Essa
restauração iniciada dentro da Igreja acaba tomando lugar também fora dela e
enfim tem início a cristianização definitiva de todo o Ocidente. CARPEAUX nos
explica como isso acaba dando origem às epopéias
medievais:
“Esse edifício
[a ‘catedral escolástica’ do ‘homo liturgicus’]
não está, de modo algum, separado do mundo profano. Ao contrário, só agora a
Igreja é capaz de vencer os restos do paganismo germânico e penetrar até nos
modos da vida profana. As catedrais levantam-se nas grand’places das
cidades. Em todo o castelo há uma capela particular. Já com os cluniacenses, os
ideais cristãos começam a modificar o ideal do guerreiro germânico; começa a
esboçar-se o tipo do cavaleiro cristão, do futuro cruzado. As cabeças dessa
gente estão cheias de lendas fantásticas, tradições pagãs, lembranças bélicas.
Acontece, porém, que a elaboração literária desse mundo ideal é feita,
principalmente, por clérigos. As origens da epopeia medieval ligam-se à
cristianização definitiva do Ocidente.
A historiografia literária francesa
distingue tradicionalmente três ciclos de epopeia medieval: o Ciclo de Carlos Magno, o Ciclo Bretão e o Ciclo
Antigo.
O Ciclo de Carlos Magno, a ‘geste
de Charlemagne’, tem origem histórica. A batalha de Roncesvales, contra os árabes
espanhóis, em 15 de agosto de 778, nunca foi esquecida; tornou-se lendária. À
memória do herói Rolando acrescentaram-se as lendas locais das igrejas,
situadas nos caminhos da romaria para Santiago de Compostela, a qual tinha que
passar por aqueles lugares de recordações bélicas. E os clérigos daquelas
igrejas eram os que, conforme a hipótese de Bédier, elaboraram as lendas épicas.
A intervenção de Carlos Magno e dos seus ‘pares’ naquela luta introduziu
extensa matéria de outra proveniência, lembranças de guerras feudais francesas,
na própria França e em todo o mundo; tradições germânicas, pedaços do ciclo
bretão, lembranças das Cruzadas contribuíram também para a elaboração de
numerosas gestas em torno da ‘geste de Charlemagne’. Guillaume d’Orange,
Aimeri de Narbonne, Enfances Ogier, Berte aux grands pieds, Elie de
Saint-Gilles, Fierabras pertencem mais diretamente ao ciclo central. Em Doon
de Mayence, Renaud de Montauban, Raoul de Cambrai, Girart de Roussillon, Carlos
Magno aparece menos simpático; porque essas gentes tratam da luta dos feudais
contra o poder real, refletindo a época anterior à ‘Treuga Dei’. Enfim, em Enfances
Godefroy, Chevalier au Cygne e na Chanson d’Antioche aparecem as
Cruzadas. O conjunto, muito heterogêneo, constitui a ‘Geste française’.
O Ciclo Bretão, no qual se destacam os feitos do rei Artur e dos
cavaleiros da Távola Redonda, as aventuras de Gavain, Lancelot, Tristão e Isolda,
Parcifal e a Demanda do Santo Graal, tem origem céltica. Na Historia Britonum,
de Nennius, obscuro historiador
latino do século VIII, Artur aparece como herói dos celtas britânicos contra os
invasores anglo-saxões. As versões autenticamente célticas da lenda estão no Mabinogion,
coleção de narrações na língua do País de Gales; aqui a figura de Artur e dos
cavaleiros já perdeu todo o caráter histórico, achando-se inteiramente
transformados pela vivíssima imaginação céltica, nutrida de lendas de
feiticeiros, fadas, florestas encantadas, castelos misteriosos, espectros. O Mabinogion,
na sua forma atual, foi redigido só no século XIV; os seus heróis célticos já têm
a feição de cavaleiros franco-normandos. Para o mundo não céltico, a mesma
transformação foi operada pelo ‘historiador’ Geoffrey of Monmouth, cuja fantástica Historia regum Britanniae foi
escrita entre 1135 e 1138; parece que Geoffrey pretendeu criar,
intencionalmente, um pendant inglês da geste francesa. O último
retoque, enfim, foi de natureza religiosa. Deu-se sentido cristão a certos episódios
do ciclo, e como episódio final apareceu, em vez da viagem do rei Artur para a
ilha de Avalun, paraíso dos celtas, a Demanda do Santo Graal e a transformação
da Távola Redonda de grupo de cavaleiros aventurosos em irmandade de cruzados místicos.
O Ciclo Antigo representa a sobrevivência de certos temas
greco-romanos, tratados de maneira anacrônica como se os heróis e heroínas de Homero
e Virgílio fossem cavaleiros e damas medievais. A Idade Média ignorava as
epopeias homéricas. Conheceu apenas duas abstrusas versões da decadência
latina: as Ephemeris Belli Troiani, de um pretenso grego Dictys Cretensis,
que foram traduzidas, no século IV da nossa era, pelo romano não menos obscuro
Quintus Septimius; e a De excidio Troiae Historia, de um falso frígio
Dares, do século V. Dictys e Dares distinguem-se de Homero, não só pelo valor
literário, mas pelo ponto de vista. Tomam o partido dos troianos contra os
gregos, e disso gostavam os cavaleiros e damas medievais, porque simpatizavam
com o casal adulterino Páris e Helena. Motivos parecidos causaram a
popularidade de um episódio da Eneida: Eneias e Dido. As versões
romanescas das conquistas e viagens de Alexandre Magno satisfizeram a
curiosidade geográfica. E um acaso incompreensível deixou sobreviver a
fastidiosa Tebaida, de Estácio, da qual existem umas filhas medievais,
igualmente feias. Em geral, a Idade Média viu os enredos de Homero e Virgílio
pelos olhos de Ovídio; o interesse no assunto era principalmente erótico, de
trovadores e clérigos enamorados; o Alexandre Magno medieval não era – como acontece,
em geral, com a literatura de viagens – um herói de evasão, e sim um trânsfuga
do mundo fechado dos castelos e das igrejas. Era difícil encontrar sentido
religioso na ‘matière antique’. Em
todo o caso, justificou-se o interesse por Troia e pelo troiano Eneias, por
terem sido os troianos que fundaram Roma, mais tarde capital do cristianismo,
de modo que as aventuras amorosas de Páris e Eneias estavam preestabelecidas no
plano da Providência; e o aventuroso Alexandre Magno foi interpretado como símbolo
do homem que viaja, sempre insatisfeito, até o fim do mundo, para encontrar a
verdade divina. Essas interpretações não passaram de artifícios; não é possível
negar que o ciclo antigo e a maneira de tratá-lo representaram uma irrupção de
espírito leigo.
[...]
O problema [a questão das origens
dos três ciclos e, portanto, da origem da literatura profana medieval] assemelha-se
à questão homérica, e nasceu, realmente, com ela. O romantismo, grande amador
da poesia popular e admirador do gênio coletivo, acreditava que no começo da
literatura havia pequenos poemas populares, de autoria anônima, reunidos depois
por ‘redatores’ pessoalmente sem importância; esta solução satisfez também a
admiração dos românticos ao gênio instintivo e o desprezo à epopeia
intencionalmente feita do classicismo. Deste modo, Lachmann extraiu do Nibelungenlied
20 ‘canções originais’, que teriam constituído a base da redação posterior.
Fauriel fez a mesma operação cirúrgica com a Chanson de Roland, e Durán com
o Poema del Cid. Enfim, Gaston Paris organizou a teoria definitiva:
no começo havia canções curtas, ‘cantilènes’ de origem popular, que foram
reunidas, depois, em epopeias coerentes, as quais, afinal, se dissolveram em ‘romances’,
no sentido espanhol da palavra romance.
[...] Como qualidades essenciais da
lenda [oral] primitiva notam-se a falta de começo e o fim do enredo e o gosto
da repetição, que são também qualidades típicas da epopeia primitiva, das ‘gestes’. As canções revelam-se como
produtos de decomposição, e as grandes ‘epopeias populares’ medievais, que têm
começo e fim, apresentam-se como obras de poetas individuais, se bem que anônimos.
A
primeira vítima das novas teorias é a classificação tradicional das ‘gestes’ em três ciclos. Quanto ao espírito
que preside ao tratamento dos assuntos, é perfeitamente o mesmo nas obras dos
três ciclos, de modo que a classificação conforme os assuntos não se justifica.
Quanto aos próprios assuntos, o ciclo bretão relaciona-se pouco com as lendas célticas
que lhe serviram de base, e o ciclo antigo nada tem que ver com os modelos
greco-romanos: as ‘gestes’ desses
dois ciclos são criações tardias e artificiais. Resta a ‘geste de Charlemagne’, que, no entanto, não está isolada na Europa;
o Poema de mío Cid e o
Nibelungenlied estão
ao lado da Chanson de Roland.
São as três primeiras criações importantes das literaturas nacionais da
Europa".
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