Continuando a linha central da
argumentação do capítulo, CARPEAUX retoma:
“O caminho da separação
progressiva entre símbolo e alegoria é o caminho de evolução do pensamento
medieval. Mas as últimas fases do pensamento alegórico, se bem que
tipicamente ‘medievais’, não pertencem ao conceito convencional do que é a ‘Idade
Média’; pertencem ao pensamento profano, continuam o processo de secularização
que os ‘clerici vagantes’ tinham
iniciado, e dirigem a arma da alegoria contra os seus criadores. A alegoria
fora a arma intelectual para santificar o mundo profano, incorporá-lo na
hierarquia celeste das coisas; no fim, a alegoria é arma intelectual para
decompor a hierarquia estabelecida, para demonstrar a sua identidade com a
ordem profana do mundo. A alegoria, isolada do símbolo, tornar-se-á meio de
expressão da sátira burguesa.
O mundo simbólico, separado da
alegoria, perde o contato com a realidade profana. Torna-se meio de expressão
da mística. Nesta afirmação reside, porém, a possibilidade de um erro, que é
preciso eliminar imediatamente: seria a tentativa de opor a mística à escolástica
intelectualista. Com efeito, os historiadores da filosofia medieval sucumbiram
não raramente à tentação de ver em Bonaventura e Eckhart os antípodas de
Alberto Magno e Tomás de Aquino. Mas o pensamento platônico, neoplatônico e
augustiniano dos místicos medievais deixou, também, os seus vestígios, na síntese
tomista. Não há escolástica sem mística. Por outro lado, os místicos
medievais não constituem uma oposição sistemática; não são, de modo algum, precursores
dos ‘modernos’. Servem-se do aparelho lógico da escolástica para exprimirem em
fórmulas filosóficas os seus símbolos. A mística, quando sistemática, seria
antes uma tentativa de salvar o conteúdo simbólico da escolástica, ameaçado
pelo intelectualismo alegórico; por isso, a mística medieval atingirá seu
apogeu na época do nominalismo herético ou semi-herético”.
Neste sentido compreende-se a ação
do místico Bernard de Clairvaux contra Abelardo. A Bernard seguem-se os monges de St. Victor, sistematizadores
dos símbolos místicos. Com Bonaventura e os franciscanos, acentuar-se-á o
sentido psicológico da mística: o caminho interior para a união com Deus. É
este o caminho que levará à religiosidade individual”.
Neste ponto, vale abrir parênteses
no argumento de Carpeaux para debruçar-se rapidamente sobre um sermão de Hugo de São Vítor, na
tentativa de entender melhor essa sistematização dos símbolos místicos, que é,
ao mesmo tempo, caminho para a religiosidade individual e espécie de síntese da
relação tão caracteristicamente medieval entre símbolo e alegoria.
Trata-se do Sermão 12, sobre os montes
e as árvores espirituais de Israel. A tradução encontra-se no site
Cristianismo.org.br:
“‘E vós, montes de Israel,
estendei
os vossos ramos,
florescei
e dai frutos
ao
meu povo de Israel’ (Ez 36, 8).
Irmãos caríssimos, os lugares, assim
como os tempos, também têm as suas significações. Assim como pela manhã
entendemos o conhecimento da verdade, pelo meio dia o amor da virtude, pela
tarde a ignorância, pela meia noite a malícia, pela luz a justiça e pelas
trevas a culpa, assim também entendemos pelo campo a liberdade, pela colina a
boa ação, pela montanha a contemplação e pelo céu a bem aventurança. Pelo vale,
porém, a iniquidade, pelo abismo o desespero e pelo inferno a condenação.
O campo, constituído por uma
igualdade, possui acima de si três lugares dotados de significação, que são a
colina, a montanha e o céu, e três outros abaixo, que são o vale, o abismo e o
inferno.
O campo significa a liberdade, pois
assim como aquele que está no campo possui a faculdade, se a tanto não o impede
algum outeiro, de dirigir-se segundo queira para diante ou para trás, à direita
ou à esquerda, assim também aquele que verdadeiramente é livre possui o poder
de fazer o que mais lhe agrada.
A colina, que se levanta apenas um
pouco sobre a planície da terra, exprime a boa ação, pela qual nos elevamos do
que é terreno.
A montanha, que mais se aproxima das
nuvens, designa a contemplação, a qual, elevando-nos para o alto, nos exalta à
visão dos bens celestes.
O céu, por ser o lugar da bem
aventurança, não inconvenientemente significa a própria bem aventurança.
O vale, por se dirigir para baixo,
significa a iniquidade, a qual conduz os maus para as coisas inferiores.
O abismo significa o desespero, para
o qual os iníquos descem, partindo do vale da iniquidade. Por isto é que está
escrito: ‘O ímpio, depois de ter caído no
abismo dos pecados, tudo despreza’ (Pv 18, 3).
Já o inferno, por ser um lugar de
condenação, significa a própria condenação.
‘E
vós, montes de Israel, estendei os vossos ramos, florescei e dai frutos’ (Ez
36, 8). Os montes de Israel são os justos que alcançaram a contemplação, os
quais, pelo amor do próximo, estendem os seus ramos, isto é, seus santos e
frutuosos pensamentos, procedentes da raiz da fé e do tronco da boa vontade,
florescem pelos bons princípios, dão frutos pela consumação e produzem folhas
pela boa ação.
Três parecem ser, com razão, os
principais gêneros de árvores que nascem, crescem, estendem seus ramos,
florescem, dão fruto e produzem folhas nos montes de Israel. O primeiro é a
oliveira, o segundo é a videira e o terceiro é a figueira.
A oliveira significa a misericórdia,
porque assim como o azeite excede os demais licores, assim a misericórdia
precede as demais virtudes. A videira significa a sabedoria, porque o vinho,
moderadamente tomado, aguça o engenho. A figueira, pela doçura de seus frutos,
designa a doçura interior.
Costuma-se associar a misericórdia
ao Pai, a sabedoria ao Filho, e a doçura ao Espírito Santo. O Pai, pois, planta
a oliveira, o Filho a videira, e o Espírito Santo a figueira. Deve-se saber, no
entanto, que ainda que façamos tais distinções nas associações destas três
virtudes, não se deve entender, porém, que haja alguma divisão na operação das
três pessoas.
O profeta, deplorando nos réprobos a
infrutuosidade destas três virtudes, disse: ‘A figueira não florescerá, as vinhas não germinarão, e faltará o fruto
da oliveira’ (Hab 3, 17). A oliveira significa, portanto, a misericórdia; a
videira, a sabedoria, e a figueira a doçura interior.
Haverá talvez outras árvores nos
montes de Israel, pelas quais são figuradas outras virtudes, assim como pelo
buxo, por causa de seu verdor, designa-se a fé; pelo cedro, por causa de sua
altura, a esperança; pelo pinheiro, a reta repreensão; e pela murta, designa-se
a temperança.
Estendamos, irmão, nossos ramos,
floresçamos e demos fruto, para que não ocorra que Nosso Senhor nos encontre
infrutuosos, nos corte e nos queime. O Evangelho, de fato, nos avisa que ‘o machado já está posto à raiz das árvores’
(Mt 3, 10). Frutifiquemos, pois, como a oliveira, a videira e a figueira.
Há alguns, no entanto, que dão
frutos plenos de amargor. Destes é que se encontra escrito: ‘O seu vinho é fel de dragões, e veneno
incurável de áspides’ (Dt 32, 33). Nós, porém, ‘como a oliveira verdejante na casa do Senhor, esperemos na misericórdia
de Deus’ (Sl 51, 10), o qual vive e reina, pelos séculos dos séculos”.
Outros sermões de Hugo de São Vítor
podem ser encontrados, traduzidos para o português, no site
Cristianismo.org.br: http://cristianismo.org.br/sermo-00.htm.
***
Voltando a CARPEAUX, agora para
finalizar este capítulo sobre o universalismo cristão, lemos o seguinte:
“A mística está acompanhada de efusões
poéticas. Contemporânea dos victorinos é Hildegarda
de Bingen (1098-1179), a visionária. Contemporâneas da reforma franciscana,
embora em ambiente diferente, são as místicas beneditinas Mechthild de Magdeburg (1212-1285), Mechthild de Hackeborn (1242-1299), Santa Gertrudis (1256-1302). É altamente significativo o emprego
da língua vulgar nas suas visões poéticas, e é também notável o grande número
de poetisas. Essa literatura emotiva é tipicamente feminina. Na descrição
dos êxtases introduz-se um vocabulário erótico. O símbolo vai
conquistando regiões inexploradas da alma; dá sentido superior à poesia lírica
dessa época verdadeiramente universal a que a posteridade chamará ‘Idade Média’”.
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