicos

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