quinta-feira, 28 de maio de 2015

Os opositores da decadência romana. Oitava leitura: "Meditações", de Marco Aurélio

CARPEAUX havia dito que, com Horácio e Virgílio, acabaram-se as tentativas de poesia de interesse coletivo, ou seja, que desde então, toda a literatura romana está na oposição individualista, com certa resignação estóica, de uma gente culta que se põe sempre contra o despotismo dos Césares. Isto, segundo ele, não é um fenômeno meramente transitório, mas exprime o caráter íntimo da literatura romana, que quase nunca acreditou seriamente na possibilidade de penetrar na realidade hostil, e que acabou retirando-se para uma região na qual se fundem individualismo, intelectualismo, temperamento elegíaco e resignação estoica. São esses traços, portanto – ao menos para CARPEAUX –, a essência mesma de uma “última fase” agonizante da literatura romana.

A seguir, CARPEAUX comenta uma série de retóricos, poetas, prosadores, biógrafos e historiadores – literatos romanos “da última hora”, que exemplificam, de uma forma ou de outra, o diagnóstico que deu acima; seriam como que os opositores da decadência. Resumindo um pouco as análises, temos o seguinte:

“O sentido político da oposição está claro em Lucano, que morreu como conspirador contra Nero. A Farsália é hoje pouco lida; já não se leem as epopeias históricas, e certos manuais chegam a considerar Lucano como sucessor fraquíssimo de Virgílio. Nada mais errado. Apesar da diferença dos temperamentos, é Lucano de uma originalidade absoluta; foi o primeiro poeta que pensou em basear uma epopeia em acontecimentos históricos, até em acontecimentos do passado imediato. Lucano descreve [...] o fim da República Romana. O assunto histórico-político implica o abandono do aparelho mitológico: nesse sentido a Farsália é uma criação sui generis na literatura universal; nem Voltaire teve essa coragem. E Lucano é corajoso. Ousa tomar atitude contra o César, opondo-se ao consenso do mundo e dos séculos. [...] É um poeta da grande cólera, como poucos na literatura universal, um satírico vigoroso, um mestre do desprezo altivo. A indignação moral e a coragem política têm raízes no seu credo estoico. Lucano é o primeiro estoico autêntico da literatura romana – daí a sua linguagem violenta”.

Sêneca é homem da ação também; mas a situação da ‘opposition sous les Césars’ explica bem que na sua vida a atividade literária e a atividade política estejam separadas, encontrando-se só no final, quando o político obedeceu ao conselho do literato estoico, suicidando-se. Dentro da sua atividade literária existe separação semelhante: entre os escritos filosóficos e as tragédias. Estas, as únicas tragédias romanas que subsistem, são obras de epígono; versões fortemente retóricas de peças gregas, substituindo a vida dramática por efeitos brutais, assassínios no palco, aparições de espectros vingadores, discursos violentos, cheios de brilhantes lugares-comuns filosóficos; até nas situações mais trágicas as personagens soltam trocadilhos espirituosos, de ironia cruel.

O filósofo Sêneca é como se fosse outra pessoa. Escreve em estilo coloquial, embora com energia apaixonada, violando a sintaxe, acumulando as elipses. A moral que recomenda ao seu correspondente Lucílio [...] é o estoicismo. Mas Sêneca está longe da imperturbabilidade estoica que professa. Está possuído pela imagem da morte que em toda a parte o espia, e a recomendação permanente do suicídio, como saída definitiva [...] é menos evasão do que tentativa de vencer a morte pela própria morte. Qualquer oportunidade de ‘sair’ vale como caminho da liberdade.

Em face dessa moral do suicídio, não se compreende bem como tantos séculos puderam acreditar no cristianismo clandestino de Sêneca, inventando até um encontro dele com o apóstolo Paulo. Na verdade, Sêneca não foi influenciado pela religião cristã; foi, muito ao contrário, o cristianismo, em sua atitude ética, que foi profundamente influenciado pelo estoicismo de Sêneca, transformando porém o suicídio em martírio. O que Sêneca tinha em comum com os cristãos da Igreja primitiva era a angústia. A mesma angústia que invade as suas tragédias, alterando completamente o espírito dos seus modelos gregos, transformando-os em quadros grandiosos de tirania sangrenta, medo, pânico e terror sinistro.

A filosofia estoica de Sêneca é uma tentativa, apaixonada porque infrutífera, de vencer a angústia, que se exprime nas suas tragédias. Sêneca, como filósofo, está convencido da possibilidade de vencer o terror pela elevação espiritual [...]. Sêneca, como poeta, sabe o mundo povoado de demônios e de almas decadentes, já incapazes de resistir. Em versos notáveis anuncia a ‘última decadência dos tempos’, e a necessidade de morrer, sem temores, com este mundo”.

“[N]a sátira de Petrônio, sátira sem moralismo, [...] o satírico participa da moral do seu ambiente: novos-ricos, pederastas, parasitos, levando uma vida devassa em bordéis e estações de águas. [...] As intenções de Petrônio não são muito puras; parece que pretendeu ridicularizar a oposição burguesa e intelectual para agradar a Nero. Nós, porém, não temos motivos para acusá-lo de calúnia nem para indignar-nos com a licenciosidade das suas expressões. O ambiente de Petrônio é o das nossas capitais, da nossa ‘alta sociedade’. Apenas somos nós que nem sempre temos a coragem de dizer a verdade com o realismo do romano, nem a capacidade de exprimi-la com o seu riso espirituoso. A obra de Petrônio é de estranha e alegre atualidade. Se a obra completa de Petrônio fosse conservada, apareceria ele, talvez, maior do que os poetas da sua época. E dessa época poucos restam”.

“Somente no século II, quando o pesadelo do despotismo era desaparecido e a oposição política se tornara dispensável, é que os conformistas cínicos ou ingênuos desaparecem também; e surge, então, outra oposição mais radical. Em Juvenal, chega quase à força de expressão profética. Juvenal trata, nas suas 16 sátiras, os assuntos de Horácio: hipócritas devassos (sát. II), loquazes importunos na rua (III), efeminação dos ricos (IV), lascívia das mulheres (VI), literatos ridículos (VII), caçadores de heranças (IX), métodos errados de educar os filhos (XIV), orgulho dos militares (XV). Mas Juvenal não tem nada de Horácio; ou antes, Horácio não tem nada de Juvenal. Este estoico duro só pretende dizer a verdade, e neste afã encontra as palavras mais justas, mais definitivas. ‘Si natura negat, facit indignatio versum’; e a indignação não lhe negou as expressões de um profeta bíblico. Como um Amós ou um Jeremias, Juvenal sentou-se no alto da colina e viu a massa brutalizada, enfurecida pelas paixões mais baixas, dançando e gritando sem perceber a tempestade que se aproximava. Roma apresentou-se ao seu espírito excitado como um grande quadro histórico do século XIX, de Couture: uma aurora terrível, iluminando a sala cheia de mulheres embriagadas, homens esgotados, o vinho derramado por toda a parte. E Juvenal gritou – não contra o déspota, como o haviam feito Lucano e os intelectuais, mas contra a sociedade inteira. Juvenal é um tribuno irritado – se bem que apolítico –, um panfletista de eloquência torrencial e sem requintes poéticos, um profeta dos subúrbios de Roma, a voz da consciência romana. Os seus versos aliás fariam melhor figura em linhas de prosa”.

“[Q]uanto ao prosador Suetônio; é verdade que [em A vida dos doze Césares] ele conta os crimes horrorosos de um Tibério, de um Calígula, de um Nero, de um Domiciano, com a frieza de um autor de relatórios oficiais; então, crueldade e infâmia ressaltam tanto mais quanto os horrores são apresentados como as coisas mais naturais do mundo. Mas Suetônio, sem vontade de mentir, nem sempre disse a verdade. Caluniou Tibério, porque não entendeu nada da tragédia psicológica do imperador traído, e quem sabe quantas vezes Suetônio só notou a maledicência e as calúnias de cortesãos preteridos. Uma larga credulidade plebeia e a vontade de atribuir tudo aos ‘ricos’ [que] também se encontram em Juvenal”.

“Cumpre não esquecer que a literatura romana é de oposição sistemática. É uma literatura de elegíacos e satíricos, de invidualistas. Só assim se compreende a atitude de Tácito. Este grande romano foi interpretado pela posteridade como ele pretendeu ser interpretado: como advogado destemido da nação mais nobre contra a tirania mais infame. Mas não é tanto assim; e Tácito nos deixou um documento, escrito na mocidade, no qual revela os seus verdadeiros motivos. O Dialogus de Oratoribus, sive de causis corruptae eloquentiae, é uma conversa entre quatro advogados sobre a decadência da retórica romana: atribuem a responsabilidade dessa decadência aos métodos pedagógicos errados, ao mau gosto literário, à servidão política. Roma, é a conclusão, está em decadência irremediável, e a eloquência afunda-se com a cidade; é melhor deixar a prosa e retirar-se para a poesia. O estranho, no caso, é que Tácito não obedeceu ao próprio conselho. A decadência continuou assunto principal da sua atividade literária – mas sempre em prosa. Parece aristocrata, mas na sua época já não havia aristocracia; o despotismo nivelara tudo. Tácito é burguês e intelectual, preocupado com a decadência da retórica. É um moderado. A sua oposição é mais moral do que política; e por isso é oposição sistemática. [O] problema psicológico está no próprio autor e chama-se: o comportamento do indivíduo livre em face da tirania e do aviltamento geral. Tácito resolveu o problema pelas expressões do pessimismo mais profundo, e foi injusto: esqueceu que a sua época produzira um Tácito”.

Como parêntese, CARPEAUX faz um brilhante comentário sobre os escritores satíricos:

“No exagero profissional dos satíricos existe uma contradição: são pessimistas sistemáticos, acreditando na maldade permanente da natureza humana, e, por outro lado, são pessimistas imperfeitos, convencidos de que o homem é melhor em outras partes – na Germânia, de Tácito – ou que o homem foi melhor nos bons velhos tempos – na República, de Juvenal; só na própria época e na própria cidade do satírico a corrupção é enorme, a catástrofe iminente. É por força dessa contradição que o satírico tem razão de modo geral e é desmentido pelos fatos particulares”.

Luciano, natural de Samosata, na Mesopotâmia, é um jornalista [...]. Num diálogo seu, Deorum concilium, os deuses olímpicos, reunidos em conselho de emergência, deliberam providências contra a concorrência desleal dos deuses asiáticos importados. O próprio Luciano é produto de importação asiática. Não entende realmente a civilização grega, da qual se serve como os parasitos se servem da capa de filósofo. [...] No Somnium, diálogo autobiográfico, conta como lhe apareceram, em sonho, duas deusas, propondo-lhe rumos diferentes na sua carreira, e como ele abandonou a deusa da escultura para seguir a da ‘retórica’, quer dizer, a literatura e o jornalismo. Para isso, era mister tornar-se ‘filósofo’. Mas se os filósofos são todos uns charlatães? É porque o mundo, sob a lua, não é mais moral nem mais inteligente do que o Olimpo; quer ser enganado pelos falsos ‘intelectuais’ que se vendem a preço baixo – aparecem assim em De mercede conducti, autorretrato involuntário de Luciano.

O mundo de Luciano é um caos espiritual. O ecletismo filosófico de Plutarco, transformado em mercado de opiniões. O céu de Píndaro, transformado em Olimpo de Offenbach, de opereta. Tudo está de cabeça para baixo, revelando as suas vergonhas e ridículos. Visto do Hades (Menippus, Mortuorum dialogi) ou da Lua (Icaromenippus), o nosso mundo é um manicômio. Luciano é um grande humorista: Erasmo, Rabelais, Swift, Voltaire encontram nesse grego falsificado as melhores inspirações. Mas não é um satírico, porque não conhece critério moral. Não compreende aquilo de que zomba. Dá-se ares de Anti-Homero, mas não passa de animador de um show humorístico na qual homens e deuses dançam o último cancã do mundo greco-romano”.

“[O] romance Metamorphoseon seu Asinus aureus, de Apuleio, [...] é um panorama completo da época. [...] O romance parece autobiográfico, com as suas aventuras lascivas e vicissitudes de literato viajante, embora a insinceridade inata de Apuleio e a sua habilidade de narrador não permitam distinguir realidade e ficção, nem na sua ficção nem na sua vida. [...] Apuleio é um grande literato. É maior do que Luciano, porque tem um estilo próprio. Escreve um latim meio requintado, meio bárbaro, em que se misturam as frases feitas da escola retórica, as elegâncias do jornalismo grego, as fórmulas místicas do Oriente e a linguagem violenta de Tertuliano. É uma figura da época: o literato desarraigado que encontra a solução das suas angústias nos arrepios místicos do Oriente”.

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Depois de tantos nomes e tanta oposição “sistemática”, surgem aqueles que CARPEAUX considera, esses sim, “os últimos romanos”: Marco Aurélio e Boécio. Quanto ao primeiro, CARPEAUX nos diz:

“Existem vários autores de língua latina aos quais a posteridade conferiu o título honroso de ‘o último dos romanos’. Na verdade, no processo vagaroso da decomposição apareceram muitos ‘últimos romanos’ – o ‘realmente último’ será Boécio – mas o primeiro entre eles foi um grego: o imperador romano e escritor grego Marco Aurélio.

O imperador, educado por filósofos estoicos, era homem de ação e escritor ao mesmo tempo. Filósofo introspectivo e defensor corajoso das fronteiras setentrionais do Império contra os bárbaros. Morreu onde fica hoje a cidade de Viena, e em Roma erigiram-lhe uma estátua, a primeira estátua equestre de um imperador; passado não muito tempo, o monumento verá transformado o bairro de Latrão em ninho de malária e de ladrões. Tudo, no destino de Marco Aurélio, é paradoxo: o homem de ação por desespero, e escritor por firme resolução; sendo o último dos grandes individualistas romanos, anota os movimentos da sua alma solitária em língua grega. Mas, como ele dizia, ‘tudo o que te acontecerá estava preestabelecido assim, desde o começo, e a cadeia das coisas ligava firmemente a tua existência e o teu destino’.

Assim fala um estoico, cheio de fé na providência, ‘cujos germes se encontram em toda a parte’. Mas a doutrina estoica do ‘Sentido’, espalhado em germes por toda a parte, serve ao imperador romano, não para construir um universo ideal, e sim para justificar a própria existência de indivíduo isolado. Mas Marco Aurélio é romano; quer dizer, quando pensa, não escapa à trivialidade do lugar-comum. Mas dá testemunho de que, no fim da história romana, até o imperador se encontra sozinho em face da realidade impenetrável. E ela aparece-lhe na figura da Morte. O livro inteiro das Meditações foi escrito para afugentar a obsessão desse homem poderoso com a ideia da morte. A ideia estoica da coesão na Natureza, do determinismo razoável que rege tudo, não lhe serve para aprender a viver, e sim a morrer. Ao contrário do que muitas vezes se pensava, Marco Aurélio, que fez mártires, nada tem de cristão; o que o faz parecer cristão é a clemência meio indiferente de uma melancolia que ele sabe nada adiantar. Marco Aurélio soube exprimir esse pensamento banal em mil fórmulas, cada vez mais impressionantes, que fizeram do seu livro um breviário para os velhos, durante séculos a fio; a sua eloquência simples e convincente de uma ideia fixa revela a sinceridade de um grande poeta”.

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Na pasta de arquivos online, consta um PDF das "Meditações", de Marco Aurélio:
https://www.dropbox.com/home/Grupo%20de%20Estudo%20e%20Leitura%20dos%20Cl%C3%A1ssicos

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Sétima leitura: "Eneida", de Virgílio

Segue um BREVE RESUMO da trama de ENEIDA, de Virgílio:

Enéias, troiano sobrevivente do massacre da cidade de Tróia pelos gregos (trama da Ilíada, de Homero), que havia fugido com seu pai, Anquises, seu filho Ascânio e sua mulher, Creúsa (que morre logo no início da fuga), na noite mesma em que os gregos, através do Cavalo de Madeira, adentraram e destruíram a cidade troiana, aporta agora nas praias da cidade de Cartago, governada pela Rainha Dido, que o recebe com júbilo (Canto I). Foi dito pelos deuses – e ele bem o sabe, já que é filho e protegido de Vênus (Afrodite) – que dele virá uma nova raça, grande e vitoriosa, da região do Lácio (Latium, em latim): Roma.

Logo no Canto II, a pedidos de Dido, Enéias narra tudo que aconteceu no fatídico dia da queda de Tróia. Após essas recordações, conta ainda tudo pelo que passou para chegar até Cartago, após deixar Tróia (Canto III). Dido, profundamente apaixonada por ele, convida todos para uma caçada, em meio à qual, sob forte chuva e sólidas paredes de uma caverna recôndita, ela e Enéias amam-se fervorosamente. O deus Mercúrio, a pedido de Júpiter (Zeus), vem lembrar Enéias de seu propósito e, nos dias seguintes, ele parte para sua missão, tentando de tudo para que Dido não o visse partir. Ela, que logo percebe, já abandonada desmonta em desolação e fúria, e se suicida (Canto IV).

Após celebrar jogos fúnebres em honra à morte de seu pai (Canto V), Enéias, fazendo uma escala em Cumas, encontra-se com uma sacerdotisa de Apolo e obtém dela a permissão para descer ao mundo dos mortos para falar uma última vez com seu pai (Canto VI). Seu pai lhe dá importantes detalhes sobre sua viagem e profetiza as glórias de Roma.

Enéias, enfim, chega à região do Lácio e logo encontra Latino, o Rei, que lhe oferece a mão de sua única filha e herdeira, Lavínia. Turno, Rei do povo rútulo, apaixonado por ela, não se conforma (Canto VII). A Enéias é aconselhado unir-se a Evandro, um ancião da cidade, na guerra contra os rútulos; ambos selam um pacto de ajuda entre latinos e troianos. Enéias recebe de Vênus, sua mãe, um escudo confeccionado pelo deus Vulcano, no qual há figuras de glórias futuras de Roma (Canto VIII).

Ausente, porque havia ido pedir abrigo aos etruscos a conselho de Evandro, Enéias não vê Turno incendiar a frota dos troianos, que, no entanto, permanecem todos a salvo (Canto IX). Enéias retorna, após longa narrativa de uma assembleia entre os deuses, e descobre a morte de Palante, filho de Evandro, pelas mãos de Turno, que ficou com suas armas (Canto X). Enéias envia o cadáver de Palante a Evandro e chora com ele sua morte (Canto XI). Marcha, contudo, para a batalha final com Turno.

Júpiter e Juno (Zeus e Hera) decidem o desfecho de tudo: os latinos se unirão aos troianos na fundação de Roma e Enéias vencerá Turno na grande batalha, o que de fato acontece. Enéias, com Turno a seus pés, prestes a poupar-lhe a vida, vê brilhar nele a armadura de Palante; convencido do que fazer, desfere no rútulo o golpe fatal. É o fim da Eneida.

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Na pasta de arquivos online, consta um PDF com os 4 primeiros cantos da Eneida, na tradução de Carlos Alberto Nunes:
https://www.dropbox.com/home/Grupo%20de%20Estudo%20e%20Leitura%20dos%20Cl%C3%A1ssicos

Os poetas romanos

Falando rapidamente dos três primeiros poetas romanos dignos de nota, Catulo, Propércio e Tibulo, os comentários de CARPEAUX podem se resumir no seguinte:

Catulo é um poeta muito humano. A ele também, nada de humano foi alheio [...]. Catulo é, no primeiro século antes da nossa era, um poeta moderno. É, entre os poetas, o primeiro que se comove com a paisagem. [...] Dos outros elegíacos romanos, só Propércio se compara um tanto a ele. A imitação dos modelos gregos sufoca-o. É um decadente. Complica os assuntos com multidão de alusões mitológicas, perde-se em confusões sintáticas; a sua linguagem é a mais obscura e difícil de todos os poetas romanos. [...] Propércio é artista; menos nas tentativas de solenes elegias patrióticas [...] do que na música extraordinária das suas palavras. [...] Enfim, quanto a Tibulo, é forçoso confessar que não somos capazes de formar uma ideia bem clara da sua poesia. [...] É confuso como Propércio, mas muito mais suave [...]. Tibulo é, entre os elegíacos, o mais elegíaco”.

“A injustiça evidente da preferência dada a Tibulo explica-se pela modificação semântica que a acepção da palavra elegia sofreu. Propércio é elegíaco; mas não é ‘elegíaco’ sentimental. Com mau gosto infalível, a posteridade elegeu Ovídio, o mais sentimental entre os elegíacos romanos, excessivamente sentimental porque desiludido pela própria fraqueza, e conferiu-lhe uma glória póstuma sem par. ‘Sentimentalismo é sentimento, comprado abaixo do preço’ – a frase de Meredith aplica-se bem a Ovídio”.

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Quanto a Ovídio, CARPEAUX diz:

“A diversidade das suas obras revela o virtuose. Sabe fazer tudo. Cria, nos Amores e nas Heroides, cartas imaginárias de amantes famosos, uma ‘teoria do amor’ que exercerá influência profunda nos troubadours da Idade Média. Cria até, na Arte de Amar, uma verdadeira estratégia da conquista erótica, e logo depois, nos Remedia Amoris, a estratégia da ‘libertação’. Os Fastos acompanham com pequenas poesias narrativas o calendário das festas romanas; ao lado de idílios encantadores, aparecem versões fastidiosas de episódios patrióticos – é pela segunda vez, depois de Propércio, que encontramos isso. As Metamorfoses regalam-nos com uma multidão de contos mitológicos bem conhecidos, conhecidos até demais: Vênus e Adônis, Faetonte, Píramo e Tisbe, Perseu e Andrômeda, Eco e Narciso, Ícaro, Níobe, Orfeu, Midas, Dáfnis, Filêmon e Baucis, Polifemo e Galateia. Ovídio contaminou a literatura universal, fornecendo-lhe assuntos tediosos; enfim, o tédio tornou-se seu próprio destino. Exilado, por motivo de qualquer affaire de femme, para a região bárbara do Mar Negro, mandou para Roma suas elegias sentimentais: as Tristes e Epistolae ex Ponto. São comoventes. Mas Ovídio não é um poeta sério. Nele perdeu-se, pela ambição do mitologismo falso, um notável poeta ligeiro, talvez um humorista à maneira de Heine ou Musset. Contudo, não são nomes desprezíveis estes, embora não convenha colocá-los ao lado de Goethe e Racine. Mas foi justamente isso o que aconteceu com Ovídio. A posteridade tomou-o a sério: já o lê nas escolas a mocidade, há quase doze séculos. Os meninos não lhe compreendem o erotismo; os adultos não lhe compreendem a malícia. Do outro mundo, Ovídio poderia repetir o que gemeu entre os bárbaros do Oriente onde ninguém lhe compreendeu a língua: ‘Barbarus hic ego sum, quia non intelligor ulli’ [Sou um bárbaro neste lugar, aqui onde ninguém me entende]. É um artista elegante, um parnasiano à maneira de Banville”.

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Quanto à poesia destes que são tidos como os maiores poetas romanos – Ovídio, Horácio e Virgílio –, CARPEAUX explica suas opiniões, que podem soar um tanto controversas a princípio:

“A desporporção ovidiana entre assunto e estilo é um fenômeno geral da literatura romana; é reflexo da desproporção entre a realidade romana e a literatura latina. As tentativas de poesia patriótica em Propércio e Ovídio são sintomas de uma crise aguda dessa convivência, daquele momento transitório que foi considerado pela posteridade como época de apogeu da literatura latina; a ‘época augustana’. Por isso, aconteceu que os lugares de maiores poetas romanos, devidos a Lucrécio e Catulo, couberam, na tradição dos séculos, a Horácio e Virgílio.

O restabelecimento da paz por Autusto parecia tornar possível a conjunção dos esforços políticos e culturais. A proteção que Mecenas deu às letras é uma tentativa de conseguir artificialmente a unidade das realidades material e espiritual, própria dos gregos. O Estado romano esperava os seus Homeros e Píndaros. A literatura latina, porém, por força das suas origens, é individualista e elegíaca. A dois grandes poetas menores, Horácio e Virgílio, coube a tarefa de realizar uma poesia maior. A consequência foi o artifício sublime: o classicismo”.

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Quanto a Horácio, diz CARPEAUX:

Horácio é, talvez, o maior entre os poetas menores: sensível sem sentimentalismo, alegre sem excesso, espirituoso sem prosaísmo. Para falar em termos da filosofia antiga, é um eclético, como Cícero e quase todos os romanos: dado ao gozo epicureu da vida, é capaz de atitudes estoicas. Verifica-se certa ambiguidade em Horácio, e esta, aliada ao domínio perfeito e até virtuoso da língua e de todos os metros da poesia grega, criou um poeta autêntico. [...] Não é o maior, mas o mais completo dos poetas romanos. Os quatro livros de Odes constituem a coleção mais variada de poesias.

[...] Horácio é um anacreôntico, um epicureu ligeiro, um irônico polido e elegante. O grande moralismo político não é o seu lado mais forte. É menos poeta do que artista, virtuoso admirável da construção de poemas, da eurritmia do verso, dos metros complicados. Não é gênio titânico. É um poeta culto, ligeiramente epígono, ligeiramente romântico. E não só culto, mas que sabe viver, e que se retira, em tempos de guerra civil e perturbação social, para a vila no campo e para a poesia. Estaremos em presença de um evasionista? Não. Ele é antes um grande egoísta. São apenas os seus prazeres e as suas melancolias que o preocupam. Nas tempestades do mundo lá fora, Horácio conserva a cabeça e o bom senso: o que importa é o homem, o indivíduo. Não é romano típico, mas é poeta romano típico.

Horácio é o poeta culto entre e para os poetas cultos, um ‘poet’s poet. [...] Criou uma infinidade de versos memoráveis, expressões inesquecíveis; e se se tornaram frases feitas e lugares-comuns, não é sua culpa, e sim a sua glória, o seu ‘monumentum aere perennius’. Horácio criou um dicionário poético e uma língua poética comuns à humanidade inteira.

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Quanto ao historiador Tito Lívio, CARPEAUX nos diz:

“Virgílio morreu antes de terminar a última redação dos versos da Eneida; e da obra histórica de Tito Lívio, Ab urbe condita, só possuímos fragmentos: os livros I – X e XX – XLV, tratando dos anos 753 – 293 e 218 – 167 da nossa era, e ainda com lacunas. Isso não tem grande importância, porque as duas obras, nascidas do mesmo impulso de idealizar a história romana, se completam.

É difícil imaginar perfeição maior que os versos virgilianos; e quanto às lacunas em Lívio, a perda da historiografia não é muito sensível. Lívio não é uma fonte de primeira ordem. É inexato, não tem espírito crítico, aceita lendas e invenções patrióticas, vê tudo do ponto de vista de um aristocrata romano, não tem perspectiva histórica. Gosta de engrandecer os acontecimentos, como se a cidadezinha bélica, meio selvagem, dos primeiros tempos já tivesse sido a ‘Urbs’ do Império. São resultados dessa teatralização os famosos episódios que conhecemos da escola – Rômulo e Remo, o rapto das Sabinas, os Horácios e Curiácios, a morte de Lucrécia, a revolta de Coriolano, a virtude cívica de Cincinato, Ápio e Virgínia, a invasão dos gálios, Aníbal ‘ante portas’ e em Cápua, a morte de Sofonisba e a obstinação de Catão.

À idealização da história romana corresponde o estilo solene, às vezes poético, quase sempre monótono. Lívio escreve o comentário em prosa daquelas odes patrióticas. Na escola, serve ainda como espelho de feitos do mais alto patriotismo; e tornou-se modelo internacional quando a historiografia moderna começou a escrever a história nacional das pátrias europeias.

[...] Lívio inventou só onde não havia fontes; teve de inventar, porque os romanos haviam esquecido a sua própria história primitiva. E o moralismo de Lívio torna-se suportável pela ligeira melancolia de um espírito aristocrático que sabe decadente a moral da sua própria época. Afinal, não pretendeu dar historiografia exata, mas uma história exemplar; não como foi, mas como devia ser. Fê-lo de maneira tão discreta que épocas posteriores puderam interpretá-lo de maneira anacrônica, tirando das suas lendas os axiomas da mais alta sabedoria política. Não há outro historiógrafo que possa gabar-se de comentadores como Maquiavel, Vico e Montesquieu. A história ideal dos romanos transformou-se em história ideal da Humanidade”.

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Quanto ao mais consagrado e tido como maior poeta romano, Virgílio, autor da Eneida, fala-nos CARPEAUX o seguinte:

“O mesmo idealismo prejudicou a poesia de Virgílio. O gênio do idílio realista não conseguiu o realismo homérico; só o idealizou. Mas quase criou, com isso, uma poesia ideal.

Para provar a primeira parte da tese – o realismo inato de Virgílio – não é preciso afirmar a autenticidade duvidosa do idílio ‘Moretum’, descrição exata da preparação de uma refeição de camponeses. Basta comparar as Bucólicas e as Geórgicas. As Bucólicas, obra da mocidade, já dão testemunho da predileção de Virgílio pela poesia rústica [...]. Mas Virgílio não é homem dos campos; tem apenas a nostalgia do homem urbano pela vida rústica, que [...] lhe aparece como ‘ócio’, o que é significativo.

O estilo corresponde a esse erro melancólico: é melódico e altamente artificial. Virgílio é responsável pelas inúmeras éclogas da Renascença, com os seus pastores amorosos e as alusões a acontecimentos políticos que preocupam os poetas. Em comparação, o poema didático Geórgicas é realista num sentido elevado. Realismo classicista, talvez realismo clássico. Aí, também, não estão ausentes as preocupações políticas: Virgílio faz propaganda da reagrarização da Itália, pronunciando-se contra o latifúndio, para salvar a ‘justissima tellus’. Mas as descrições da agricultura, da vida das árvores, da criação de gado, da apicultura, são de um realismo sereno [...]. É uma paisagem altamente humanizada, à qual Virgílio está saudando.

[...] A esta ‘Mãe Itália’ está dedicada a Eneida. Comparações com Homero, provocadas pela imitação manifesta, não são, no entanto, convenientes. O espírito é diverso. O estilo ‘rápido, direto e nobre’ é substituído por certa dignidade melancólica e monótona; o espírito bélico, pelo civismo e senso de justiça; o antropomorfismo, pela fria religião de Estado. Mas Virgílio é o que Homero não foi e não podia ser: é artista. Um artista incomparável do verso, da música das palavras. As expressões poéticas do imperalismo romano estão como que envolvidas no ‘altum silentium’ da música virgiliana.

Sol e lua da Itália real levantam-se e põem-se – ‘fugit irreparabile tempus’ – sobre personagens pálidas e acontecimentos penosamente inventados. A tarefa de inventar uma tradição oficial do Império Augustano inspirou ao poeta uma utopia das virtudes políticas dos romanos, quase já uma política cristã. A Idade Média cristã, encantada pelos amores de Dido e Eneias, não viu esse aspecto de Virgílio; só Dante o adivinhou, após a derrota da sua própria utopia política – e por todos os séculos depois ecoou o verso modesto e profético: ‘Forsan et haec olim meminisse juvabit’ [Talvez um dia nos dê prazer recordar essas coisas].

“A Virgílio aplica-se, mais do que a outro qualquer poeta, a distinção de Schiller entre ‘poesia ingênua’ e ‘poesia sentimental’. Virgílio não é nada ingênuo, e desde que o romantismo descobriu o gênio na poesia popular e de boêmios indisciplinados, a glória multissecular de Virgílio empalideceu. Em comparação com o ‘gênio popular’ Homero, Virgílio foi considerado como poeta da decadência, de falsa dignidade, incapaz de representar a vida real. É verdade que Virgílio pertence a uma época de decadência; e é justamente por isso que não quer reproduzir a realidade que lhe pretendem impor. É artista, inventa um mundo ideal, melhor, superior. Apresenta-nos santos e heróis artificiais, porque não existem outros. Não como romano, mas como intelectual romano, Virgílio é da Resistência. Opõe ao caos moral da sua época os ideais do trabalho rústico [...], da justiça imparcial [...] e do amor ao próximo [...].

A ideia central da sua obra inteira é a utopia de uma ‘aetas aurea’: utopia romântica nas Bucólicas, utopia social nas Geórgicas, utopia política na Eneida. Sente, com amargura melancólica, a distância entre esse ideal e a sua época crepuscular [...], e qualquer acontecimento insignificante, como o nascimento de uma criança, lhe sugere logo esperanças indefinidas de um futuro melhor, como naquele verso – ‘Magnus ab integro, saeclorum nascitur ordo’ [Eis que nasce uma era toda nova] – da Écloga IV das Bucólicas. Então, aquele crepúsculo melancólico aparece como aurora esperançosa de uma nova era, e o poeta pagão Virgílio, insatisfeito com a religião oficial e os sistemas filosóficos, ergue a voz como um profeta no Advento.

Com efeito, todos os séculos cristãos interpretaram a Écloga IV como profecia pagã do nascimento do Cristo. Compararam-se as viagens mediterrâneas de Eneias às do apóstolo Paulo, a fundação da Urbs à da Igreja. Lembrou-se a unificação do Império Romano por Augusto, o soberano de Virgílio, como condição indispensável da missão do cristianismo. A Idade Média não sabia explicar a profecia e o gênio de Virgílio senão transformando-o em feiticeiro poderoso, em herói de inúmeras lendas; em Dante, Virgílio já é o representante da ‘Razão’ pagã, não batizada, mas ‘naturaliter christiana’ e iluminando todo o mundo latino e católico.

Chamaram a Virgílio ‘pai do Ocidente’. Virgílio é ‘pai do Ocidente’ num sentido muito amplo. O seu ideal do ‘labor’ está na disciplina dos monges de S. Bento, união do trabalho nos campos e do trabalho intelectual; e o seu ideal do ‘otium’ está na dedicação dos humanistas à ciência desinteressada. Até a música dos seus versos melancólicos ensinou a todas as épocas a transformação da angústia em arte. Homero é maior, sem comparação; mas é Virgílio que nos convém”.

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Retomando suas justificativas quanto à poesia romana, CARPEAUX conclui:

“A posição de Horácio e Virgílio dentro da literatura romana é diferente da que ocupam na literatura universal. As inúmeras tentativas, em todas as épocas e literaturas, de imitar a ode solene de Horácio e a epopeia heroica de Virgílio, não foram, as mais das vezes, bem sucedidas. A verdadeira influência dos poetas está na elaboração de um tom poético finamente humano e expressivo, na sátira horaciana e na écloga virgiliana. Na literatura universal, Horácio e Virgílio são os maiores entre os poetas menores. Na literatura romana, são os últimos poetas ‘maiores’. Com eles, acabam as tentativas de poesia de interesse coletivo. Desde então, toda a literatura romana está na oposição. É possível interpretar essa oposição como resistência da gente culta contra o despotismo dos Césares [...]. Contudo, essa oposição não é um fenômeno transitório nem meramente político; exprime o caráter íntimo da literatura romana, que só durante poucos decênios, imediatamente antes do começo da nossa era, acreditava na possibilidade de penetrar na realidade hostil, retirando-se depois para a região na qual individualismo, intelectualismo, temperamento elegíaco e resignação estoica se encontram”.

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quinta-feira, 14 de maio de 2015

Um salto para dois resgates: Plauto e Terêncio

Anteriormente, em meio às análises dos escritos gregos, CARPEAUX havia falado sobre dois autores romanos, dramaturgos cômicos que muito se ligavam às maneiras gregas de se fazer comédia: Plauto e Terêncio. Eis o que deles diz Carpeaux:

“[A] ‘comédia nova’ [cujo expoente grego é o dramaturgo Menandro] revela-se bem viva e permanente em Plauto e Terêncio, seus representantes latinos.

Mas se Plauto só fosse o reflexo romano de Menandro, não seria o primeiro comediógrafo, no sentido cronológico e talvez no sentido do valor também. O seu mundo é o das pequenas cidades mediterrâneas de então: comércio florescente, burgueses imbecis, pais avarentos, filhos devassos ou tímidos, escravos astutos e pérfidos, escravas ternas ou espertas, parasitos indolentes, sargentos grosseiros. É o pequeno mundo grego. Mas Plauto sabia romanizá-lo e latinizá-lo até à perfeição. Os seus pais são ‘nobres senadores’, os filhos graeculi, já contaminados pela civilização estrangeira, os escravos são simplesmente plebeus que vencem o patrão pelo bom senso do homem da rua. A comédia de Plauto já não pertence à civilização grega, e sim à romana, que gerou a latina moderna e por isso está incomparavelmente mais perto de nós; a atmosfera plautina volta sempre na história do teatro europeu. Do Anfitrião de Plauto contam-se, através de Camões, Molière, Dryden e Kleist, até Giraudoux, 38 versões. Euclion, o herói da Aulularia, volta no Harpagão de Molière. As estranhas aventuras dos Menaechmi, gêmeos parecidos até à confusão, ressuscitam em A Comédia dos Erros, de Shakespeare, e em mais de 38 versos, assim como o imortal Miles Gloriosus, o sargento grosseiro e fanfarrão. A paixão de pai e filho pela mesma moça, na Casina, inspira a Clizia de Maquiavel e inúmeras farsas francesas. Os personagens de Plauto vivem nos Pantalone e Tartaglia, capitano Spaventa, Arlequim e Colombina da ‘commedia dell’arte’. Dos temas de Plauto vive todo o nosso teatro popular. Plauto é um dos autores mais influentes da literatura universal.

O seu teatro é popular; quer fazer rir as massas, e consegue o seu fim, porque Plauto é um sabidíssimo profissional da cena, o criador de todas as intrigas e complicações burlescas para todos os tempos: um gênio do palco. Fala a língua do povo, não a dos literatos, ao ponto de criar as maiores dificuldades aos nossos filólogos, acostumados à fala ciceroniana. Ao mesmo tempo, esse gênio da gíria dispõe de inesperada riqueza de metros complicados, de modo que a relação entre o verso plautino e a poesia grega constitui objeto de estudos importantes; e esses estudos revelam o terceiro gênio de Plauto, o seu gênio poético, lírico. Plauto sabe cantar, e por isso, mais do que pelos temas, o comediógrafo romano pertence à literatura grega. As suas variações métricas assemelham-se a modulações musicais; talvez os seus entremezes líricos fossem realmente cantados, e as suas comédias tivessem sido espécie de óperas-cômicas; vaudevilles que sobreviveram à temporada e a todos os tempos”.

“A glória universal de Terêncio é pouco menor: mas perturba menos os filólogos, que o preferem por muitos motivos. O parasito no Formio é mais decente que os parasitos plautinos; e quando Chaereas, no Eunuchus, se disfarça em castrado para poder aproximar-se de Pamphila, tudo acontece de maneira tão discreta que um leitor ingênuo não chega a compreender a situação. Plauto, tratando um assunto assim, teria soltado gargalhadas; Terêncio fala como o ‘epistolário universal dos enamorados’ e o seu latim é muito bom. Por tudo isso, Terêncio é, desde os conventos beneditinos da época de Carlos Magno até os colégios humanísticos dos jesuítas e jansenistas, o autor preferido da escola. E também é o preferido daquela escola de adultos que é o salão literário: Terêncio sabe dizer tudo em tom de conversa polida; transforma as obscenidades plautinas em problemas psicológicos sérios, discutindo, nos Adelphoi, se a educação dos filhos deve ser severa, para impedir excessos, ou indulgente, para acostumar às exigências da vida – é o tema das duas ‘Écoles’ de Molière. De maneira semelhante, a misantropia de Menedemus, no Heautontimoroumenos, preludia as expectorações de Alceste. Terêncio é o comediógrafo da aristocracia romana, quando já bastante grecizada. É mesmo um graeculus. O seu método de trabalho lembra os comediógrafos ingleses do século XIX, que adaptaram as peças parisienses de Augier e Dumas Filho para o gosto da burguesia vitoriana. Cria a intriga complicada e explica-a pela boca do escravo inteligente, precursor do raisonneur da comédia francesa. Tudo é verossímil, realista, mas também polido e – em certo sentido – mais humano do que em Plauto. Porque, em Terêncio, verdade e humanidade são idênticas. Foi esse comediógrafo romano quem criou o lema do humanismo grego: ‘Homo sum; humani nihil a me alienum puto’ [Sou um homem; nada que é humano me é estranho]. É pena que Terêncio já não seja lido nas escolas”.

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Literatura romana. Sexta leitura: "Da amizade", de Cícero.

Quanto à literatura romana, CARPEAUX nos diz:

“A literatura romana, apesar de ter produzido grandes poetas e grandes prosadores, parece de segunda mão. A comédia romana já se nos revelou como reflexo da comédia nova ateniense, e a tragédia de Sêneca será reflexo da tragédia de Eurípides. Os poetas líricos romanos imitam Teógnis, Alceu e Safo; Virgílio seria a sombra de Homero; os retores e historiógrafos acompanham os métodos gregos; os filósofos romanos procuram, como ecléticos, um caminho de compromisso entre as discussões das escolas de Atenas e da Ásia Menor. Em geral, é uma literatura de imitação.

Conhecemos grande parte da literatura grega – particularmente da poesia lírica e do teatro cômico – só através das imitações latinas. Não há, porém, uma equivalência perfeita entre as duas literaturas, porque os romanos – donos duma capacidade de assimilação comparável só à dos ingleses – modificaram o espírito dos modelos, produzindo sempre coisas um tanto diferentes. São justamente essas diferenças que nos aproximam da literatura romana.

[...] Mas entre a literatura romana, imitação de uma literatura estrangeira por parte de uma elite culta, e as instituições romanas, obra original da nação, há um abismo. Por força das suas origens e da sua própria existência, a literatura romana constitui o modelo de uma literatura de elite, literatura intencional, artística, de evasão. Os literatos romanos já são humanistas no sentido moderno da palavra. A separação entre os escritores romanos e a realidade romana tem contaminado a nossa própria civilização inteira”.

“[...] O espírito grego cria as suas realidades: Estado e poesia, religião e teatro estão no mesmo plano; a distinção entre realidade material e realidade espiritual, para o grego, não tem sentido. A realidade romana é construção em material dado. É realidade econômica, política, jurídica, administrativa. O romano não criou o seu mundo; encontrou-o, dominou-o, continuou a dominá-lo, pensando em termos administrativos. A realidade espiritual, importada de fora, é uma planta exótica em Roma; e os que pretendem viver nela só podem fazê-lo como um alto funcionário que nas horas de ócio se entrega a caprichos de diletante, ou como um boêmio que se afasta das ocupações sérias da vida.

Existe, no entanto, entre o diletantismo romano e o diletantismo moderno, uma diferença; e nessa diferença reside aquele ‘algo de novo’ que os romanos introduziram na imitação dos modelos gregos. O diletantismo moderno é sempre participação, às vezes incompetente, às vezes irresponsável, na realidade espiritual; entre nós sobrevive – na arte, na literatura, na ciência – a herança grega duma realidade espiritual, criada pelos próprios homens. A realidade romana não era assim; era força alheia ao espírito. E os representantes romanos do espírito defenderam a sua independência contra essa realidade material, com a mesma coragem e tenacidade de estoicos natos com as quais os seus antepassados tinham conquistado o mundo e os seus descendentes, mais tarde, haveriam de sucumbir aos bárbaros.

Aí está o elemento original da literatura romana. Para os romanos e para nós. Entre nós, como entre os gregos, existe uma realidade espiritual; mas só ao lado da realidade material, sem o equilíbrio do realismo homérico. Entre nós, o Espírito está sempre ameaçado. A sua defesa tirou as lições mais edificantes do exemplo da defesa dos romanos cultos contra a sua realidade bruta. A literatura romana não é um templo da beleza; é uma lição de coragem, uma escola de oposição.

Eis o ‘lugar na vida’ dessa pretensa literatura de evasão, que é, na verdade, uma alta escola de humanidade”.

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Sobre Cícero e Lucrécio, CARPEAUX diz:

“A tradição classificou as obras de Cícero distinguindo discursos forenses e parlamentares, tratados filosóficos e cartas. Cícero é jornalista, advogado, político, vulgarizador das ideias filosóficas gregas em Roma; é literato. Aplicando-lhe os critérios rigorosos da profundidade na filosofia e da solidez de uma política baseada em ideologia certa, Cícero não sai bem: foi um jornalista algo superficial, em todos os setores da sua atividade. Esse ‘jornalista’ exerceu, porém, uma influência tão universal como – além de Platão – nenhum autor da Antiguidade. Durante séculos, todos os homens cultos, os ‘letrados’ da Europa inteira, falaram e escreveram a língua de Cícero; e pode-se afirmar que a sua influência criou o tipo do homme de lettres. Julgado como exemplo supremo desse tipo, Cícero apresenta-se de maneira mais favorável e até a sua volubilidade política é a de um intelectual, incapaz de conformar-se com a disciplina dos partidos políticos.

[...] Contudo, Cícero não é um filósofo profundo. Assim como na política, não sabe decidir-se entre as ideologias, todas exigentes e demasiadamente dogmáticas. Abraçando o cepticismo moderado da Academia Nova, não rejeita porém inteiramente a religião tradicional, interpretando-lhe o credo como suma de símbolos de verdades mais profundas; levando a vida despreocupada de um epicureu culto e abastado, é no entanto capaz de afirmar sinceramente a moral estoica, ao ponto de morrer assim como ela o exige. Afinal, Cícero, sem criar um sistema filosófico, criou a ‘filosofia’, a atitude dos intelectuais em muitos séculos. E de outra maneira, mais coerente, não teria sido possível introduzir filosofia política na política romana.

[...] Cícero foi sempre alvo de discussões e objeto das apreciações mais divergentes. É o destino do ideólogo incoerente, mas também o destino do homme de lettres fora dos partidos, do intelectual independente”.

“O homem de letras tem de agir; ou terá de se retirar para a Natureza, que fica insensível às mudanças insignificantes que os homens operam. [...] É a alternativa entre Cícero e Lucrécio”.

“Independência mais segura, Lucrécio encontrou-a na contemplação da natureza. Mas não era contemplação desapaixonada, nem era Lucrécio um homem feliz.

[...] O próprio Lucrécio é um mestre. De Rerum Natura é um poema didático. Lucrécio pretende ensinar, convencer. Fala da teoria atomística, da pluralidade dos mundos, da cosmologia, antropologia e sexualidade, terremotos, enchentes, vulcões e outros fenômenos da Natureza que se explicam de maneira científica, e cujas consequências fatais não justificam a superstição, da qual tiram proveito os sacerdotes. Em Lucrécio encontram-se quase todas as teorias do positivismo científico. Seria um grande erudito, se não fosse um grande poeta.

[...] De Rerum Natura é, entre todos os poemas didáticos da literatura universal, a única obra de poesia autêntica: obra de lirismo sincero, do poeta mais original em língua latina e do poeta mais moderno da Antiguidade”.

Com Cícero e Lucrécio acaba uma fase decisiva da literatura romana: a tentativa de introduzir espírito filosófico na política ou na religião de Roma não foi, depois, repetida. A literatura romana volta-se para individualismo algo evasionista que lhe convém, produzindo uma série admirável de poetas líricos, poetas menores, sim, mas por isso mais perto da poesia lírica moderna do que qualquer poeta lírico grego”.


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Na pasta de arquivos online, consta um PDF de Da amizade, um diálogo de Cícero sobre o tema: https://www.dropbox.com/home/Grupo%20de%20Estudo%20e%20Leitura%20dos%20Cl%C3%A1ssicos

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Fim da Grécia: lista de obras e autores gregos

Ao chegarmos ao final da era grega, podemos extrair dos escritos de CARPEAUX uma lista de autores e obras que ele comenta em seu estudo e que podemos tomar por resumo do que melhor se escreveu naquela época. Abaixo, segue uma versão dessa lista, junto de alguns comentários do próprio Carpeaux a respeito dos autores, ou seja, sua fortuna crítica:

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HOMERO
“Canônico”; “o maior dos poetas”; “consegue o milagre de dar vida verdadeira em fórmulas fixas”.
            Ilíada
            Odisséia

HESÍODO
“Homero parece situado fora do tempo. Em comparação, Hesíodo já é poeta de uma época histórica, se bem que primitiva”; “não é um produto da decadência; é o Homero dos proletários, é o reverso da medalha”.
            Teogonia
            O trabalho e os dias

ANACREONTE
“Poesia da ‘decadência grega’ [...] de velhos bom-vivants”.
            Poesias

ANTHOLOGIA GRAECA
“Epigramas eróticos, satíricos, funerários, de elegância rococó, de perfeição parnasiana”; “sempre transmitirão algo como um último vestígio do perfume da vida grega”.

PÍNDARO
“Poesia de aristocratas que se educam para merecer a sua posição”.
            Poesias

ÉSQUILO
“O sentido profundo do teatro grego revela-se em Ésquilo”; “o teatro de Ésquilo trata de destinos coletivos, não de indivíduos”.
            Os Sete contra Tebas
            Trilogia Orestéia (composta de Agamêmnon, Coéforas e Eumênides)
            Os persas
            Prometeu acorrentado

SÓFOCLES
“Grandíssimo artista”; “primeiro grande mestre da dramaturgia de caracteres”; “entre o pathos coletivista de Ésquilo e o pathos individualista de Eurípides”.
            Édipo Rei
            Édipo em Colono
            Antígona
            Filoctetes
            Electra

EURÍPEDES
“Aristóteles chama a Eurípides tragikotatos, ‘o poeta mais trágico de todos’”; “em Ésquilo falam montanhas, em Eurípides, almas”; “a liberdade do indivíduo”.
            Medéia
            Hipólito
            As troianas
            As bacantes

ARISTÓFANES
“Alta comédia política”; “a política é o tema de Aristófanes, mas não a essência da sua arte”; “não tem ideologia bem definida”; “o seu conservantismo é um tanto sentimental”.
            As vespas
            As nuvens
            As rãs
            Os pássaros

HERÓDOTO
“A explicação das guerras contra os persas”; “patriota consciente e repórter corajoso”.
            Histórias

TUCÍDIDES
“Uma monografia histórica sobre o seu próprio tempo”; “documentação solidíssima”; “estilo seco e quase militar ou burocrático”.
            Guerra do Peloponeso

PLATÃO
“Platão é poeta”; “o maior criador de mitos na literatura universal”; “seus diálogos constituem um mundo completo como nenhum outro poeta”; “é um grande espírito religioso”.
Diálogos (especialmente: O banquete, Êutifron, Apologia de Sócrates, Críton e Fédon)
            República

LÍSIAS
“Era orador forense”; “simplicidade de expressão”; “clareza seca das exposições”.
            Discursos

ISÓCRATES
“O orador político do partido conservador”; “mais artista, mais ‘eloqüente’”; “modelo preferido da eloqüência barroca”.
            Panegrykos
            Areopagitikos
            Panathenaikos           

DEMÓSTENES
“Retórico e orador”; “não tem ‘boa imprensa’ [...] foi condenado como reacionário”; “combinação perfeita da simplicidade convincente de Lísias e da arte elaborada de Isócrates”; “possuidor do equilíbrio sublime de um herói de Sófocles”.
            Sobre a coroa
Filípicas
            Olínticas

XENOFONTE
“O único homem da ação [dentre os últimos retóricos]”; “autor de uma obra de ocasião”.
            Anábase

MENANDRO
“Um Ibsen sem problemas, um Shaw sem força cômica, um realista sem excessos de vulgaridade”.
            Epitrepontes
            Samia
            Perikeiromene
            Heros

CALÍMACO
“O maior poeta alexandrino”; “já é menos poeta original do que humanista”.
            Poesias (a mais famosa é O caracol de Berenice)

TEÓCRITO
“O poeta da Sicília grega”; “realista”; “pinta fielmente o que vê”.
            Idílios

HELIODORO
“O mais célebre romance de aventura por muitos séculos”; “contribuirá para a formação final do romance de cavalaria”.
            Histórias etiópicas de Theagenes e Chariclea

POLÍBIO
“Grande historiográfico, pretende explicar por que os romanos venceram o mundo”; “o primeiro historiógrafo estóico”.
            Histórias

PLUTARCO
“Plutarco cria a biografia”; “é um grande artista da narração”; “legou ao mundo moderno a última atitude do homem grego”.
            Vidas paralelas
            Moralia

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