quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Epopéias medievais: Canção de Rolando, Poema del mío Cid e Nibelungenlied.

Essa restauração iniciada dentro da Igreja acaba tomando lugar também fora dela e enfim tem início a cristianização definitiva de todo o Ocidente. CARPEAUX nos explica como isso acaba dando origem às epopéias medievais:

“Esse edifício [a ‘catedral escolástica’ do ‘homo liturgicus’] não está, de modo algum, separado do mundo profano. Ao contrário, só agora a Igreja é capaz de vencer os restos do paganismo germânico e penetrar até nos modos da vida profana. As catedrais levantam-se nas grand’places das cidades. Em todo o castelo há uma capela particular. Já com os cluniacenses, os ideais cristãos começam a modificar o ideal do guerreiro germânico; começa a esboçar-se o tipo do cavaleiro cristão, do futuro cruzado. As cabeças dessa gente estão cheias de lendas fantásticas, tradições pagãs, lembranças bélicas. Acontece, porém, que a elaboração literária desse mundo ideal é feita, principalmente, por clérigos. As origens da epopeia medieval ligam-se à cristianização definitiva do Ocidente.

A historiografia literária francesa distingue tradicionalmente três ciclos de epopeia medieval: o Ciclo de Carlos Magno, o Ciclo Bretão e o Ciclo Antigo.

O Ciclo de Carlos Magno, a ‘geste de Charlemagne’, tem origem histórica. A batalha de Roncesvales, contra os árabes espanhóis, em 15 de agosto de 778, nunca foi esquecida; tornou-se lendária. À memória do herói Rolando acrescentaram-se as lendas locais das igrejas, situadas nos caminhos da romaria para Santiago de Compostela, a qual tinha que passar por aqueles lugares de recordações bélicas. E os clérigos daquelas igrejas eram os que, conforme a hipótese de Bédier, elaboraram as lendas épicas. A intervenção de Carlos Magno e dos seus ‘pares’ naquela luta introduziu extensa matéria de outra proveniência, lembranças de guerras feudais francesas, na própria França e em todo o mundo; tradições germânicas, pedaços do ciclo bretão, lembranças das Cruzadas contribuíram também para a elaboração de numerosas gestas em torno da ‘geste de Charlemagne’. Guillaume d’Orange, Aimeri de Narbonne, Enfances Ogier, Berte aux grands pieds, Elie de Saint-Gilles, Fierabras pertencem mais diretamente ao ciclo central. Em Doon de Mayence, Renaud de Montauban, Raoul de Cambrai, Girart de Roussillon, Carlos Magno aparece menos simpático; porque essas gentes tratam da luta dos feudais contra o poder real, refletindo a época anterior à ‘Treuga Dei’. Enfim, em Enfances Godefroy, Chevalier au Cygne e na Chanson d’Antioche aparecem as Cruzadas. O conjunto, muito heterogêneo, constitui a ‘Geste française’.

O Ciclo Bretão, no qual se destacam os feitos do rei Artur e dos cavaleiros da Távola Redonda, as aventuras de Gavain, Lancelot, Tristão e Isolda, Parcifal e a Demanda do Santo Graal, tem origem céltica. Na Historia Britonum, de Nennius, obscuro historiador latino do século VIII, Artur aparece como herói dos celtas britânicos contra os invasores anglo-saxões. As versões autenticamente célticas da lenda estão no Mabinogion, coleção de narrações na língua do País de Gales; aqui a figura de Artur e dos cavaleiros já perdeu todo o caráter histórico, achando-se inteiramente transformados pela vivíssima imaginação céltica, nutrida de lendas de feiticeiros, fadas, florestas encantadas, castelos misteriosos, espectros. O Mabinogion, na sua forma atual, foi redigido só no século XIV; os seus heróis célticos já têm a feição de cavaleiros franco-normandos. Para o mundo não céltico, a mesma transformação foi operada pelo ‘historiador’ Geoffrey of Monmouth, cuja fantástica Historia regum Britanniae foi escrita entre 1135 e 1138; parece que Geoffrey pretendeu criar, intencionalmente, um pendant inglês da geste francesa. O último retoque, enfim, foi de natureza religiosa. Deu-se sentido cristão a certos episódios do ciclo, e como episódio final apareceu, em vez da viagem do rei Artur para a ilha de Avalun, paraíso dos celtas, a Demanda do Santo Graal e a transformação da Távola Redonda de grupo de cavaleiros aventurosos em irmandade de cruzados místicos.

O Ciclo Antigo representa a sobrevivência de certos temas greco-romanos, tratados de maneira anacrônica como se os heróis e heroínas de Homero e Virgílio fossem cavaleiros e damas medievais. A Idade Média ignorava as epopeias homéricas. Conheceu apenas duas abstrusas versões da decadência latina: as Ephemeris Belli Troiani, de um pretenso grego Dictys Cretensis, que foram traduzidas, no século IV da nossa era, pelo romano não menos obscuro Quintus Septimius; e a De excidio Troiae Historia, de um falso frígio Dares, do século V. Dictys e Dares distinguem-se de Homero, não só pelo valor literário, mas pelo ponto de vista. Tomam o partido dos troianos contra os gregos, e disso gostavam os cavaleiros e damas medievais, porque simpatizavam com o casal adulterino Páris e Helena. Motivos parecidos causaram a popularidade de um episódio da Eneida: Eneias e Dido. As versões romanescas das conquistas e viagens de Alexandre Magno satisfizeram a curiosidade geográfica. E um acaso incompreensível deixou sobreviver a fastidiosa Tebaida, de Estácio, da qual existem umas filhas medievais, igualmente feias. Em geral, a Idade Média viu os enredos de Homero e Virgílio pelos olhos de Ovídio; o interesse no assunto era principalmente erótico, de trovadores e clérigos enamorados; o Alexandre Magno medieval não era – como acontece, em geral, com a literatura de viagens – um herói de evasão, e sim um trânsfuga do mundo fechado dos castelos e das igrejas. Era difícil encontrar sentido religioso na ‘matière antique’. Em todo o caso, justificou-se o interesse por Troia e pelo troiano Eneias, por terem sido os troianos que fundaram Roma, mais tarde capital do cristianismo, de modo que as aventuras amorosas de Páris e Eneias estavam preestabelecidas no plano da Providência; e o aventuroso Alexandre Magno foi interpretado como símbolo do homem que viaja, sempre insatisfeito, até o fim do mundo, para encontrar a verdade divina. Essas interpretações não passaram de artifícios; não é possível negar que o ciclo antigo e a maneira de tratá-lo representaram uma irrupção de espírito leigo.
            
[...]

O problema [a questão das origens dos três ciclos e, portanto, da origem da literatura profana medieval] assemelha-se à questão homérica, e nasceu, realmente, com ela. O romantismo, grande amador da poesia popular e admirador do gênio coletivo, acreditava que no começo da literatura havia pequenos poemas populares, de autoria anônima, reunidos depois por ‘redatores’ pessoalmente sem importância; esta solução satisfez também a admiração dos românticos ao gênio instintivo e o desprezo à epopeia intencionalmente feita do classicismo. Deste modo, Lachmann extraiu do Nibelungenlied 20 ‘canções originais’, que teriam constituído a base da redação posterior. Fauriel fez a mesma operação cirúrgica com a Chanson de Roland, e Durán com o Poema del Cid. Enfim, Gaston Paris organizou a teoria definitiva: no começo havia canções curtas, ‘cantilènes’ de origem popular, que foram reunidas, depois, em epopeias coerentes, as quais, afinal, se dissolveram em ‘romances’, no sentido espanhol da palavra romance.

[...] Como qualidades essenciais da lenda [oral] primitiva notam-se a falta de começo e o fim do enredo e o gosto da repetição, que são também qualidades típicas da epopeia primitiva, das ‘gestes’. As canções revelam-se como produtos de decomposição, e as grandes ‘epopeias populares’ medievais, que têm começo e fim, apresentam-se como obras de poetas individuais, se bem que anônimos.

A primeira vítima das novas teorias é a classificação tradicional das ‘gestes’ em três ciclos. Quanto ao espírito que preside ao tratamento dos assuntos, é perfeitamente o mesmo nas obras dos três ciclos, de modo que a classificação conforme os assuntos não se justifica. Quanto aos próprios assuntos, o ciclo bretão relaciona-se pouco com as lendas célticas que lhe serviram de base, e o ciclo antigo nada tem que ver com os modelos greco-romanos: as ‘gestes’ desses dois ciclos são criações tardias e artificiais. Resta a ‘geste de Charlemagne’, que, no entanto, não está isolada na Europa; o Poema de mío Cid e o Nibelungenlied estão ao lado da Chanson de Roland. São as três primeiras criações importantes das literaturas nacionais da Europa".

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