quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Mística medieval.

Continuando a linha central da argumentação do capítulo, CARPEAUX retoma:

O caminho da separação progressiva entre símbolo e alegoria é o caminho de evolução do pensamento medieval. Mas as últimas fases do pensamento alegórico, se bem que tipicamente ‘medievais’, não pertencem ao conceito convencional do que é a ‘Idade Média’; pertencem ao pensamento profano, continuam o processo de secularização que os ‘clerici vagantes’ tinham iniciado, e dirigem a arma da alegoria contra os seus criadores. A alegoria fora a arma intelectual para santificar o mundo profano, incorporá-lo na hierarquia celeste das coisas; no fim, a alegoria é arma intelectual para decompor a hierarquia estabelecida, para demonstrar a sua identidade com a ordem profana do mundo. A alegoria, isolada do símbolo, tornar-se-á meio de expressão da sátira burguesa.

O mundo simbólico, separado da alegoria, perde o contato com a realidade profana. Torna-se meio de expressão da mística. Nesta afirmação reside, porém, a possibilidade de um erro, que é preciso eliminar imediatamente: seria a tentativa de opor a mística à escolástica intelectualista. Com efeito, os historiadores da filosofia medieval sucumbiram não raramente à tentação de ver em Bonaventura e Eckhart os antípodas de Alberto Magno e Tomás de Aquino. Mas o pensamento platônico, neoplatônico e augustiniano dos místicos medievais deixou, também, os seus vestígios, na síntese tomista. Não há escolástica sem mística. Por outro lado, os místicos medievais não constituem uma oposição sistemática; não são, de modo algum, precursores dos ‘modernos’. Servem-se do aparelho lógico da escolástica para exprimirem em fórmulas filosóficas os seus símbolos. A mística, quando sistemática, seria antes uma tentativa de salvar o conteúdo simbólico da escolástica, ameaçado pelo intelectualismo alegórico; por isso, a mística medieval atingirá seu apogeu na época do nominalismo herético ou semi-herético”.

Neste sentido compreende-se a ação do místico Bernard de Clairvaux contra Abelardo. A Bernard seguem-se os monges de St. Victor, sistematizadores dos símbolos místicos. Com Bonaventura e os franciscanos, acentuar-se-á o sentido psicológico da mística: o caminho interior para a união com Deus. É este o caminho que levará à religiosidade individual”.

Neste ponto, vale abrir parênteses no argumento de Carpeaux para debruçar-se rapidamente sobre um sermão de Hugo de São Vítor, na tentativa de entender melhor essa sistematização dos símbolos místicos, que é, ao mesmo tempo, caminho para a religiosidade individual e espécie de síntese da relação tão caracteristicamente medieval entre símbolo e alegoria.

Trata-se do Sermão 12, sobre os montes e as árvores espirituais de Israel. A tradução encontra-se no site Cristianismo.org.br:

            “‘E vós, montes de Israel,
            estendei os vossos ramos,
            florescei e dai frutos
            ao meu povo de Israel’ (Ez 36, 8).

Irmãos caríssimos, os lugares, assim como os tempos, também têm as suas significações. Assim como pela manhã entendemos o conhecimento da verdade, pelo meio dia o amor da virtude, pela tarde a ignorância, pela meia noite a malícia, pela luz a justiça e pelas trevas a culpa, assim também entendemos pelo campo a liberdade, pela colina a boa ação, pela montanha a contemplação e pelo céu a bem aventurança. Pelo vale, porém, a iniquidade, pelo abismo o desespero e pelo inferno a condenação.

O campo, constituído por uma igualdade, possui acima de si três lugares dotados de significação, que são a colina, a montanha e o céu, e três outros abaixo, que são o vale, o abismo e o inferno.

O campo significa a liberdade, pois assim como aquele que está no campo possui a faculdade, se a tanto não o impede algum outeiro, de dirigir-se segundo queira para diante ou para trás, à direita ou à esquerda, assim também aquele que verdadeiramente é livre possui o poder de fazer o que mais lhe agrada.

A colina, que se levanta apenas um pouco sobre a planície da terra, exprime a boa ação, pela qual nos elevamos do que é terreno.

A montanha, que mais se aproxima das nuvens, designa a contemplação, a qual, elevando-nos para o alto, nos exalta à visão dos bens celestes.

O céu, por ser o lugar da bem aventurança, não inconvenientemente significa a própria bem aventurança.

O vale, por se dirigir para baixo, significa a iniquidade, a qual conduz os maus para as coisas inferiores.

O abismo significa o desespero, para o qual os iníquos descem, partindo do vale da iniquidade. Por isto é que está escrito: ‘O ímpio, depois de ter caído no abismo dos pecados, tudo despreza’ (Pv 18, 3).

Já o inferno, por ser um lugar de condenação, significa a própria condenação.

E vós, montes de Israel, estendei os vossos ramos, florescei e dai frutos’ (Ez 36, 8). Os montes de Israel são os justos que alcançaram a contemplação, os quais, pelo amor do próximo, estendem os seus ramos, isto é, seus santos e frutuosos pensamentos, procedentes da raiz da fé e do tronco da boa vontade, florescem pelos bons princípios, dão frutos pela consumação e produzem folhas pela boa ação.

Três parecem ser, com razão, os principais gêneros de árvores que nascem, crescem, estendem seus ramos, florescem, dão fruto e produzem folhas nos montes de Israel. O primeiro é a oliveira, o segundo é a videira e o terceiro é a figueira.

A oliveira significa a misericórdia, porque assim como o azeite excede os demais licores, assim a misericórdia precede as demais virtudes. A videira significa a sabedoria, porque o vinho, moderadamente tomado, aguça o engenho. A figueira, pela doçura de seus frutos, designa a doçura interior.

Costuma-se associar a misericórdia ao Pai, a sabedoria ao Filho, e a doçura ao Espírito Santo. O Pai, pois, planta a oliveira, o Filho a videira, e o Espírito Santo a figueira. Deve-se saber, no entanto, que ainda que façamos tais distinções nas associações destas três virtudes, não se deve entender, porém, que haja alguma divisão na operação das três pessoas.

O profeta, deplorando nos réprobos a infrutuosidade destas três virtudes, disse: ‘A figueira não florescerá, as vinhas não germinarão, e faltará o fruto da oliveira’ (Hab 3, 17). A oliveira significa, portanto, a misericórdia; a videira, a sabedoria, e a figueira a doçura interior.

Haverá talvez outras árvores nos montes de Israel, pelas quais são figuradas outras virtudes, assim como pelo buxo, por causa de seu verdor, designa-se a fé; pelo cedro, por causa de sua altura, a esperança; pelo pinheiro, a reta repreensão; e pela murta, designa-se a temperança.

Estendamos, irmão, nossos ramos, floresçamos e demos fruto, para que não ocorra que Nosso Senhor nos encontre infrutuosos, nos corte e nos queime. O Evangelho, de fato, nos avisa que ‘o machado já está posto à raiz das árvores’ (Mt 3, 10). Frutifiquemos, pois, como a oliveira, a videira e a figueira.

Há alguns, no entanto, que dão frutos plenos de amargor. Destes é que se encontra escrito: ‘O seu vinho é fel de dragões, e veneno incurável de áspides’ (Dt 32, 33). Nós, porém, ‘como a oliveira verdejante na casa do Senhor, esperemos na misericórdia de Deus’ (Sl 51, 10), o qual vive e reina, pelos séculos dos séculos”.

Outros sermões de Hugo de São Vítor podem ser encontrados, traduzidos para o português, no site Cristianismo.org.br: http://cristianismo.org.br/sermo-00.htm.

***

Voltando a CARPEAUX, agora para finalizar este capítulo sobre o universalismo cristão, lemos o seguinte:

“A mística está acompanhada de efusões poéticas. Contemporânea dos victorinos é Hildegarda de Bingen (1098-1179), a visionária. Contemporâneas da reforma franciscana, embora em ambiente diferente, são as místicas beneditinas Mechthild de Magdeburg (1212-1285), Mechthild de Hackeborn (1242-1299), Santa Gertrudis (1256-1302). É altamente significativo o emprego da língua vulgar nas suas visões poéticas, e é também notável o grande número de poetisas. Essa literatura emotiva é tipicamente feminina. Na descrição dos êxtases introduz-se um vocabulário erótico. O símbolo vai conquistando regiões inexploradas da alma; dá sentido superior à poesia lírica dessa época verdadeiramente universal a que a posteridade chamará ‘Idade Média’”.

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