quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Literatura latina medieval.

Para encerrar o assunto “epopéias medievais”, CARPEAUX diz o seguinte:

“As ‘epopéias nacionais’ pertencem, literariamente, à poesia dos clérigos e trovadores da alta Idade Média.[1] Mas quanto ao espírito que as informa, pertencem a uma época anterior. Terminam a pré-história pagã dos povos europeus e iniciam a formação das nações cristianizadas; ao mesmo tempo, introduzem no universalismo medieval o germe da dissolução linguística. São as primeiras grandes obras em ‘vulgar’. Eis o papel das epopéias nacionais, na França, na Espanha e na Alemanha. Os ingleses não têm epopéia nacional – o Beowulf não pode ser considerado assim; a eles, a situação insular deu outros meios para definir sua nacionalidade. Tampouco têm epopéia nacional os italianos, porque os patrícios do Papa, vigário de Cristo e chefe da Igreja universal, constituíram a ‘nação internacional’. Eles, a nação da Igreja, seguiram o caminho da Igreja; na Itália construiu-se, sobre a base do sistema filosófico, a epopéia universal de Dante”.

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Com isso, chegamos ao final do Capítulo I (“A fundação da Europa”) da Segunda Parte (“O mundo cristão”) da História da Literatura Ocidental de CARPEAUX, e abrimos o Capítulo II da Segunda Parte, que o autor chama de “O universalismo cristão”.[2] Esta Segunda Parte ainda terá dois capítulos – o III, chamado “A literatura dos castelos e aldeias”, e o IV, “Oposição, burguesa e eclesiástica” –, cobrindo assim toda a história literária ocidental até o séc. XIV, época do “Trecento” italiano.


A modo de prelúdio, CARPEAUX estende-nos um panorama do capítulo em seus parágrafos iniciais, levando-nos até o seu tema central – a literatura latina medieval. Ele diz:

“A comparação entre a arquitetura das catedrais góticas e a arquitetura lógica dos sistemas escolásticos é um lugar-comum dos estudos medievalistas; parece só metáfora. Revelou-se, porém, que as plantas e a decoração escultórica das catedrais obedeceram realmente a um plano, fornecido pelos construtores da teologia e da metafísica; os pormenores correspondem ao plano com a maior precisão. Os elementos básicos comuns, que conferem ao pensamento medieval a estrutura arquitetônica, e à arquitetura medieval a significação teológico-filosófica, são o modo de pensar hierárquico e a ideia da ordem universal, revelada naquelas correspondências. Um mundo governado espiritualmente pela hierarquia eclesiástica e materialmente pela hierarquia feudal não pode pensar de maneira diferente. Tudo, no mundo visível e no mundo invisível, tem o seu lugar definido na hierarquia das criaturas, instituições e coisas, e as dúvidas eventuais se resolvem pela correspondência exata [entre] ‘visibilium omnium et invisibilium’ [todas as coisas visíveis e invisíveis]. Com efeito, a base desse pensamento encontra-se no Credo: ‘et incarnatus est de Spiritu Sancto’. Pela encarnação de Deus, o mundo material foi santificado; tornou-se símbolo e reflexo do outro mundo. O mundo é um símbolo – eis uma ideia bem medieval; em consequência, todos os seus pormenores têm qualquer significação além da significação material e literal, prestam-se à interpretação alegórica. A alegoria é o método de pensar medieval; tem a função que exerce o experimento no pensar científico moderno. Com a alegoria, resolvem-se dúvidas e problemas. O resultado da alegorização do mundo é o estabelecimento de uma ordem perfeita na hierarquia do Universo; em tudo age o espírito de Deus. O mundo é o reino do Espírito Santo. Eis o ideal do imperador Otto III, residindo em Roma, em comunhão fraternal com o Papa Silvestre II.

Mas Lúcifer também aspira ao título de ‘príncipe deste mundo’, e faz uma tentativa bem sucedida para encarnar-se nos poderes temporais. No começo, a ciência angélica serviu, sem escrúpulos, ao poder temporal; a chamada ‘Renascença otoniana’, florescência dos estudos clássicos nos conventos do século X, está intimamente ligada à casa reinante; Gerberga, que ensinou a religiosa Hrotswith de Gandersheim a escrever comédias cristãs no estilo e latim de Terêncio, é sobrinha do imperador Otto I. Dessa estirpe nascerão, porém, polemistas terríveis, aos quais responderão os polemistas não menos terríveis do Papado, todos em língua latina e com as armas da ciência clerical. De ambos os lados da barricada lutam arcebispos, bispos, cônegos e doutores. O mundo literário-científico dos séculos XI, XII e XIII, já muito antes da vitória definitiva do papa sobre o imperador, era um mundo clerical. O reino literário do Espírito Santo”. 

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A ciência e a literatura dos clérigos estavam escritas na língua da liturgia. Para aprender a dominar essa língua, era preciso cultivar os clássicos. Entre 1070 e 1140 situa-se um grande movimento, de consequências incalculáveis, em favor dos estudos clássicos: a chamada ‘Renascença do século XII’ ou ‘Proto-Renascença’. Tem o seu centro na França, fato que provocou certas reivindicações no sentido de atribuir todo o movimento renascentista europeu a fontes francesas. Esse exagero prejudicaria a compreensão das renascenças italianas. Mas o fato geográfico está certo, e explica-se pela evolução especial da Igreja francesa, por volta do ano 1100, que é uma das grandes datas críticas da história universal.

Naquele tempo, a Igreja, que se regia, até então, segundo os princípios do feudalismo e levara uma vida principalmente agrária, começou a urbanizar-se. Com a evolução da vida urbana, sobretudo na França e na Bélgica, os centros eclesiásticos deslocaram-se dos campos para as cidades, dos conventos para os bispados. A consequência foi uma reforma do ensino. As escolas conventuais perderam a sua importância; foi então que Sankt Gallen entrou em decadência. Sucederam-lhe as escolas episcopais, nas cidades. Uma das primeiras e mais famosas entre elas é a escola de Chartres, fundada em 990, pelo bispo Fulbert, e na qual ensinaram os escolásticos platonizantes Bernard de Chartres, Gilbert de la Porrée e Thierry de Chartres, espíritos de uma liberdade surpreendente, com  veleidades de poesia e ciências naturais. Das escolas episcopais nascem as primeiras universidades: Paris, Montpellier, Toulouse, Cambridge – universidades eclesiásticas, nas quais ensinam, como nas escolas episcopais, os magistri. Estão ao lado das universidades municipais, domínio dos scolares: Bologna, Pádua, Siena.

Os conhecimentos literários dessa gente universitária – mesmo fora das disciplinas profissionais: Teologia, Filosofia, Jurisprudência, Medicina – eram muito extensos, mais do que em geral se acredita, e, em parte, mais vastos do que em plena Renascença. Pode servir de exemplo a então famosa escola do gramático Eberard de Béthune (por volta de 1210): leram-se, aí, Virgílio, as sátiras de Horácio, Ovídio (inclusive as poesias eróticas), Lucano, Estácio, Pérsio, Juvenal, Fedro, Claudiano e Boécio, além de numerosas obras latinas de autores medievais; não se menciona, porém, Terêncio (leitura preferida nos conventos), nem Plauto e Marcial, igualmente muito lidos em outras escolas. O agostiniano inglês Alexander Neckham (1157-1217) escreveu para o ensino monástico o Mythographus, manual da mitologia pagã. Um quadro quase completo de conhecimentos clássicos apresenta o famoso polígrafo Vincentius de Beauvais († c. 1264). No seu tratado didático De eruditione filiorum nobilium, A. Steiner contou 148 citações de Jerônimo e 75 de Agostinho, 60 citações de Ovídio, 57 de Sêneca e 39 de Cícero. Na sua enorme enciclopédia Speculum maius, que trata em 9865 capítulos de tudo o que existe e de muitas outras coisas, Vincentius utilizou Plauto, Terêncio, César, Cícero, Virgílio, Horácio, Ovídio, Manílio, Vitrúvio, Fedro, Lucano, Pérsio, Sêneca, Plínio, Estácio, Juvenal, Quintiliano, Suetônio, Apuleio e Marcial, além de muitos autores gregos em tradução latina; Vincentius desconhece, porém, Lucrécio, Catulo, Lívio e Tácito. Esses extensos estudos latinos serviam, em primeiro plano, para fins gramaticais: tratava-se de dominar a língua da liturgia, da teologia e filosofia, e da jurisprudência. A época dos clérigos não as concebia em outra língua, e a consequência foi a uniformidade internacional das instituições medievais.

Brunetière abre o seu Manuel de l’histoire de la littérature française com uma citação de Tocqueville: ‘J’ai eu l’occasion... d’étudier les institutions politiques du Moyen Age en France, en Angleterre et en Allemagne; et, à mesure que j’avançais dans ce travail, j’étais rempli d’étonnement em voyant la prodigieuse similitude qui se rencontre en toutes ces lois’ [‘Eu tive a oportunidade... de estudar as instituições políticas da Idade Média na Franca, na Inglaterra e na Alemanha; e, à medida que avançava nesse estudo, enchia-me de admiração ao ver a semelhança incrível presente em todas essas leis]. Isso se aplica também às instituições universitárias e às atividades literárias. O ‘internacionalismo’ da Idade Média é muito forte.

Mas aquela citação convém particularmente para abrir o estudo da literatura francesa medieval: na Idade Média, a literatura francesa dominou a Europa inteira, fornecendo às outras literaturas os assuntos, os gêneros, os metros, a mentalidade. O fenômeno não pode ser explicado sem consideração do fato de que a França dos séculos XII e XIII também era o centro de uma outra literatura, em língua latina; a literatura francesa da época não passa, com poucas exceções individuais, de um órgão intermediário, em língua “vulgar”, entre a literatura latina e as novas literaturas nacionais. A literatura latina medieval é a expressão do internacionalismo medieval”.

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A literatura latina medieval é imensamente vasta; mas está morta, isto é, não se continua, e a sua extensão é um dos obstáculos a uma apreciação mais justa. Eis porque subsistem ideias errôneas com respeito ao caráter unilateral, puramente eclesiástico, dessa literatura: parece composta de hinos litúrgicos e vidas de santos. Com efeito, a hinografia constitui parte essencial da literatura latina média; mas no século XII o hino, que é uma criação de épocas anteriores, já estava em decadência, e o século XIII, a idade áurea da literatura latina medieval, só viu o fim da hinografia, com os ingleses John de Hoveden ( 1275) e John Peckham ( 1292), e o francês Philippe de Grève ( 1237). Um fim, aliás, que pertence principalmente ao movimento franciscano, cujos hinos diferem, na forma e na essência, do hino litúrgico anterior. E quanto à hagiografia, o seu monumento principal, a Legenda aurea, do dominicano Jacopus de Varagine, fonte inesgotável de iconografia medieval, é igualmente um fim: é o cume da hagiografia, e só deixou lugar para os epígonos. Mas a literatura latina medieval é muito mais vasta, tem muitos outros aspectos. Só o desconhecimento dela é responsável pela pobreza dos ‘capítulos medievais’ em muitas histórias das literaturas nacionais. Os franceses, ingleses, italianos, alemães, espanhóis dos séculos XI, XII e XIII tinham duas literaturas: uma em língua latina, outra em língua vulgar; e a latina era mais rica e informou a outra, fornecendo-lhe assuntos, temas, gêneros, metros, formas. A literatura latina medieval é a base da literatura medieval inteira. E só aparentemente caiu, depois, em esquecimento completo. Pois inúmeros enredos, temas e formas da literatura latina medieval sobreviveram, ainda que apenas por via de alusão; e sobrevivem até hoje”.

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A literatura religiosa só raramente sai da igreja para oferecer leitura aos leigos. Cria, porém, pelo menos, um novo gênero: a ‘Visio’, relato da visão de um místico ou outro homem pio, em que se lhe revelavam os segredos do outro mundo. A ‘visio’ mais antiga parece ser a chamada Visio Wettini, na qual o monge Walafrid Strabo (c. 809-849) viu as almas nos três reinos sobrenaturais. O que interessava sobremodo nessas visões era o estado das almas no outro mundo, os seus sofrimentos, especialmente no Purgatório. Daí a grande popularidade do gênero, depois da instituição da festa de Finados. Destacam-se, então, o Purgatorium Sancti Patricii, no qual já se encontra um sistema complicado de penas infligidas às almas, a Visio Tungdali (c. 1150), e a visão do monge Alberico de Monte Cassino. Esse gênero é precursor literário da Divina Comédia.

O Purgatório imaginava-se no subsolo; o lugar das recompensas celestes, em uma ilha, perdida ao longe, no Oceano ocidental. A imaginação céltica colaborou nessa ideia, e das lendas de marinheiros irlandeses nasceu a Navigatio Sancti Brendani, relato de uma viagem fantástica, no Atlântico. A Idade Média gostava muito de relatos de viagens, sobretudo a lugares santos. As romarias a Roma criaram um gênero especial, os ‘Mirabilia’, espécie de ‘Baedeker[3] ou ‘Guide Hachette[4] para informar sobre as igrejas e relíquias de Roma; tais são os Mirabilia urbis Romae (c. 1150), do padre romano Benedictus; e cita-se ainda a Narratio de mirabilibus urbis Romae, de Osbern de Gloucester (século XII). Depois de as Cruzadas terem aberto o caminho para a Palestina, o gênero se ampliou, como o revela a Descriptio terrae sanctae, de Johannes de Wuerzburg (c. 1170). O contato com o Oriente produziu outros relatos de viagens, inventadas, como as de Mandeville, ou reais, como as de Marco Polo. Mas isso já fora do meio da língua litúrgica”.

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Ao lado da geografia está a história. Guibert de Nogent descreveu a primeira cruzada e deu à obra o título Gesta Dei per Francos, que impressionou o patriotismo religioso dos franceses até o século XX. Sem veleidades de panache, com o espírito prático de inglês e diplomata eclesiástico, um monge de St. Alban, Matthaeus Parisiensis, escreveu a poderosa Chronica Major, o maior monumento da Inglaterra católica. Na Itália, o franciscano Fra Salimbene de Parma encheu a sua Chronica de anedotas, de baladas que se cantavam nas ruas, de toda a vida tumultuosa das pequenas cidades italianas. Guibert, o patriota, Matthaeus, o político, e Salimbene, o homem do povo e da vida pitoresca, representam três tipos da historiografia, que continuarão.

A Idade Média não sabe distinguir entre realidades materiais e realidades imaginárias: história e lenda se confundem, porque ambas têm a mesma significação alegórica. Grande parte da literatura latina média serve para fins de interpretação alegórica dos objetos e do mundo, o que dá oportunidade a que se introduzam clandestinamente muitas coisas profanas. Entre inúmeras obras ineptas, cita-se o Liber lapidum, do bispo Marbod de Rennes ( 1123), explicação alegórica das qualidades das pedras preciosas; o mesmo Marbod é um moralista eloquente no Liber decem capitulorum. O moralismo justifica tudo: até os contos de origem oriental, que o judeu espanhol Petrus Alphonsi (convertido em 1106) inseriu na Disciplina clericalis. O maior moralista medieval é o cluniacense Bernadus de Morlas: o seu vasto poema De contemptu mundi (c. 1140) está cheio de eloquência terrível contra a mulher (‘femina perfida, femina foetida’), contra o clero corrupto, contra os prazeres do mundo. Numa hora de melancolia, Bernardus escreveu o poema que principia com o verso ‘Est ubi gloria nunc Babylonia?’ [Onde está agora a glória de Babilônia?] primeira versão do ‘Qué se hizo el rey Don Juan?...’ [Que foi feito do Rei Don Juan?], de Jorge Manrique, do ‘Dites moy ou, n’en quel pays...’ [Diga-me, então, em que país...], de Villon, e do ‘Ubi sunt qui ante nos in mundo fuere?...’ [Onde estão os que estavam no mundo antes de nós?], canção dos estudantes alemães”.

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Ao moralismo se alia a sátira, que é, na Idade Média, extremamente violenta. O clero não pode ser atacado com maior ímpeto do que nas sátiras pouco horacianas de Philippus de Grève ( 1237), chanceler da catedral e Notre-Dame de Paris. As mais das vezes, porém, a sátira esconde-se atrás da alegoria. Colaboraram vários fatores para popularizar a ideia de apresentar as personagens satirizadas em disfarce de animais: reminiscências de fábulas de animais, do paganismo germânico, como na Ecbasis captivi, de um monge alemão do século X; a explicação alegórica das qualidades dos animais, iniciada no Physiologus, da Antiguidade decadente, e muito imitada, como no Poema de naturis animalium, do monge Theobaldus de Monte Cassino (século XI); enfim, a repercussão das fábulas de Fedro, como no Aesopus, de Gualterus Anglicus (século XII). O resultado é o Ysengrimus (c. 1184), do magister Nivardus de Gent, origem do romance de Renart”.

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Um passo mais adiante, a fábula irá transformar-se em conto. A primeira tentativa é muito antiga: é o Ruodlieb latino, que um monge alemão do convento de Tegernse escreveu por volta de 1050. Depois, chega a invasão de contos orientais, através de versões bizantinas. Tais são os contos narrados pelos ‘sete sábios’, no romance Dolopathus (1184), do francês Johannes de Alta Silva, e, nos séculos XIII e XIV, a vasta coleção do Gesta Romanorum, que reúne contos das origens mais variadas, da antiguidade clássica, até da Índia, uniformizados pela mentalidade medieval, da qual a obra é um espelho perfeito”.

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Também aparece, pela primeira vez, em latim, o conto humorístico-satírico, o fabliau: o conto diversificado Milon (c. 1160), de Matthaeus de Vendôme, é a primeira narração de um adultério escrita por um francês. O assunto está em relação com o fato literário que menos se espera na Idade Média: a existência de peças dramáticas profanas. Plauto e Terêncio impressionaram a imaginação dos monges, inspirando-lhes cenas dialogadas, à maneira dos ‘debates’ – o ‘Debate entre corpo e alma’ é assunto predileto da literatura medieval – ‘debates’ na língua clássica, e logo em espírito ‘pagão’. No século XII, Vitalis de Blois decalcou as ‘comédias’ Geta e Querulus sobre Amphitruo e Aulularia. São anônimas uma comédia terenciana Pamphilus et Gliscerium, uma comédia de adultério, Comoedia Babionis, e o escandaloso Pamphilus de amore, que o Arcipreste Ruiz de Hita utilizou. Compreende-se o anonimato, mas essas comédias dão testemunho da força do espírito profano na literatura da língua litúrgica”.

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A literatura latina apoderou-se também da matéria épica, enriquecendo-a e devolvendo-a às literaturas vulgares. É exceção, antes rara, uma epopeia bíblica, como a Aurora, de Petrus de Riga, cônego em Reims no século XII, versificação fastidiosa da Bíblia inteira, mas que foi o livro didático mais divulgado da Idade Média, existindo em numerosos manuscritos, embora nunca impresso. A Chanson de Roland forneceu a matéria da Historia Caroli Magni (c. 1165), que se dá como obra de um arcebispo Turpin; é um romance de valor diminuto, mas alcançou fama universal e contribuiu para a divulgação do assunto em toda a Europa. O Ciclo Bretão deriva mesmo de uma fonte latina: da Historia regum Britanniae, de Geoffrey do Monmouth. E, finalmente, o Ciclo Antigo. Imitando o romance bizantino de Pseudo-Kallisthenes, o arcipreste Leo de Nápoles escreveu, por volta de 1000, uma fantástica Historia de proeliis, sobre a vida de Alexandre Magno. Depois, Gualterius de Châtillon, bispo de Tournai, do qual também existem Rhytmi rimados, compôs a Alexandreis (c. 1175), que se recomendou às escolas pelo elemento alegórico; é um poema de valor de atmosfera virgiliana. Hugo de Orléans ( 1160) e Josephus de Exeter (1210) escreveram poemas sobre a guerra troiana, segundo a versão de Dares; mas o grande êxito coube à Historia Destructionis Troiana, do italiano Guido delle Colonne ( 1287), mais divulgada que o modelo francês de Benoît de Saint-More. Guido, que os contemporâneos compararam a Dante e ainda os latinistas do século XVII exaltaram, é o mais morto entre os ilustres defuntos do cemitério da literatura universal.
            As ‘gestes’ latinas não se podiam impor sem assimilar também a atmosfera erótica que envolvia as obras correspondentes em língua vulgar. E os clérigos-poetas latinos revelaram capacidade surpreendente para exprimir até o lado menos sublime do amor. Andréas Capellanus, chamado assim porque era capelão do rei da França, escreveu um tratado De amore bem ovidiano, e Giraldus Cambrensis, bispo de St. David no País de Gales, era um poeta do amor sentimental, na Descriptio cuiusdam puellae e em De subito amore. Mas o ponto culminante é uma obra anônima do mesmo século XII, o Concilium in monte Romarici: reunião de religiosas, sob a presidência da abadessa, discutindo se é preferível o amor de um clérigo ou de um cavaleiro”.

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“Outros havia que preferiram, evidentemente, os acordes mais sérios da lira antiga. Alfano, arcebispo de Salerno por volta de 1080, celebrou em versos clássicos a venerável abadia de Monte Cassino, que tinha, já então, mais de meio milênio de existência; e Matthaeus de Vendôme, ao qual já encontramos como fabulista licencioso, sabia fazer versos de feição virgiliana – seu poema Tobias foi, no gênero, a obra mais famosa da Idade Média. Mas Matthaeus é só artista da forma; escreveu também uma Ars versificatoria. E entre os cultores do latim litúrgico existem verdadeiros humanistas. O primeiro e o mais digno entre eles é Hildebert de Lavardin, arcebispo de Tours. Este sucessor do semibárbaro Gregório de Tours não deixa de ser um bispo medieval; só poetiza para dar lições morais e, por meio do verso, gravá-las melhor na memória. Mas quando, em 1085, viu a Cidade Eterna devastada pelos normandos, a emoção inspirou-lhe os versos clássicos: ‘Urbs cecidit, de qua si quicquam dicere dignus / Moliar, hoc potero dicere: Roma fuit’ [A cidade caiu; não há nada mais digno de se dizer como epitáfio do que: Isto era Roma].

O humanismo toma atitudes oposicionistas em [Pedro] Abelardo, cavaleiro perdido entre os clérigos, mas, em realidade, não perdido, porque de uma inteligência superior. ‘Docente livre’ em Paris, fora da Universidade, bateu os magistri pelo talento brilhante de causeur, perturbou os teólogos pelo dialético do Sic et Non, despertou as consciências pela ética quase autonomista do Nosce te ipsum, comoveu a todos pelos seus sermões, e sobretudo pelos seus hinos, que já pertencem à liturgia, mas são obras de arte independentes, como o ‘Advenit veritas, umbra praeteriit’, arte que podemos situar entre gongorismo e parnasianismo. Abelardo tinha muitos admiradores e ainda mais inimigos. Lutou, quanto pôde, contra os anátemas de São Bernard de Clairvaux, e não teria sucumbido, talvez, se não o tivesse desgraçado o amor de Heloísa. A sua Historia calamitatum mearum é a autobiografia de um homem moderno; Gourmont chamou a Abelardo o primeiro racionalista e artista tipicamente francês, ou antes parisiense”.

‘Racionalista’ moderado, ‘classicista’ conservador, ao lado do ‘radical’ Abelardo – assim aparece o eruditíssimo Alanus ab Insulis, mas no Anticlaudianus e Liber de planctu naturae ele também se revela pouco conformista: um entusiasta místico da Natureza, celebrando-a em versos quase baudelairianos [...].

Agora, já não parece estranha a figura extraordinária de Johannes de Salisbury, bispo de Chartres, amigo do grande arcebispo Thomas de Canterbury, do qual escreveu a biografia. Homem de cultura francesa e serenidade inglesa, Johannes é essencialmente ‘prelado romano’ no sentido em que os tempos modernos empregam a palavra: ortodoxo quanto aos dogmas essenciais e céptico quanto ao resto; identificando o amor de Deus com a filosofia, e a sabedoria com as letras clássicas; partidário de uma política ‘clerical’, contra o Estado dos leigos, para preservar a independência do poder espiritual e do Espírito. Johannes de Salisbury parece, às vezes, um precursor longínquo de Thomas Morus; outra vez, um cardeal da Renascença”.

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“A presença – e glória – de uma figura assim, no século XII, basta para destruir o conceito convencional da ‘Idade Média’; a definição da época pelo binômio ‘Catedral e Summa’ torna-se insuficiente. Na verdade, a ‘Summa’ também representa o resultado de um movimento ‘renascentista’: a renascença de Aristóteles. A capacidade medieval de assimilar o pensamento e as formas da Antiguidade era muito grande. Uma obra como o Speculum Maius, de Vincentius de Beauvais, tão representativa da época, está saturada de ‘humanismo’; incorpora ingenuamente a Antiguidade pagã, justificando-a, quando preciso, pela interpretação alegórica. A alegoria é o instrumento supremo do humanismo medieval. No fundo, é o mesmo processo pelo qual o público medieval se apoderou de Homero, Virgílio e Ovídio, transformando os personagens antigos em cavaleiros e damas feudais. É um anacronismo enorme. O mesmo anacronismo age, aliás, na imaginação popular. Do mesmo modo por que Virgílio é aceito como feiticeiro e profeta pré-cristão, povoam-se as ruínas romanas de fantasmas noturnos que não são outra coisa senão disfarces supersticiosos dos deuses que tiveram antigamente o seu culto nos mesmos lugares. Até no Dialogus miraculorum (c. 1220), de Caesarius de Heisterbach, cheio de relatos fantásticos de almas que aparecem vindas do Purgatório, pedindo ajuda, e de demônios que as fazem recuar para o lugar sinistro, até nessas histórias de um monge angustiado os diabos levantam, às vezes, a máscara, e o rosto de Vênus ou Mercúrio se revela.

A Idade Média, assimilando a Antiguidade, parece incapaz de compreendê-la. O grande obstáculo é o ascetismo. Ao ‘homo cluniacensis’ a liberdade grega do corpo e do espírito permanece incompreensível. Desde os estudos famosos, porém já antiquados de von Eicken, o ascetismo foi sempre considerado como a tendência mais característica da civilização medieval. Existe, novamente, vasta literatura medieval antiascética.

Uma das obras dessa literatura é até muito famosa, e com toda a razão: é o conto anônimo Aucassin et Nicolette. É uma chantefable; quer dizer, pequenas canções interrompem a história de Aucassin, que se apaixonou pela escrava sarracena Nicolette e a conquistou e casou com ela, contra todos os obstáculos do mundo. Como tudo termina bem, é um idílio, cheio de ternura, mas não de inocência. As perfeitas maneiras cavaleirescas do estilo mal escondem a sensualidade ardente; e quando ameaçam com o Inferno o enamorado da bela infiel, Aucassin responde: [‘O que tenho eu com o paraíso, desde que eu tenho Nicolette, meu doce amigo? Céu é para velhos sacerdotes, para os aleijados, pinguins que dia e noite rastejam ao redor dos altares, na cripta bolorenta; isso é para os velhos triturados, trapos de imundícia, para os de pés descalços, sem meias ou calças, para os que morrem de fome e usam tapa-dentes! Eis aí o que vai para o seu paraíso: o que eu tenho a ver com mendigos? É do inferno que eu preciso! Lá há clérigos elegantes, os belos cavaleiros mortos em torneios e nas grandes guerras magníficas; e até lá vão lindas garotas, belas e finas senhoras que têm dois ou três amantes, além de seus maridos’]”.

Atribuiu-se essa atitude à influência oriental, importada pelas cruzadas. Mas o ‘inferno’ de Aucassin não é maometano; e o caso não é isolado. Aí está a poesia dos goliardos e outros vagabundos latinos.

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“Entre as universidades medievais existia o maior intercâmbio possível de professores e estudantes. Os universitários viviam em viagens contínuas entre Bologna, Paris e Oxford; juntaram-se a eles outros clérigos, fugitivos da disciplina rigorosa dos conventos; muitos se perderam na vida devassa e até criminosa das estradas reais, outros na anarquia moral das grandes cidades como Paris. Havia mais clérigos do que prebendas, e constituiu-se afinal um ‘proletariado latino’: os ‘clerici vagantes’ ou ‘goliardos’. Entre eles nasceu uma poesia antiascética, pendant estranho da hinografia.

Já ao bispo Gualterius de Châtillon se atribuem poesias dessa espécie. Mas o primeiro goliardo autêntico é magister Hugo de Orléans (c.1093-1160), com as suas poesias de amor e vinho, maravilhosamente rimadas, com os lamentos típicos sobre a pobreza e, depois, sobre a velhice. Ao inglês Walther Map ou Mapes (c. 1140-1209), autor de poemas sobre Lancelot e o Graal, atribuem-se versos violentos contra o celibato, e também a blasfêmia do ‘mihi est propositum in taberna mori’ [meu propósito é morrer na taberna]. Na Chronica de Fra Salimbene acha-se inserta uma canção tabernária do goliardo Morando da Padova. Enfim, o maior corpus dessas poesias está reunido no manuscrito dos ‘Carmina burana, preciosidade extraordinária da Biblioteca Nacional de Munique”.



[1] Período que vai de 100 a 600 d.C., aproximadamente (séc. II a VII d.C., portanto).
[2] A Primeira Parte do estudo, chamada “A herança”, teve três capítulos: o I chamou-se “A literatura grega”, o II, “O mundo romano” e o III, “O cristianismo e o mundo”.
[3] Espécie de guia turístico compacto e resistente, em vários volumes.
[4] Espécie de cartilha de apresentação e avaliação de vinhos.

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