Concluindo a
questão da literatura dos goliardos e caminhando para o fim do capítulo,
CARPEAUX diz:
“A literatura antiascética é mais do
que um sintoma de decadência moral. É preciso rever o conceito convencional ‘Idade
Média’. Com efeito, a expressão já serve apenas para fins de classificação
simplista.
Um dos criadores do conceito ‘Idade
Média’ é o próprio goliardo. Foram as sátiras e queixas incessantes contra o
clero corrompido que contribuíram para abolir o esquema historiográfico dos
Padres da Igreja: o binômio Paganismo – Cristianismo. Desde os cluniacenses e
cistercienses fala-se em ‘renovatio’
da Igreja e em volta à pureza da Igreja primitiva. ‘Renovatio’ é também o lema das diversas ‘renascenças’, quer dizer, ‘renovatio’ dos estudos clássicos. E
quando, no século XVI, as duas ‘renovationes’
se encontraram, o Humanismo e a Reforma, então toda a era entre o fim do
paganismo e da Igreja primitiva e, por outro lado, a renovação da Igreja e das
escolas, pareceu época intermediária, eclipse temporário do Espírito Santo e do
espírito humano. Esse conceito tornou-se até dogma: para os protestantes, é
o dogma do ‘Anticristo em Roma’; para os humanistas e os seus sucessores, os
livres-pensadores, é o dogma do Progresso. A história apresenta-se como
esquema tripartido: entre o brilho da Antiguidade e da Igreja primitiva e o
novo brilho do Humanismo e da Igreja reformada, há a ‘Idade Média’ escura.
Um historiador de terceira ordem, do século XVII, Cellarius, introduziu a
expressão dos manuais. Outro, Robertson, inventou a expressão ‘Dark Ages’. Afinal, os próprios ‘medievalistas’
conformaram-se com o termo.
O romantismo, tão apaixonado pela
‘Idade Média’, não conseguiu abolir o erro, porque esse mesmo erro estava
no conceito dos próprios românticos. Tacitamente, aceitaram o esquema
tripartido, apenas invertendo os valores: a época moderna apareceu-lhes
como fase de corrupção política e religiosa, e a ‘Idade Média’ como idade áurea
da monarquia feudal e da Igreja ortodoxa. O ‘medievalismo’ é progressismo às
avessas.
O estudo das ‘renascenças medievais’
abriu as primeiras brechas. Troeltsch chamou a atenção para a relatividade do
ideal ascético e para as concessões da Igreja ao espírito profano. Brinckmann já
distinguiu dois tipos do homem medieval: o idealista ascético e o leigo
realista. Afinal, a civilização medieval é um fenômeno muito complexo; não é
possível defini-la numa frase só. Ao lado da mentalidade eclesiástica, há a
mentalidade leiga dos cavaleiros; ao lado da civilização feudal, há a civilização
burguesa. E tudo isto não se encontra em equilíbrio estático, como a equação ‘Catedral
– Summa’ afirmou, mas em evolução
viva e multiforme.
A solução teórica do problema talvez
esteja na distinção mais exata dos termos símbolo e alegoria, que
se empregam, indistintamente, na equação ‘Catedral – Summa’. O símbolo é expressão artística do que é inefável; a alegoria
é representação intelectual do que é compreensível. A Catedral é um símbolo. A
Summa é um conjunto de alegorias. A ‘Idade Média’ está entre esses dois
polos, oscilando, evoluindo, e enfim dissolvendo-se. Existe até uma grande
figura na qual os dois termos se encontram: Raimundus Lullus, o santo da Catalunha”.
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