Vimos, com
CARPEAUX, que tipo de gente invadia e assolava o Ocidente a partir do século
IX, e como a devastação era também moral e chegava inclusive aos claustros e
monastérios. Mas “a reação veio da Igreja”:
“A reação
veio da Igreja. Em 910, Odo fundou o convento de Cluny. A regularidade
da disciplina litúrgica suplantou a anarquia espiritual. A ascese venceu a
sujeira física, a intemperança da mesa, a sexualidade desordenada. Às portas do
convento aboliu-se a propriedade, com todas as consequências. A reforma
cluniacense limitava-se no começo a certos conventos e ‘igrejas locais’. Roma
permanecia inacessível. Mas conquistaram-se, enfim, países inteiros,
constituindo-se ilhas moralizadas dentro da Igreja universal, as igrejas
nacionais da França e da Alemanha, das quais os bispos eram cluniacenses: os
bispados constituíram os fundamentos da reorganização administrativa.
Surgiram, assim, o Estado francês dos Capetingos e o Império romano-alemão dos
três imperadores de nome Otto. E a ideia da reforma se universalizou. Otto I
ainda é um rei alemão; Otto II já tem grandes projetos na Itália; Otto III
julga-se César e passa a residir em Roma. Com o universalismo, era incompatível
a guerra civil generalizada. Os monges promovem uma reação democrática do povo
contra os feudais, exaltam a ideia da ‘Treuga Dei’, do armistício pelo amor de
Deus. Em 989, conclui-se o pacto de paz geral, em Charroux; em 1000, em
Poitiers, a guerra feudal é solenemente abolida. Aparecem outros monges, os
cistercienses, e substituem a guerra pelo trabalho. Com a pacificação e a
reconquista da terra devastada ressuscita o conceito da tradição, que recebe,
de maneira muito especial, a sanção eclesiástica: o abade Odilo de Cluny († 1048) institui o dia santo de Finados,
a primeira festa da Igreja ocidental, que não se conheceu antes no Oriente
grego; é a festa da comunhão que liga os vivos aos mortos. Nas almas, nutridas
de liturgia, constrói-se um mundo completo, hierárquico, o mundo dos três
reinos: inferno, purgatório, paraíso. A pobre vida terrestre é superada por
outra vida, espiritual e mais real. É o único momento da história ocidental
moderna que tem semelhança, se bem que longínqua, com o ‘realismo’ grego, capaz
de construir mundos ideais e de transformá-los em realidades.
Os criadores da nova mentalidade
tinham, às vezes, plena consciência disso. Citam-se agora as palavras com as
quais Rabanus Maurus exaltou a gramática ‘imperecível’, quase como se fosse um
sacramento: ‘Grammata sola carent fato,
fortemque repellunt’ [A palavra escrita, por si só, zomba do destino]. Se
fosse apenas disciplina escolar, seria a repetição do experimento carolíngio;
e, com efeito, houve, no tempo dos três imperadores de nome Otto, uma tentativa
de ‘renascença otoniana’; a religiosa alemã Hrotswith escreveu oito comédias hagiográficas, em estilo
terenciano, primeira tentativa do humanismo cristão para criar um teatro.
Desta vez, porém, já não se trata só de exercícios gramaticais de mestres-escolas.
Agora, a gramática rege a língua dos anjos. A nova literatura começa com um
coro interminável de hinos.
Os hinos mais antigos são quase
todos anônimos, como a própria liturgia, da qual chegam a fazer parte. A tradição
atribui a Rabanus Maurus (†856) o hino que clama pelo advento do
Espírito Santo: ‘Veni, creator Spiritus [...] Accende lumen sensibus: Infunde amorem
cordibus’; outros hinos são atribuídos a Venâncio Fortunato, Teodulfo
de Orléans, a nomes famosos do passado. Lugar mais preciso na história
literária está reservado a Notker
Balbulus († 912),
que, ao que parece, inventou uma nova forma litúrgica: a sequência, poemas
em versículos, espécie de verso livre; entre os autores – quase sempre
incertos – de sequências, aparece o polígrafo Hermanus Contractus († 1054),
que teria sido autor do ‘Salve, Regina misericordiae’, em que os versos ‘[...] ad te clamamus, exsules filii Hevae, ad te
suspiramus gementes et flentes in hac lacrymarum valle’ [a vós clamamos, os
degradados filhos de Eva, a vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de
lágrimas] exprimem a angústia da época.
A sequência esconde, no seu
aparente prosaísmo, certos artifícios, quase claudelianos: cadências que se
repetem, assonâncias e aliterações, rimas internas. Quando o hino se renovou,
sob a influência das ‘renascenças’ sucessivas, introduziram-se aqueles artifícios
em uma linguagem mais clássica, produzindo uma forma nova de poesia, arcaica e
‘moderna’ ao mesmo tempo. São desse tipo as poesias de Petrus Damiani. Este asceta furioso, que se flagela duramente a si
mesmo, não é menos rigoroso para com o mundo; inimigo feroz do papa Gregório
VII, porque o poder corrompe a alma, e inimigo feroz da filosofia e das letras,
porque a cultura corrompe o espírito. Mas esta alma ‘naturalmente conventual’ é
também a de um político, no mais alto sentido da palavra, a de um diretor de
consciências e homens; e quando o inimigo das letras pretende exprimir as suas ânsias
apocalípticas, a obsessão da morte e do demônio e do último dia do mundo, então
lhe ocorrem versos de uma precisão romana: ‘Hora novissima, tempora pessima sunt, vigelemus. Ecce minaciter imminet
arbiter ile supremus’ [Esta é a última hora, o pior dos tempos – vigiemos.
Eis que é iminente a ameaça do juízo final].
A aliança de asceta visionário e
político ascético volta na alma mais suave de Bernardo de Clairvaux [São Bernardo de Claraval]. Também ele é
inimigo do poder corruptor, mas o livro De consideratione, dirigido ao
papa Eugênio III, ensina uma política do amor. O rigorismo moral
de Bernardo, pregador extático sobre o Cântico dos Cânticos, acaba na
contemplação e na união mística, e o seu ascetismo cultural, de que
deu testemunho na luta inquisitorial contra Abelardo, é susceptível de efusões
líricas. Os hinos, que a tradição lhe atribuiu, não lhe pertencem. Mas
nasceram no seu ambiente, porque são do seu espírito o ardor místico do ‘Jesu dulcis memoria’ e a emoção dolorosa
do ‘Salve, caput cruentatum’.
São os hinos mais sentidos, mais líricos
da Igreja latina. São quase da mesma época numerosos outros hinos, anônimos
todos, e na maior parte marianos, que se assemelham bastante aos hinos pseudobernardinos,
distinguindo-se, no entanto, pelo lirismo mais musical. A modificação parece
puramente literária; mas é de uma importância muito maior.
Os hinos litúrgicos
caracterizam-se pela estranha magia da língua: vogais longas, com preferência
pelos ditongos; determinadas combinações de sons; recitativos monótonos; a
melodia do verso encontra-se ‘abaixo do limiar dos conceitos intelectuais’,
como se as palavras fossem feitas para acomodar-se a um ritmo já preexistente, à
inaudível harmonia das esferas. Essa magia linguística é que exprime as angústias
apocalípticas e júbilos angélicos do ‘homo
cluniacensis’. Pela magia linguística, o hino representa, em forma
adequada, certos sentimentos religiosos – a ‘majestas tremenda’, o ‘amor
mystic’ – que são, por si mesmos, inefáveis: os sentimentos ‘numinosos’
[do espírito, ou inspirados].
Esse traço característico é comum
aos hinos de todas as religiões em certa fase da sua evolução: ressoam hinos
assim nos templos budistas e nas sinagogas. O hino litúrgico em língua
latina distingue-se pelo fato de conservar a capacidade de exprimir conteúdos
dogmáticos de maneira muito precisa. Naqueles hinos marianos, porém, o
ritmo prejudica o conteúdo, transformando o dogma mariano em substrato de uma
poesia quase erótica; as cesuras não são determinadas pela lógica da frase, e
sim pela música do verso; um elemento musical, a rima, rompe o equilíbrio métrico;
os símbolos, que pretendem representar o dogma, tornam-se independentes.
O grande poeta dessa fase é Adam de S. Victor. Grande poeta
exatamente porque o valor da sua poesia reside mais nas qualidades literárias
do que nas qualidades litúrgicas. O poeta do ‘Salve, mater salvatoris’ e do ‘Ave,
virgo singularis’ [foi] um criador de símbolos: inventou ou popularizou
um conjunto impressionante de metáforas mariológicas. Desde Adam de St. Victor,
toda a gente entende imediatamente o ‘Rosa
mystica / Turris Davidica / Turris ebúrnea / Domus aurea / Foederis arca /
Janua coeli / Stella matutina’ [Rosa mística / Torre de David / Torre de
marfim / Casa de ouro / Arca da aliança / Porta do céu / Estrela da manhã]. Adam
de St. Victor moveu esses símbolos por meio de uma arte extraordinária do
verso, de troqueus de sete ou oito sílabas, fortemente ritmadas e suavemente
rimadas. Arte quase parnasiana, que devia acabar, nos seus imitadores, em
rotina.
O hino salvou-se pela influência
do grande movimento religioso que deu ímpeto inédito aos sentimentos numinosos
do franciscanismo. Mas a última palavra coube à solidificação do
sentimento: a volta ao conteúdo dogmático sem o qual o hino da Igreja perderia
a sua significação especial. Por isso, o maior teólogo dogmático da Igreja
romana também é o seu maior poeta litúrgico: Tomás de Aquino. Os seus poucos hinos – ‘Pangue, lingua, gloriosi’ e ‘Lauda,
Sion, Salvatorem’ – reúnem duas qualidades que raramente se encontram na
poesia lírica: a maior precisão e a maior musicalidade. Seria possível comentar
esses hinos como se fossem tratados teológicos sobre a eucaristia; ao mesmo
tempo, versos como ‘Tantum ergo
sacramentum / Veneremur cernui / Et antiquum documentum / Novo cedat ritui: / Praestet
fides supplementum / Sensuum defectui’ [Este grande sacramento /
inclinados, adoremos; / os antigos manuscritos / dão lugar a novo rito. / Sirva
a fé de complemento / na fraqueza dos sentidos] ficam indelevelmente na memória,
o que é um dos critérios mais seguros da grande poesia.
Esta última fase da hinografia
latina tem, outra vez, importância mais do que literária. A Igreja romana não
adotou o ‘credo ut intelligam’, algo fideísta,
de santo Anselmo, mas tomou como base do seu dogma a filosofia aristotélica.
Também não foi aos discípulos entusiasmados de são Francisco, e sim aos
filhos eruditos de são Domingos, que coube a tarefa de construir a catedral da
escolástica. Quando ficou pronto o edifício, que o ‘homo liturgicus’ de Cluny começara, era um sistema filosófico e uma
instituição jurídica”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário