A modo de prelúdio, CARPEAUX
estende-nos um panorama do capítulo em seus parágrafos iniciais, levando-nos
até o seu tema central – a literatura latina medieval. Ele diz:
“A
ciência e a literatura dos clérigos estavam escritas na língua da liturgia. Para
aprender a dominar essa língua, era preciso cultivar os clássicos. Entre
1070 e 1140 situa-se um grande movimento, de consequências incalculáveis, em favor
dos estudos clássicos: a chamada ‘Renascença do século XII’ ou ‘Proto-Renascença’.
Tem o seu centro na França, fato que provocou certas reivindicações no sentido
de atribuir todo o movimento renascentista europeu a fontes francesas. Esse
exagero prejudicaria a compreensão das renascenças italianas. Mas o fato
geográfico está certo, e explica-se pela evolução especial da Igreja francesa,
por volta do ano 1100, que é uma das grandes datas críticas da história
universal.
Naquele
tempo, a Igreja, que se regia, até então, segundo os princípios do feudalismo e
levara uma vida principalmente agrária, começou a urbanizar-se. Com a evolução
da vida urbana, sobretudo na França e na Bélgica, os centros eclesiásticos
deslocaram-se dos campos para as cidades, dos conventos para os bispados. A
consequência foi uma reforma do ensino. As escolas conventuais perderam
a sua importância; foi então que Sankt Gallen entrou em decadência.
Sucederam-lhe as escolas episcopais, nas cidades. Uma das primeiras e
mais famosas entre elas é a escola de Chartres, fundada em 990, pelo bispo
Fulbert, e na qual ensinaram os escolásticos platonizantes Bernard de Chartres,
Gilbert de la Porrée e Thierry de Chartres, espíritos de uma liberdade
surpreendente, com veleidades de poesia
e ciências naturais. Das escolas episcopais nascem as primeiras
universidades: Paris, Montpellier, Toulouse, Cambridge – universidades eclesiásticas,
nas quais ensinam, como nas escolas episcopais, os magistri. Estão ao lado das universidades
municipais, domínio dos scolares: Bologna,
Pádua, Siena.
Os
conhecimentos literários dessa gente universitária – mesmo fora das disciplinas
profissionais: Teologia, Filosofia, Jurisprudência, Medicina – eram muito
extensos, mais do que em geral se acredita, e, em parte, mais vastos do que em
plena Renascença. Pode servir de exemplo a então famosa escola do gramático
Eberard de Béthune (por volta de
1210): leram-se, aí, Virgílio, as sátiras de Horácio, Ovídio (inclusive as
poesias eróticas), Lucano, Estácio, Pérsio, Juvenal, Fedro, Claudiano e Boécio,
além de numerosas obras latinas de autores medievais; não se menciona, porém,
Terêncio (leitura preferida nos conventos), nem Plauto e Marcial, igualmente muito
lidos em outras escolas. O agostiniano inglês Alexander Neckham (1157-1217) escreveu para o ensino monástico o Mythographus, manual da mitologia
pagã. Um quadro quase completo de conhecimentos clássicos apresenta o famoso
polígrafo Vincentius de Beauvais (†
c. 1264). No seu tratado didático De eruditione filiorum nobilium, A. Steiner contou
148 citações de Jerônimo e 75 de Agostinho, 60 citações de Ovídio, 57 de Sêneca
e 39 de Cícero. Na sua enorme enciclopédia Speculum maius, que trata em 9865
capítulos de tudo o que existe e de muitas outras coisas, Vincentius utilizou
Plauto, Terêncio, César, Cícero, Virgílio, Horácio, Ovídio, Manílio, Vitrúvio,
Fedro, Lucano, Pérsio, Sêneca, Plínio, Estácio, Juvenal, Quintiliano, Suetônio,
Apuleio e Marcial, além de muitos autores gregos em tradução latina; Vincentius
desconhece, porém, Lucrécio, Catulo, Lívio e Tácito. Esses extensos estudos
latinos serviam, em primeiro plano, para fins gramaticais: tratava-se de
dominar a língua da liturgia, da teologia e filosofia, e da jurisprudência. A
época dos clérigos não as concebia em outra língua, e a consequência foi a
uniformidade internacional das instituições medievais.
Brunetière
abre o seu Manuel de l’histoire de la littérature
française com uma citação de Tocqueville: ‘J’ai eu l’occasion... d’étudier les
institutions politiques du Moyen Age en France, en Angleterre et en Allemagne; et,
à mesure que j’avançais dans ce travail, j’étais rempli d’étonnement em voyant
la prodigieuse similitude qui se rencontre en toutes ces lois’ [‘Eu tive a
oportunidade... de estudar as instituições políticas da Idade Média na Franca,
na Inglaterra e na Alemanha; e, à medida que avançava nesse estudo, enchia-me
de admiração ao ver a semelhança incrível presente em todas essas leis]. Isso
se aplica também às instituições universitárias e às atividades literárias. O ‘internacionalismo’
da Idade Média é muito forte.
Mas
aquela citação convém particularmente para abrir o estudo da literatura
francesa medieval: na Idade Média, a literatura francesa dominou a Europa
inteira, fornecendo às outras literaturas os assuntos, os gêneros, os metros, a
mentalidade. O fenômeno não pode ser explicado sem consideração do fato de
que a França dos séculos XII e XIII também era o centro de uma outra
literatura, em língua latina; a literatura francesa da época não passa,
com poucas exceções individuais, de um órgão intermediário, em língua
“vulgar”, entre a literatura latina e as novas literaturas nacionais. A
literatura latina medieval é a expressão do internacionalismo medieval”.
***
“A literatura latina
medieval é imensamente vasta; mas está morta, isto é, não se continua, e a
sua extensão é um dos obstáculos a uma apreciação mais justa. Eis porque
subsistem ideias errôneas com respeito ao caráter unilateral, puramente eclesiástico,
dessa literatura: parece composta de hinos litúrgicos e vidas de santos. Com
efeito, a hinografia constitui parte essencial da literatura latina média; mas
no século XII o hino, que é uma criação de épocas anteriores, já estava em
decadência, e o século XIII, a idade áurea da literatura latina medieval,
só viu o fim da hinografia, com os ingleses John de Hoveden († 1275) e John
Peckham († 1292), e o francês Philippe
de Grève († 1237). Um fim, aliás, que pertence principalmente ao movimento
franciscano, cujos hinos diferem, na forma e na essência, do hino litúrgico
anterior. E quanto à hagiografia, o seu monumento principal, a Legenda aurea,
do dominicano Jacopus de Varagine,
fonte inesgotável de iconografia medieval, é igualmente um fim: é o cume da
hagiografia, e só deixou lugar para os epígonos. Mas a literatura latina
medieval é muito mais vasta, tem muitos outros aspectos. Só o desconhecimento
dela é responsável pela pobreza dos ‘capítulos medievais’ em muitas histórias
das literaturas nacionais. Os franceses, ingleses, italianos, alemães,
espanhóis dos séculos XI, XII e XIII tinham duas literaturas: uma em língua
latina, outra em língua vulgar; e a latina era mais rica e informou a outra,
fornecendo-lhe assuntos, temas, gêneros, metros, formas. A literatura latina
medieval é a base da literatura medieval inteira. E só aparentemente caiu, depois,
em esquecimento completo. Pois inúmeros enredos, temas e formas da literatura
latina medieval sobreviveram, ainda que apenas por via de alusão; e sobrevivem
até hoje”.
***
“A literatura
religiosa só raramente sai da igreja para oferecer leitura aos leigos. Cria,
porém, pelo menos, um novo gênero: a ‘Visio’,
relato da visão de um místico ou outro homem pio, em que se lhe revelavam os
segredos do outro mundo. A ‘visio’
mais antiga parece ser a chamada Visio Wettini, na qual o monge Walafrid
Strabo (c. 809-849) viu as almas nos três reinos sobrenaturais. O que
interessava sobremodo nessas visões era o estado das almas no outro mundo, os
seus sofrimentos, especialmente no Purgatório. Daí a grande popularidade do gênero,
depois da instituição da festa de Finados. Destacam-se, então, o Purgatorium
Sancti Patricii, no qual já se encontra um sistema complicado de penas
infligidas às almas, a Visio Tungdali (c. 1150), e a visão do monge
Alberico de Monte Cassino. Esse gênero é precursor literário da Divina
Comédia.
O Purgatório
imaginava-se no subsolo; o lugar das recompensas celestes, em uma ilha, perdida
ao longe, no Oceano ocidental. A imaginação céltica colaborou nessa ideia, e
das lendas de marinheiros irlandeses nasceu a Navigatio Sancti Brendani, relato
de uma viagem fantástica, no Atlântico. A Idade Média gostava muito de
relatos de viagens, sobretudo a lugares santos. As romarias a Roma criaram um gênero
especial, os ‘Mirabilia’, espécie de
‘Baedeker’ ou ‘Guide Hachette’ para
informar sobre as igrejas e relíquias de Roma; tais são os Mirabilia
urbis Romae (c. 1150), do padre
romano Benedictus; e cita-se ainda a Narratio de mirabilibus urbis Romae,
de Osbern de Gloucester (século
XII). Depois de as Cruzadas terem aberto o caminho para a Palestina, o gênero
se ampliou, como o revela a Descriptio terrae sanctae, de Johannes de Wuerzburg (c. 1170). O
contato com o Oriente produziu outros relatos de viagens, inventadas, como as
de Mandeville, ou reais, como as de Marco Polo. Mas isso já fora do meio da língua
litúrgica”.
***
“Ao lado da geografia
está a história. Guibert de Nogent
descreveu a primeira cruzada e deu à obra o título Gesta Dei per Francos, que
impressionou o patriotismo religioso dos franceses até o século XX. Sem veleidades
de panache, com o espírito prático de inglês e diplomata eclesiástico,
um monge de St. Alban, Matthaeus
Parisiensis, escreveu a poderosa Chronica Major, o maior monumento
da Inglaterra católica. Na Itália, o franciscano Fra Salimbene de Parma encheu a sua Chronica de anedotas, de
baladas que se cantavam nas ruas, de toda a vida tumultuosa das pequenas
cidades italianas. Guibert, o patriota, Matthaeus, o político, e Salimbene, o
homem do povo e da vida pitoresca, representam três tipos da historiografia,
que continuarão.
A Idade Média não
sabe distinguir entre realidades materiais e realidades imaginárias: história e
lenda se confundem, porque ambas têm a mesma significação alegórica. Grande
parte da literatura latina média serve para fins de interpretação alegórica dos
objetos e do mundo, o que dá oportunidade a que se introduzam clandestinamente
muitas coisas profanas. Entre inúmeras obras ineptas, cita-se o Liber
lapidum, do bispo Marbod de Rennes († 1123), explicação alegórica
das qualidades das pedras preciosas; o mesmo Marbod é um moralista eloquente no
Liber decem capitulorum. O moralismo justifica tudo: até os contos de
origem oriental, que o judeu espanhol Petrus Alphonsi (convertido em 1106)
inseriu na Disciplina clericalis. O maior moralista medieval é o
cluniacense Bernadus de Morlas: o seu
vasto poema De contemptu mundi (c. 1140) está cheio de eloquência terrível
contra a mulher (‘femina perfida, femina
foetida’), contra o clero corrupto, contra os prazeres do mundo. Numa hora
de melancolia, Bernardus escreveu o poema que principia com o verso ‘Est ubi gloria nunc Babylonia?’ [Onde
está agora a glória de Babilônia?] primeira versão do ‘Qué se hizo el rey Don Juan?...’ [Que foi feito do Rei Don Juan?],
de Jorge Manrique, do ‘Dites moy ou, n’en
quel pays...’ [Diga-me, então, em que país...], de Villon, e do ‘Ubi sunt qui ante nos in mundo fuere?...’
[Onde estão os que estavam no mundo antes de nós?], canção dos estudantes alemães”.
***
“Ao moralismo se alia
a sátira, que é, na Idade Média, extremamente violenta. O clero não pode
ser atacado com maior ímpeto do que nas sátiras pouco horacianas de Philippus de Grève († 1237), chanceler da
catedral e Notre-Dame de Paris. As mais das vezes, porém, a sátira esconde-se
atrás da alegoria. Colaboraram vários fatores para popularizar a ideia de
apresentar as personagens satirizadas em disfarce de animais: reminiscências de
fábulas de animais, do paganismo germânico, como na Ecbasis captivi, de
um monge alemão do século X; a explicação alegórica das qualidades dos animais,
iniciada no Physiologus, da Antiguidade decadente, e muito imitada, como
no Poema de naturis animalium, do monge Theobaldus de Monte Cassino (século
XI); enfim, a repercussão das fábulas de Fedro, como no Aesopus, de
Gualterus Anglicus (século XII). O resultado é o Ysengrimus (c. 1184),
do magister Nivardus de Gent,
origem do romance de Renart”.
***
“Um passo mais
adiante, a fábula irá transformar-se em conto. A primeira tentativa é muito
antiga: é o Ruodlieb latino, que um monge alemão do convento de Tegernse
escreveu por volta de 1050. Depois, chega a invasão de contos orientais, através
de versões bizantinas. Tais são os contos narrados pelos ‘sete sábios’, no
romance Dolopathus (1184), do francês Johannes de Alta Silva, e, nos séculos XIII e XIV, a vasta coleção do
Gesta Romanorum, que reúne contos das origens mais variadas, da antiguidade
clássica, até da Índia, uniformizados pela mentalidade medieval, da qual a obra
é um espelho perfeito”.
***
“Também aparece, pela
primeira vez, em latim, o conto humorístico-satírico, o fabliau: o
conto diversificado Milon (c. 1160), de Matthaeus de Vendôme, é a primeira narração de um adultério escrita
por um francês. O assunto está em relação com o fato literário que menos se
espera na Idade Média: a existência de peças dramáticas profanas. Plauto e
Terêncio impressionaram a imaginação dos monges, inspirando-lhes cenas
dialogadas, à maneira dos ‘debates’ – o ‘Debate entre corpo e alma’ é
assunto predileto da literatura medieval – ‘debates’ na língua clássica, e
logo em espírito ‘pagão’. No século XII, Vitalis
de Blois decalcou as ‘comédias’ Geta e Querulus sobre Amphitruo
e Aulularia. São anônimas uma comédia terenciana Pamphilus et
Gliscerium, uma comédia de adultério, Comoedia Babionis, e o escandaloso
Pamphilus de amore, que o Arcipreste
Ruiz de Hita utilizou. Compreende-se o anonimato, mas essas comédias dão
testemunho da força do espírito profano na literatura da língua litúrgica”.
***
“A literatura latina
apoderou-se também da matéria épica, enriquecendo-a e devolvendo-a às
literaturas vulgares. É exceção, antes rara, uma epopeia bíblica, como a Aurora,
de Petrus de Riga, cônego em Reims
no século XII, versificação fastidiosa da Bíblia inteira, mas que foi o livro
didático mais divulgado da Idade Média, existindo em numerosos manuscritos,
embora nunca impresso. A Chanson de Roland forneceu a matéria da Historia
Caroli Magni (c. 1165), que se dá como obra de um arcebispo Turpin; é um romance de valor diminuto, mas alcançou fama
universal e contribuiu para a divulgação do assunto em toda a Europa. O Ciclo
Bretão deriva mesmo de uma fonte latina: da Historia regum Britanniae,
de Geoffrey do Monmouth. E, finalmente, o Ciclo Antigo. Imitando o romance
bizantino de Pseudo-Kallisthenes, o arcipreste Leo de Nápoles escreveu, por volta de 1000, uma fantástica Historia
de proeliis, sobre a vida de Alexandre Magno. Depois, Gualterius de Châtillon, bispo de Tournai, do qual também existem Rhytmi
rimados, compôs a Alexandreis (c. 1175), que se recomendou às escolas
pelo elemento alegórico; é um poema de valor de atmosfera virgiliana. Hugo de Orléans († 1160) e Josephus de Exeter (†1210) escreveram poemas
sobre a guerra troiana, segundo a versão de Dares; mas o grande êxito coube à Historia
Destructionis Troiana, do italiano Guido
delle Colonne († 1287), mais divulgada que o modelo francês de Benoît de
Saint-More. Guido, que os contemporâneos compararam a Dante e ainda os
latinistas do século XVII exaltaram, é o mais morto entre os ilustres defuntos
do cemitério da literatura universal.
As ‘gestes’ latinas não se podiam impor sem
assimilar também a atmosfera erótica que envolvia as obras correspondentes em língua
vulgar. E os clérigos-poetas latinos revelaram capacidade surpreendente
para exprimir até o lado menos sublime do amor. Andréas Capellanus, chamado assim porque era capelão do rei da França,
escreveu um tratado De amore bem ovidiano, e Giraldus Cambrensis, bispo de St. David no País de Gales, era um
poeta do amor sentimental, na Descriptio cuiusdam puellae e em De subito
amore. Mas o ponto culminante é uma obra anônima do mesmo século XII, o Concilium
in monte Romarici: reunião de religiosas, sob a presidência da abadessa,
discutindo se é preferível o amor de um clérigo ou de um cavaleiro”.
***
“Outros havia que
preferiram, evidentemente, os acordes mais sérios da lira antiga. Alfano, arcebispo de Salerno por volta
de 1080, celebrou em versos clássicos a venerável abadia de Monte Cassino, que
tinha, já então, mais de meio milênio de existência; e Matthaeus de Vendôme,
ao qual já encontramos como fabulista licencioso, sabia fazer versos de feição
virgiliana – seu poema Tobias foi, no gênero, a obra mais famosa da
Idade Média. Mas Matthaeus é só artista da forma; escreveu também uma Ars
versificatoria. E entre os cultores do latim litúrgico existem verdadeiros
humanistas. O primeiro e o mais digno entre eles é Hildebert de Lavardin, arcebispo de Tours. Este sucessor do semibárbaro
Gregório de Tours não deixa de ser um bispo medieval; só poetiza para dar lições
morais e, por meio do verso, gravá-las melhor na memória. Mas quando, em 1085,
viu a Cidade Eterna devastada pelos normandos, a emoção inspirou-lhe os versos clássicos:
‘Urbs cecidit, de qua si quicquam dicere
dignus / Moliar, hoc potero dicere: Roma fuit’ [A cidade caiu; não há nada
mais digno de se dizer como epitáfio do que: Isto era Roma].
O humanismo toma
atitudes oposicionistas em [Pedro] Abelardo,
cavaleiro perdido entre os clérigos, mas, em realidade, não perdido, porque de
uma inteligência superior. ‘Docente livre’ em Paris, fora da Universidade,
bateu os magistri pelo talento brilhante de causeur, perturbou os
teólogos pelo dialético do Sic et Non, despertou as consciências pela ética
quase autonomista do Nosce te ipsum, comoveu a todos pelos seus sermões,
e sobretudo pelos seus hinos, que já pertencem à liturgia, mas são obras de
arte independentes, como o ‘Advenit
veritas, umbra praeteriit’, arte que podemos situar entre gongorismo e
parnasianismo. Abelardo tinha muitos admiradores e ainda mais inimigos. Lutou,
quanto pôde, contra os anátemas de São Bernard de Clairvaux, e não teria
sucumbido, talvez, se não o tivesse desgraçado o amor de Heloísa. A sua Historia
calamitatum mearum é a autobiografia de um homem moderno; Gourmont chamou a
Abelardo o primeiro racionalista e artista tipicamente francês, ou antes
parisiense”.
‘Racionalista’ moderado,
‘classicista’ conservador, ao lado do ‘radical’ Abelardo – assim aparece o
eruditíssimo Alanus ab Insulis, mas no
Anticlaudianus e Liber de planctu naturae ele também se revela
pouco conformista: um entusiasta místico da Natureza, celebrando-a em versos quase
baudelairianos [...].
Agora, já não parece
estranha a figura extraordinária de Johannes
de Salisbury, bispo de Chartres, amigo do grande arcebispo Thomas de Canterbury,
do qual escreveu a biografia. Homem de cultura francesa e serenidade inglesa,
Johannes é essencialmente ‘prelado romano’ no sentido em que os tempos modernos
empregam a palavra: ortodoxo quanto aos dogmas essenciais e céptico quanto ao
resto; identificando o amor de Deus com a filosofia, e a sabedoria com as
letras clássicas; partidário de uma política ‘clerical’, contra o Estado dos
leigos, para preservar a independência do poder espiritual e do Espírito.
Johannes de Salisbury parece, às vezes, um precursor longínquo de Thomas Morus;
outra vez, um cardeal da Renascença”.
***
“A presença – e glória –
de uma figura assim, no século XII, basta para destruir o conceito convencional
da ‘Idade Média’; a definição da época pelo binômio ‘Catedral e Summa’
torna-se insuficiente. Na verdade, a ‘Summa’ também representa o resultado de
um movimento ‘renascentista’: a renascença de Aristóteles. A capacidade
medieval de assimilar o pensamento e as formas da Antiguidade era muito grande.
Uma obra como o Speculum Maius, de Vincentius
de Beauvais, tão representativa da época, está saturada de ‘humanismo’; incorpora
ingenuamente a Antiguidade pagã, justificando-a, quando preciso, pela
interpretação alegórica. A alegoria é o instrumento supremo do humanismo medieval.
No fundo, é o mesmo processo pelo qual o público medieval se apoderou de Homero,
Virgílio e Ovídio, transformando os personagens antigos em cavaleiros e damas
feudais. É um anacronismo enorme. O mesmo anacronismo age, aliás, na imaginação
popular. Do mesmo modo por que Virgílio é aceito como feiticeiro e profeta pré-cristão,
povoam-se as ruínas romanas de fantasmas noturnos que não são outra coisa senão
disfarces supersticiosos dos deuses que tiveram antigamente o seu culto nos
mesmos lugares. Até no Dialogus miraculorum (c. 1220), de Caesarius de Heisterbach, cheio de
relatos fantásticos de almas que aparecem vindas do Purgatório, pedindo ajuda,
e de demônios que as fazem recuar para o lugar sinistro, até nessas histórias
de um monge angustiado os diabos levantam, às vezes, a máscara, e o rosto de Vênus
ou Mercúrio se revela.
A Idade Média,
assimilando a Antiguidade, parece incapaz de compreendê-la. O grande obstáculo
é o ascetismo. Ao ‘homo cluniacensis’
a liberdade grega do corpo e do espírito permanece incompreensível. Desde os
estudos famosos, porém já antiquados de von Eicken, o ascetismo foi sempre
considerado como a tendência mais característica da civilização medieval. Existe,
novamente, vasta literatura medieval antiascética.
Uma das obras dessa
literatura é até muito famosa, e com toda a razão: é o conto anônimo Aucassin et Nicolette. É uma chantefable;
quer dizer, pequenas canções interrompem a história de Aucassin, que se
apaixonou pela escrava sarracena Nicolette e a conquistou e casou com ela,
contra todos os obstáculos do mundo. Como tudo termina bem, é um idílio, cheio
de ternura, mas não de inocência. As perfeitas maneiras cavaleirescas do estilo
mal escondem a sensualidade ardente; e quando ameaçam com o Inferno o enamorado
da bela infiel, Aucassin responde: [‘O que tenho eu com o paraíso, desde que eu
tenho Nicolette, meu doce amigo? Céu é para velhos sacerdotes, para os
aleijados, pinguins que dia e noite rastejam ao redor dos altares, na cripta
bolorenta; isso é para os velhos triturados, trapos de imundícia, para os de
pés descalços, sem meias ou calças, para os que morrem de fome e usam tapa-dentes!
Eis aí o que vai para o seu paraíso: o que eu tenho a ver com mendigos? É do
inferno que eu preciso! Lá há clérigos elegantes, os belos cavaleiros mortos em
torneios e nas grandes guerras magníficas; e até lá vão lindas garotas, belas e
finas senhoras que têm dois ou três amantes, além de seus maridos’]”.
Atribuiu-se essa atitude
à influência oriental, importada pelas cruzadas. Mas o ‘inferno’ de Aucassin não
é maometano; e o caso não é isolado. Aí está a poesia dos goliardos e outros vagabundos latinos.
***
“Entre as universidades
medievais existia o maior intercâmbio possível de professores e estudantes. Os
universitários viviam em viagens contínuas entre Bologna, Paris e Oxford;
juntaram-se a eles outros clérigos, fugitivos da disciplina rigorosa dos
conventos; muitos se perderam na vida devassa e até criminosa das estradas
reais, outros na anarquia moral das grandes cidades como Paris. Havia mais
clérigos do que prebendas, e constituiu-se afinal um ‘proletariado latino’:
os ‘clerici vagantes’ ou ‘goliardos’.
Entre eles nasceu uma poesia antiascética, pendant estranho da
hinografia.
Já ao bispo Gualterius de Châtillon se atribuem
poesias dessa espécie. Mas o primeiro goliardo autêntico é magister Hugo de Orléans (c.1093-1160), com as
suas poesias de amor e vinho, maravilhosamente rimadas, com os lamentos típicos
sobre a pobreza e, depois, sobre a velhice. Ao inglês Walther Map ou Mapes (c. 1140-1209), autor de poemas sobre Lancelot
e o Graal, atribuem-se versos violentos contra o celibato, e também a blasfêmia
do ‘mihi est propositum in taberna mori’
[meu propósito é morrer na taberna]. Na Chronica de Fra Salimbene
acha-se inserta uma canção tabernária do goliardo Morando da Padova. Enfim, o maior corpus dessas poesias
está reunido no manuscrito dos ‘Carmina
burana’, preciosidade extraordinária da Biblioteca Nacional de Munique”.