segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Primeira lista de obras e autores medievais

A lista a seguir continua o trajeto de onde o havíamos deixado  fim de Roma – e vai até meados da Idade Média, dividindo-se em três partes maiores: literatura cristã primitiva (Patrística e bizantina), literatura de fundação da Europa e literatura latina medieval (e cristã medieval):


LITERATURA CRISTÃ PRIMITIVA (PATRÍSTICA E BIZANTINA)

TERTULIANO
“O São João Batista da literatura patrística (de transição, com objetivos de apologia dogmática e historiografia eclesiástica)”; “polemista terrivelmente agressivo”; de “estilo violento, artificial, obscuro”; é “um Apuleio às avessas, um individualista furioso, um dos maiores escritores de língua latina e um romano autêntico”.
            Apologeticum

SANTO AMBRÓSIO
“Romano autêntico [...], ao qual a tradição atribui a criação do hino litúrgico”; “mais homem de ação do que escritor”; “sabia reunir imperialismo eclesiástico e dignidade sacerdotal”.
            De Officiis Ministrorum
            Hinos

SÃO JERÔNIMO
“Escritor, literato até”; “o literato mais típico entre os Padres da Igreja”; “criou uma língua nova e uma nova literatura”; “anti-humanista furioso, é o primeiro grande humanista europeu”; “A Vulgata é a Eneida do cristianismo”.
            Vuglata
            De viris illustribus

SANTO AGOSTINHO
“Uma das maiores personagens da literatura universal”; “para a literatura universal, é o Colombo de um novo continente”; “é da raça dos twice born, à qual pertencem os maiores gênios religiosos da humanidade, um Paulo, um Lutero, um Pascal”.
            Confissões
            Solilóquios       
            A Cidade de Deus
            A cidade dos homens
            Contra Academicos
            De Immortalitate Animae
            De Musica
            De Libero Arbitrio
            De Genesi
            De Corruptione et Gratia

HINÁRIO DA IGREJA LATINA
            Nunc sancte nobis Spiritus
            Splendor paternae gloriae
            Jesu corona virginum
            Te Deum laudamus
            Deus creator omnium
            Iam surgit hora tertia

PRUDÊNCIO
“O verdadeiro Ambrósio da poesia latina cristã”; “o maior poeta da antiga Igreja romana”; “mais sério [que] Horácio, mais humano [que] Píndaro”; “é essencialmente um poeta lírico [...], um dos raros [...] que conseguiram criar um mundo completo de poesia”.
            Psychomachia
            Peristephanon
            Cathemerinon

VENÂNCIO FORTUNATO
“Um poeta habilíssimo para ocasiões oficiais”; “sabe exprimir os mistérios do credo em símbolos poéticos de autêntica feição romana”.
            Hinos

SÃO GREGÓRIO MAGNO
“Grande Papa, que também foi chamado de ‘o último romano’ e que é fundador da Igreja medieval”; “simplista”; “inimigo do humanismo”; “homem cheio de angústias apocalípticas”; “um espírito sóbrio, seco, prático; um romano”.
            Liber dialogorum seu De vita et miraculis patrum italicorum
            Liber regulae pastoralis
            Registra

LITURGIA ROMANA
“A história da liturgia romana encontra-se no Liber pontificalis, na correspondência papal e nos martiriológios romanos”.

ROMANOS
“O maior poeta da literatura bizantina”; “não parece muito original”; “[seus] hinos distinguem-se pela inspiração desenfreada, que às vezes rompe as formas hieráticas, transformando-se em balbuciação extática”.
            Hinos

PROCÓPIO DE CESARÉIA
“Historiador [bizantino]; nas Historia varia descreveu os feitos militares e a cultura da corte imperial; nas Historia arcana, a corrupção infame da mesma corte e das mesmas pessoas que tinha elogiado”.
            Historia varia
            Historia arcana

JOHANNES MALALAS
“Cronista popular [bizantino], lido em voz alta nas esquinas, traduzido depois para muitas línguas e primeiro fator da europeização dos eslavos”.
            Chronographia

PHOTIOS
“Eruditíssimo”; “herói da formação universitária”; “patriarca de Bizâncio e adversário cismático da Santa Sé em Roma”.
            Myrobiblion

CONSTANTINO PORFIROGENITO
“Imperador”; “digna-se de escrever uma espécie de regulamento interno da corte, no qual se criam as ‘magnificências’, ‘excelências’, ‘ilustríssimos’ e ‘excelentíssimos’ da nossa burocracia e dos nossos envelopes”.
            De caerimoniis aulae

CONSTANTINO MIGUEL PSELO
“Filósofo platônico e algo como um poeta parnasiano em meio dos tumultos na rua e das guerras com eslavos e mongóis”.
            Chronographia

THEODOROS PRODROMOS
“Mendigo e parasito, boêmio e monge, excessivo e melancólico como um Villon bizantino”.
            Poesias

***


LITERATURA DE FUNDAÇÃO DA EUROPA

BEDA VENERABILIS
“O primeiro scholar inglês”; “monge assim, [dos que] gostam de dedicar-se, em modestas casas de campo em torno da igreja, ao estudo das letras clássicas”; “de erudição universal, mas de um horizonte intencionalmente limitado à sua ilha”.
            Historia ecclesiastica gentis Anglorum

CYNEWULF
“Último e maior dos poetas anglo-saxões”; “mistura de religiosidade e gosto pela poesia descritiva [...], tipicamente [inglês]”.
            Christ
            Elene

ALCUÍNO
“Ministro da educação [do Imperador Carlos Magno]”; “discípulo indireto de Beda”; “mestre-escola e clérigo”; “todas as suas obras têm fins didáticos, às vezes em forma de catecismo”.
            Disputatio puerorum per interrogationes et responsiones
            De retorica
            De dialetica

EKKEHARD I
“O primeiro de quatro monges famosos com esse nome”; “a forma virgiliana e o espírito de guerreiro germânico se misturaram com a nostalgia do monge pelo vasto mundo lá fora”.
            Waltharius manu fortis

EKKEHARD IV
“Escreveu a crônica do convento [Sankt Gallen, na Suíça]”.
            Casus sancti galli

SÃO GREGÓRIO DE TOURS
“O seu latim é bárbaro e horrivelmente confuso, mas a sua fé [...] é de uma ortodoxia impecável”; “historiador dos merovíngios”; “fiel, digno de toda a confiança; só a sua filosofia da história é algo infantil”.
            De vita patrum
            História dos francos

LENDA DE BEOWULF
“Considerado hoje como o poema épico mais poderoso que já se escreveu nas ilhas britânicas”.

PAULO DIÁCONO
“Velho monge de Monte Cassino”; “transmite fielmente as lendas que ouviu na infância, sem lhes entender o fundo pagão”.
            Historia longobardorum

EDDAS
“Vasta compilação [islandesa] de canções mitológico-heróicas e poemas didáticos”; “monumento principal [da] literatura notável em língua islandesa”; “verdadeiro compêndio da mitologia nórdica”; “[seus] poemas heróicos [são] versões posteriores da lenda semi-histórica dos germanos do sul, adaptadas apenas ao espírito nórdico, que apareceu nu e cru nos poemas mitológicos da Edda”.

SNORRI STURLUSON
Sua historiografia “informa o mesmo estado de espírito” nórdico das Eddas.
            Heimskringla

EGIL SKALLAGRIMSSON
Viking violento”; “batido e indomável, cruel e nobre, avarento e infame, e um grande poeta”.
            Poemas (esp. a canção fúnebre Sanatorrek)

SAXO GRAMMATICUS
“Pertence ao número dos humanistas do séc. XIII da estirpe de Johannes de Salisbury e Alexander de Hales; é o Lívio de sua nação”; “como Lívio, inclui lendas nacionais na sua história, não por credulidade, mas por orgulho”; “[seu] latim é duro, mas não bárbaro”.
            Gesta danorum

HROTSWITH VON GANDERSHEIM
“Religiosa alemã”; “escreveu oito comédias hagiográficas, em estilo terenciano, primeira tentativa do humanismo cristão para criar um teatro”.
            Dulcitius
            Callimachus
            Theophillus

NOVOS HINÓGRAFOS ECLESIÁSTICOS
Rabanus Maurus, Venâncio Fortunato, Teodulfo de Orléans, Notker Balbulus (o inventor, provavelmente, de uma nova forma litúrgica: a seqüência, poemas em versículos, espécie de verso livre), Hermanus Contractus (provavelmente o autor do Salve, Regina)


PETRUS DAMIANI
“Asceta furioso, que se flagela duramente a si mesmo, não é menos rigoroso para com o mundo”; “[sua]a alma ‘naturalmente conventual’ é também a de um político [...], a de um diretor de consciências e homens”.
            Poesias

ADAM DE SÃO VICTOR
“Grande poeta”; “o valor da sua poesia reside mais nas qualidades literárias do que nas qualidades litúrgicas”; “um criador de símbolos”; “arte quase parnasiana”.
            Salve, mater salvatoris [hino]
            Ave, virgo singularis [hino]

GEOFFREY DE MONMOUTH
“‘Historiador’”; “pretendeu criar, intencionalmente, um pendant inglês da gesta francesa”.
            Historia regum britanniae

CANÇÃO DE ROLANDO
“Representa a época em que os franceses estavam mal cristianizados, e, por assim dizer, ainda não eram franceses. Eram francos”; “pertence à época da transição entre a barbaria germânica e a civilização francesa”; “é um dos grandes e um dos mais fortes poemas bárbaros da literatura universal”.

POEMA DE MÍO CID
“Obra de arte, intencionalmente feita”; “forte acento patriótico-religioso”; “fundo germânico, visigótico, da inspiração do poema”; “não é possível, porém, negar a influência francesa”; “uma ‘geste’; mas é uma gesta espanhola, ou antes – mais exatamente – uma gesta castelhana, ‘dura e sólida como os muros românicos de Ávila’”; “é o monumento mais notável – e mais antigo – da literatura espanhola”.

NIBELUNGENLIED
“É o canto fúnebre do mundo germânico pagão”; “revela que no século XIII o cristianismo ainda não tinha penetrado a fundo na alma alemã”; “é a única obra ‘moderna’ em que existe algo do espírito da tragédia grega”; epopéia “nacional” germânica, trabalhada sobre lendas populares, resquícios de mitologia pagã, espírito guerreiro nórdico e enxertos de elementos do cristianismo.

***


LITERATURA LATINA MEDIEVAL E CRISTÃ MEDIEVAL

ALEXANDER NECKHAM
“Agostiniano inglês”; “escreveu para o ensino monástico [um] manual da mitologia pagã”.
            Mythographus

VICENTIUS DE BEAUVAIS
“Famoso polígrafo”; “apresenta um quadro quase completo de conhecimentos clássicos”.
            De eruditione filiorum nobilium

FIM DA HINOGRAFIA MEDIEVAL
Ingleses John de Hoveden, John Peckham e o francês Philippe de Grève.

JACOPUS DE VARAGINE
“Dominicano”; “fonte inesgotável de iconografia medieval”; “cume da hagiografia”; “só deixou lugar para os epígonos”.
            Legenda aurea

WALAFRID STRABO
“Monge”; “[autor da] visio mais antiga”; “viu as almas nos três reinos sobrenaturais”.
            Visio Wettini

NARRATIVAS DE VISÕES MÍSTICAS (VISIO)
            Purgatorium Santi Patricii, Visio Tungdani.

RELATOS DE VIAGENS (MIRABILIA)
Mirabilia urbis Romae (Pe. Benedictus), Narratio de mirabilibus urbis Romae (Osbern de Gloucester), Descriptio terrae sanctae (Johannes de Wuerzburg).

GUIBERT DE NOGENT
“Descreveu a primeira cruzada”; “o patriota”.
            Gesta Dei per francos

MATTHAEUS PARISIENSIS
“[Monge de St. Alban] sem veleidades de panache, com o espírito prático de inglês e diplomata eclesiástico”; “escreveu o maior monumento da Inglaterra católica”; “o político”.
            Chronica major

SALIMBENE DE PARMA
“Frei franciscano”; “homem do povo e da vida pitoresca”.
            Chronica

BERNARDUS DE MORLAS
“O maior moralista medieval”; “cluniacense”.
            De contemptu mundi

GESTA ROMANORUM
“Vasta coleção [...] que reúne contos das mais variadas origens, da Antigüidade Clássica e até da Índia, uniformizados pela mentalidade medieval, da qual a obra é um espelho perfeito”.

PEDRO ABELARDO
“Cavaleiro perdido entre os clérigos”; “de uma inteligência superior”; “o primeiro racionalista e artista tipicamente francês, ou antes parisiense”.
            Historia calamitatum mearum
            Hymnorum
            Sic et Non

ALANUS AB INSULIS
“‘Racionalista’ moderado, ‘classicista’ conservador”; “eruditíssimo”; “também se revela um pouco conformista”; “entusiasta místico da natureza”.
            Anticlaudianus
            Liber de plancto naturae

JOHANNES DE SALISBURY
“Bispo de Chartres”; “homem de cultura francesa e serenidade inglesa”; “‘prelado romano’”; “ortodoxo quanto aos dogmas essenciais e cético quanto ao resto”; “parece, às vezes, um precursor longínquo de Thomas More; outra vez, um cardeal da Renascença”.
            Entheticus de dogmate philosophorum
            Historia pontificalis
            Historia Thomae Cantuarensis
            Policraticus sive de nugis curialium et vestigiis philosophorum

HUGO DE ORLÉANS
“Primeiro goliardo autêntico”; “magister”.
            Poesias

CARMINA BURANA
“O maior corpus dessas poesias [de goliardos]”; “o autor coletivo da poesia dos ‘clerici vagantes’ é um grande poeta, talvez um dos maiores da literatura universal. Em primeira linha, é um humorista sutil, que sabe inventar frases sempre novas e engenhosas para pedir dinheiro aos ricos”; “gênio, corrompido e perdido na taverna; depois, desaparece sem deixar vestígios”.

RAIMUNDO LÚLIO
“O santo da Catalunha”; “figura na qual os dois termos [símbolo e alegoria] se encontram”; “fenômeno raro: um gênio confuso”; “como poeta, é um ‘jogral de Deus’”; “[sua] confissão poética seria o pendant sério da poesia goliarda”; “pretendeu reduzir a fórmulas alegóricas o inefável, que se tinha revelado ao místico em símbolos; era um grande poeta pela ambiguidade íntima da sua alma”.
            Plant de Nostra Dona
            Los cent noms de Deu
            Lo cant de Ramón
            Mil provérbios
            Llibre del gentil y de los tres sábios
            Blanquerna
            Llibre de contemplació
            Art general
            Ordre de la Cavalleria
            Arbre de Sciencia
            Arbre de Filosofia d’amor.

SÃO BERNARDO DE CLARAVAL
“Aliança de asceta visionário e político ascético”; “inimigo do poder corruptor”; “[de um] ascetismo cultural [...] suscetível de efusões líricas”.
            De consideratione
            Jesu dulcis memoria [hino]
            Salve, caput cruentatum [hino]

SANTO TOMÁS DE AQUINO
“O maior teólogo dogmático da Igreja [e] o seu maior poeta litúrgico”; “grande poesia”; “[seus hinos] reúnem duas qualidades que raramente se encontram na poesia lírica: a maior precisão e a maior musicalidade”.
            Pangue, língua, gloriosi
            Lauda, Sion, Salvatorem
            Adoro te devote

OUTROS MÍSTICOS MEDIEVAIS
Hugo de São Vítor, Ricardo de São Vítor, Santa Hildegarda de Bingen, Mechthild de Magdeburg, Mechthild de Hackenborn e Santa Gertrudes.

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Mística medieval.

Continuando a linha central da argumentação do capítulo, CARPEAUX retoma:

O caminho da separação progressiva entre símbolo e alegoria é o caminho de evolução do pensamento medieval. Mas as últimas fases do pensamento alegórico, se bem que tipicamente ‘medievais’, não pertencem ao conceito convencional do que é a ‘Idade Média’; pertencem ao pensamento profano, continuam o processo de secularização que os ‘clerici vagantes’ tinham iniciado, e dirigem a arma da alegoria contra os seus criadores. A alegoria fora a arma intelectual para santificar o mundo profano, incorporá-lo na hierarquia celeste das coisas; no fim, a alegoria é arma intelectual para decompor a hierarquia estabelecida, para demonstrar a sua identidade com a ordem profana do mundo. A alegoria, isolada do símbolo, tornar-se-á meio de expressão da sátira burguesa.

O mundo simbólico, separado da alegoria, perde o contato com a realidade profana. Torna-se meio de expressão da mística. Nesta afirmação reside, porém, a possibilidade de um erro, que é preciso eliminar imediatamente: seria a tentativa de opor a mística à escolástica intelectualista. Com efeito, os historiadores da filosofia medieval sucumbiram não raramente à tentação de ver em Bonaventura e Eckhart os antípodas de Alberto Magno e Tomás de Aquino. Mas o pensamento platônico, neoplatônico e augustiniano dos místicos medievais deixou, também, os seus vestígios, na síntese tomista. Não há escolástica sem mística. Por outro lado, os místicos medievais não constituem uma oposição sistemática; não são, de modo algum, precursores dos ‘modernos’. Servem-se do aparelho lógico da escolástica para exprimirem em fórmulas filosóficas os seus símbolos. A mística, quando sistemática, seria antes uma tentativa de salvar o conteúdo simbólico da escolástica, ameaçado pelo intelectualismo alegórico; por isso, a mística medieval atingirá seu apogeu na época do nominalismo herético ou semi-herético”.

Neste sentido compreende-se a ação do místico Bernard de Clairvaux contra Abelardo. A Bernard seguem-se os monges de St. Victor, sistematizadores dos símbolos místicos. Com Bonaventura e os franciscanos, acentuar-se-á o sentido psicológico da mística: o caminho interior para a união com Deus. É este o caminho que levará à religiosidade individual”.

Neste ponto, vale abrir parênteses no argumento de Carpeaux para debruçar-se rapidamente sobre um sermão de Hugo de São Vítor, na tentativa de entender melhor essa sistematização dos símbolos místicos, que é, ao mesmo tempo, caminho para a religiosidade individual e espécie de síntese da relação tão caracteristicamente medieval entre símbolo e alegoria.

Trata-se do Sermão 12, sobre os montes e as árvores espirituais de Israel. A tradução encontra-se no site Cristianismo.org.br:

            “‘E vós, montes de Israel,
            estendei os vossos ramos,
            florescei e dai frutos
            ao meu povo de Israel’ (Ez 36, 8).

Irmãos caríssimos, os lugares, assim como os tempos, também têm as suas significações. Assim como pela manhã entendemos o conhecimento da verdade, pelo meio dia o amor da virtude, pela tarde a ignorância, pela meia noite a malícia, pela luz a justiça e pelas trevas a culpa, assim também entendemos pelo campo a liberdade, pela colina a boa ação, pela montanha a contemplação e pelo céu a bem aventurança. Pelo vale, porém, a iniquidade, pelo abismo o desespero e pelo inferno a condenação.

O campo, constituído por uma igualdade, possui acima de si três lugares dotados de significação, que são a colina, a montanha e o céu, e três outros abaixo, que são o vale, o abismo e o inferno.

O campo significa a liberdade, pois assim como aquele que está no campo possui a faculdade, se a tanto não o impede algum outeiro, de dirigir-se segundo queira para diante ou para trás, à direita ou à esquerda, assim também aquele que verdadeiramente é livre possui o poder de fazer o que mais lhe agrada.

A colina, que se levanta apenas um pouco sobre a planície da terra, exprime a boa ação, pela qual nos elevamos do que é terreno.

A montanha, que mais se aproxima das nuvens, designa a contemplação, a qual, elevando-nos para o alto, nos exalta à visão dos bens celestes.

O céu, por ser o lugar da bem aventurança, não inconvenientemente significa a própria bem aventurança.

O vale, por se dirigir para baixo, significa a iniquidade, a qual conduz os maus para as coisas inferiores.

O abismo significa o desespero, para o qual os iníquos descem, partindo do vale da iniquidade. Por isto é que está escrito: ‘O ímpio, depois de ter caído no abismo dos pecados, tudo despreza’ (Pv 18, 3).

Já o inferno, por ser um lugar de condenação, significa a própria condenação.

E vós, montes de Israel, estendei os vossos ramos, florescei e dai frutos’ (Ez 36, 8). Os montes de Israel são os justos que alcançaram a contemplação, os quais, pelo amor do próximo, estendem os seus ramos, isto é, seus santos e frutuosos pensamentos, procedentes da raiz da fé e do tronco da boa vontade, florescem pelos bons princípios, dão frutos pela consumação e produzem folhas pela boa ação.

Três parecem ser, com razão, os principais gêneros de árvores que nascem, crescem, estendem seus ramos, florescem, dão fruto e produzem folhas nos montes de Israel. O primeiro é a oliveira, o segundo é a videira e o terceiro é a figueira.

A oliveira significa a misericórdia, porque assim como o azeite excede os demais licores, assim a misericórdia precede as demais virtudes. A videira significa a sabedoria, porque o vinho, moderadamente tomado, aguça o engenho. A figueira, pela doçura de seus frutos, designa a doçura interior.

Costuma-se associar a misericórdia ao Pai, a sabedoria ao Filho, e a doçura ao Espírito Santo. O Pai, pois, planta a oliveira, o Filho a videira, e o Espírito Santo a figueira. Deve-se saber, no entanto, que ainda que façamos tais distinções nas associações destas três virtudes, não se deve entender, porém, que haja alguma divisão na operação das três pessoas.

O profeta, deplorando nos réprobos a infrutuosidade destas três virtudes, disse: ‘A figueira não florescerá, as vinhas não germinarão, e faltará o fruto da oliveira’ (Hab 3, 17). A oliveira significa, portanto, a misericórdia; a videira, a sabedoria, e a figueira a doçura interior.

Haverá talvez outras árvores nos montes de Israel, pelas quais são figuradas outras virtudes, assim como pelo buxo, por causa de seu verdor, designa-se a fé; pelo cedro, por causa de sua altura, a esperança; pelo pinheiro, a reta repreensão; e pela murta, designa-se a temperança.

Estendamos, irmão, nossos ramos, floresçamos e demos fruto, para que não ocorra que Nosso Senhor nos encontre infrutuosos, nos corte e nos queime. O Evangelho, de fato, nos avisa que ‘o machado já está posto à raiz das árvores’ (Mt 3, 10). Frutifiquemos, pois, como a oliveira, a videira e a figueira.

Há alguns, no entanto, que dão frutos plenos de amargor. Destes é que se encontra escrito: ‘O seu vinho é fel de dragões, e veneno incurável de áspides’ (Dt 32, 33). Nós, porém, ‘como a oliveira verdejante na casa do Senhor, esperemos na misericórdia de Deus’ (Sl 51, 10), o qual vive e reina, pelos séculos dos séculos”.

Outros sermões de Hugo de São Vítor podem ser encontrados, traduzidos para o português, no site Cristianismo.org.br: http://cristianismo.org.br/sermo-00.htm.

***

Voltando a CARPEAUX, agora para finalizar este capítulo sobre o universalismo cristão, lemos o seguinte:

“A mística está acompanhada de efusões poéticas. Contemporânea dos victorinos é Hildegarda de Bingen (1098-1179), a visionária. Contemporâneas da reforma franciscana, embora em ambiente diferente, são as místicas beneditinas Mechthild de Magdeburg (1212-1285), Mechthild de Hackeborn (1242-1299), Santa Gertrudis (1256-1302). É altamente significativo o emprego da língua vulgar nas suas visões poéticas, e é também notável o grande número de poetisas. Essa literatura emotiva é tipicamente feminina. Na descrição dos êxtases introduz-se um vocabulário erótico. O símbolo vai conquistando regiões inexploradas da alma; dá sentido superior à poesia lírica dessa época verdadeiramente universal a que a posteridade chamará ‘Idade Média’”.

Raimundo Lúlio. 15ª leitura: "O livro dos Mil Provérbios".

Sobre Raimundo Lúlio, CARPEAUX diz:

“Lullus é fenômeno raro: um gênio confuso. O caminho da sua vida é retilíneo: vida mundana, desengano, conversão, ascese, projetos de converter sarracenos e judeus, obstáculos eclesiásticos, viagens de missão, martírio. Os altos dignitários da Igreja chamaram-lhe ‘doctor phantasticus’, apelido que não convém às suas obras científicas, nem às literárias, mas sim ao conjunto destas e daquelas. Como poeta, Lullus é um ‘joglar de Déu’; queimou as poesias eróticas da sua mocidade, substituindo-as pela poesia religiosa, a mais pessoal que se escreveu na Idade Média. Lo cant de Ramón, confissão poética, seria o pendant sério da poesia goliarda. As tentativas filosóficas de criar uma ‘ciência geral’, que suscitaram a admiração de Leibniz e antecipam algo da logística moderna, pertencem, em certo sentido, ao gênio poético de Lullus: pretendem transformar o mundo em catedral de símbolos científicos. Mas o conflito entre entusiasmo místico e razão construtiva subsiste. No estranho romance filosófico Llibre de meraveles decompõe-se o mundo em alegorias, e o mais estranho romance Blanquerna exalta a dissolução do mundo real pela mística. Lullus pretendeu reduzir a fórmulas alegóricas o inefável, que se tinha revelado ao místico em símbolos; era um grande poeta pela ambiguidade íntima da sua alma. O resultado de sua vida encontra-se em um dos seus Mil Provérbios: ‘Quem disputa com Deus, será vencido’; mas o místico pretende mesmo ser vencido por Deus”.


Muitos textos de Raimundo Lúlio podem ser encontrados, traduzidos para o português, no site Ricardocosta.com: http://www.ricardocosta.com/textos/ramon. Um PDF de O livro dos Mil Provérbios está disponível na pasta de arquivos online: https://www.dropbox.com/home/Grupo%20de%20Estudo%20e%20Leitura%20dos%20Cl%C3%A1ssicos/2%C2%BA%20semestre%20(2015)/Scans%20e%20PDFs

Conclusões sobre o universalismo cristão.

Concluindo a questão da literatura dos goliardos e caminhando para o fim do capítulo, CARPEAUX diz:

“A literatura antiascética é mais do que um sintoma de decadência moral. É preciso rever o conceito convencional ‘Idade Média’. Com efeito, a expressão já serve apenas para fins de classificação simplista.

Um dos criadores do conceito ‘Idade Média’ é o próprio goliardo. Foram as sátiras e queixas incessantes contra o clero corrompido que contribuíram para abolir o esquema historiográfico dos Padres da Igreja: o binômio Paganismo – Cristianismo. Desde os cluniacenses e cistercienses fala-se em ‘renovatio’ da Igreja e em volta à pureza da Igreja primitiva. ‘Renovatio’ é também o lema das diversas ‘renascenças’, quer dizer, ‘renovatio’ dos estudos clássicos. E quando, no século XVI, as duas ‘renovationes’ se encontraram, o Humanismo e a Reforma, então toda a era entre o fim do paganismo e da Igreja primitiva e, por outro lado, a renovação da Igreja e das escolas, pareceu época intermediária, eclipse temporário do Espírito Santo e do espírito humano. Esse conceito tornou-se até dogma: para os protestantes, é o dogma do ‘Anticristo em Roma’; para os humanistas e os seus sucessores, os livres-pensadores, é o dogma do Progresso. A história apresenta-se como esquema tripartido: entre o brilho da Antiguidade e da Igreja primitiva e o novo brilho do Humanismo e da Igreja reformada, há a ‘Idade Média’ escura. Um historiador de terceira ordem, do século XVII, Cellarius, introduziu a expressão dos manuais. Outro, Robertson, inventou a expressão ‘Dark Ages’. Afinal, os próprios ‘medievalistas’ conformaram-se com o termo.

O romantismo, tão apaixonado pela ‘Idade Média’, não conseguiu abolir o erro, porque esse mesmo erro estava no conceito dos próprios românticos. Tacitamente, aceitaram o esquema tripartido, apenas invertendo os valores: a época moderna apareceu-lhes como fase de corrupção política e religiosa, e a ‘Idade Média’ como idade áurea da monarquia feudal e da Igreja ortodoxa. O ‘medievalismo’ é progressismo às avessas.
            
O estudo das ‘renascenças medievais’ abriu as primeiras brechas. Troeltsch chamou a atenção para a relatividade do ideal ascético e para as concessões da Igreja ao espírito profano. Brinckmann já distinguiu dois tipos do homem medieval: o idealista ascético e o leigo realista. Afinal, a civilização medieval é um fenômeno muito complexo; não é possível defini-la numa frase só. Ao lado da mentalidade eclesiástica, há a mentalidade leiga dos cavaleiros; ao lado da civilização feudal, há a civilização burguesa. E tudo isto não se encontra em equilíbrio estático, como a equação ‘Catedral – Summa’ afirmou, mas em evolução viva e multiforme.

            
A solução teórica do problema talvez esteja na distinção mais exata dos termos símbolo e alegoria, que se empregam, indistintamente, na equação ‘Catedral – Summa’. O símbolo é expressão artística do que é inefável; a alegoria é representação intelectual do que é compreensível. A Catedral é um símbolo. A Summa é um conjunto de alegorias. A ‘Idade Média’ está entre esses dois polos, oscilando, evoluindo, e enfim dissolvendo-se. Existe até uma grande figura na qual os dois termos se encontram: Raimundus Lullus, o santo da Catalunha”.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

14ª leitura: "Carmina Burana".

Sobre os manuscritos do Carmina Burana, diz CARPEAUX:

“O poeta de alguns manuscritos alemães chama-se ‘Archipoeta’; os ingleses preferem dizer ‘Golias’; certas alusões a paisagens tipicamente italianas indicariam a nacionalidade do autor, mas os goliardos todos, como ‘vagantes’, conheciam bem a Itália. Na verdade, trata-se de uma figura coletiva e internacional, como toda a literatura latina da Idade Media. O ‘Archipoeta’ está em casa em toda a parte, ou antes, em nenhuma parte, e quando presta homenagens ao imperador, não é por patriotismo alemão, e sim por ódio contra os altos dignitários da Igreja; este ‘Archipoeta’, aliás, é do século XII, ao passo que a maior parte dos poemas se situa por volta de 1230. A ‘decadência’ goliárdica coincide com o apogeu da escolástica.

O autor coletivo da poesia dos ‘clerici vagantes’ é um grande poeta, talvez um dos maiores da literatura universal. Em primeira linha, é um humorista sutil, que sabe inventar frases sempre novas e engenhosas para pedir dinheiro aos ricos. O goliardo é pobre, é mendigo. Os estudos já o aborrecem – ‘Florebat olim studiam, / Nunc vertitur in taedium...’ [Floresci já no estudo, / Que agora se verteu em tédio] – e o seu júbilo, viajando para a famosíssima Universidade de Paris – ‘Vale, dulcis patria! / Suavis suevorum Suevia! / Salve, dilecta Francia, / Philosophorum cúria!’ [Adeus, doce pátria! / ? / Salve, França querida, /Cúria dos filósofos!] – parece ter menos em mente os filósofos do que as moças (‘...iam virgo maturuit, / iam tumescunt ubera’ [as virgens já amadureceram, os seios já incharam]); e no amor o goliardo é insaciável: ‘Si tenerem, quam cupio, / In nemore sub folio, / Oscularer com gaudio’ [Se agarrassem aquela que eu desejo, sob as folhas dos galhos, eu a beijaria com alegria]. As mulheres e o vinho. Com gravidade solene, fala do ‘Istum vinum, / bonum vinum, vinum generosum’ [Este vinho, belo vinho, vinho generoso], e chega a parodiar o hino ‘Verbum bonum et suave’, no verso ‘Vinum bonum et suave’. Eis, porém, que chega a velhice. O goliardo sente remorsos religiosos: “Omnes quidem sumus rei, / Nullus imitator Dei, / Nullus vult portare crucem’ [Todos nós somos culpados, / Ninguém é capaz de imitar a Deus / Ninguém quer carregar a cruz]. O arrependimento é pouco sincero. Mais uns versos contra ‘rex hoc tempore summus’ [o mais alto Rei de hoje], o dinheiro, e então o goliardo faz a sua confissão contrita, a ‘Confessio Goliae’, na qual se encontra o verso blasfemo ‘Mihi est propositum in taberna mori’. É a despedida do gênio, corrompido e perdido na taverna; depois, desaparece sem deixar vestígios”.

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Na pasta de arquivos online, consta um PDF com as letras traduzidas do Carmina Burana, que também podem ser encontradas online, através deste link: http://user.das.ufsc.br/~sumar/perfumaria/Carmina_Burana/carmina_burana.htm. O link para a pasta de arquivos online é: https://www.dropbox.com/home/Grupo%20de%20Estudo%20e%20Leitura%20dos%20Cl%C3%A1ssicos.

Literatura latina medieval.

Para encerrar o assunto “epopéias medievais”, CARPEAUX diz o seguinte:

“As ‘epopéias nacionais’ pertencem, literariamente, à poesia dos clérigos e trovadores da alta Idade Média.[1] Mas quanto ao espírito que as informa, pertencem a uma época anterior. Terminam a pré-história pagã dos povos europeus e iniciam a formação das nações cristianizadas; ao mesmo tempo, introduzem no universalismo medieval o germe da dissolução linguística. São as primeiras grandes obras em ‘vulgar’. Eis o papel das epopéias nacionais, na França, na Espanha e na Alemanha. Os ingleses não têm epopéia nacional – o Beowulf não pode ser considerado assim; a eles, a situação insular deu outros meios para definir sua nacionalidade. Tampouco têm epopéia nacional os italianos, porque os patrícios do Papa, vigário de Cristo e chefe da Igreja universal, constituíram a ‘nação internacional’. Eles, a nação da Igreja, seguiram o caminho da Igreja; na Itália construiu-se, sobre a base do sistema filosófico, a epopéia universal de Dante”.

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Com isso, chegamos ao final do Capítulo I (“A fundação da Europa”) da Segunda Parte (“O mundo cristão”) da História da Literatura Ocidental de CARPEAUX, e abrimos o Capítulo II da Segunda Parte, que o autor chama de “O universalismo cristão”.[2] Esta Segunda Parte ainda terá dois capítulos – o III, chamado “A literatura dos castelos e aldeias”, e o IV, “Oposição, burguesa e eclesiástica” –, cobrindo assim toda a história literária ocidental até o séc. XIV, época do “Trecento” italiano.


A modo de prelúdio, CARPEAUX estende-nos um panorama do capítulo em seus parágrafos iniciais, levando-nos até o seu tema central – a literatura latina medieval. Ele diz:

“A comparação entre a arquitetura das catedrais góticas e a arquitetura lógica dos sistemas escolásticos é um lugar-comum dos estudos medievalistas; parece só metáfora. Revelou-se, porém, que as plantas e a decoração escultórica das catedrais obedeceram realmente a um plano, fornecido pelos construtores da teologia e da metafísica; os pormenores correspondem ao plano com a maior precisão. Os elementos básicos comuns, que conferem ao pensamento medieval a estrutura arquitetônica, e à arquitetura medieval a significação teológico-filosófica, são o modo de pensar hierárquico e a ideia da ordem universal, revelada naquelas correspondências. Um mundo governado espiritualmente pela hierarquia eclesiástica e materialmente pela hierarquia feudal não pode pensar de maneira diferente. Tudo, no mundo visível e no mundo invisível, tem o seu lugar definido na hierarquia das criaturas, instituições e coisas, e as dúvidas eventuais se resolvem pela correspondência exata [entre] ‘visibilium omnium et invisibilium’ [todas as coisas visíveis e invisíveis]. Com efeito, a base desse pensamento encontra-se no Credo: ‘et incarnatus est de Spiritu Sancto’. Pela encarnação de Deus, o mundo material foi santificado; tornou-se símbolo e reflexo do outro mundo. O mundo é um símbolo – eis uma ideia bem medieval; em consequência, todos os seus pormenores têm qualquer significação além da significação material e literal, prestam-se à interpretação alegórica. A alegoria é o método de pensar medieval; tem a função que exerce o experimento no pensar científico moderno. Com a alegoria, resolvem-se dúvidas e problemas. O resultado da alegorização do mundo é o estabelecimento de uma ordem perfeita na hierarquia do Universo; em tudo age o espírito de Deus. O mundo é o reino do Espírito Santo. Eis o ideal do imperador Otto III, residindo em Roma, em comunhão fraternal com o Papa Silvestre II.

Mas Lúcifer também aspira ao título de ‘príncipe deste mundo’, e faz uma tentativa bem sucedida para encarnar-se nos poderes temporais. No começo, a ciência angélica serviu, sem escrúpulos, ao poder temporal; a chamada ‘Renascença otoniana’, florescência dos estudos clássicos nos conventos do século X, está intimamente ligada à casa reinante; Gerberga, que ensinou a religiosa Hrotswith de Gandersheim a escrever comédias cristãs no estilo e latim de Terêncio, é sobrinha do imperador Otto I. Dessa estirpe nascerão, porém, polemistas terríveis, aos quais responderão os polemistas não menos terríveis do Papado, todos em língua latina e com as armas da ciência clerical. De ambos os lados da barricada lutam arcebispos, bispos, cônegos e doutores. O mundo literário-científico dos séculos XI, XII e XIII, já muito antes da vitória definitiva do papa sobre o imperador, era um mundo clerical. O reino literário do Espírito Santo”. 

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A ciência e a literatura dos clérigos estavam escritas na língua da liturgia. Para aprender a dominar essa língua, era preciso cultivar os clássicos. Entre 1070 e 1140 situa-se um grande movimento, de consequências incalculáveis, em favor dos estudos clássicos: a chamada ‘Renascença do século XII’ ou ‘Proto-Renascença’. Tem o seu centro na França, fato que provocou certas reivindicações no sentido de atribuir todo o movimento renascentista europeu a fontes francesas. Esse exagero prejudicaria a compreensão das renascenças italianas. Mas o fato geográfico está certo, e explica-se pela evolução especial da Igreja francesa, por volta do ano 1100, que é uma das grandes datas críticas da história universal.

Naquele tempo, a Igreja, que se regia, até então, segundo os princípios do feudalismo e levara uma vida principalmente agrária, começou a urbanizar-se. Com a evolução da vida urbana, sobretudo na França e na Bélgica, os centros eclesiásticos deslocaram-se dos campos para as cidades, dos conventos para os bispados. A consequência foi uma reforma do ensino. As escolas conventuais perderam a sua importância; foi então que Sankt Gallen entrou em decadência. Sucederam-lhe as escolas episcopais, nas cidades. Uma das primeiras e mais famosas entre elas é a escola de Chartres, fundada em 990, pelo bispo Fulbert, e na qual ensinaram os escolásticos platonizantes Bernard de Chartres, Gilbert de la Porrée e Thierry de Chartres, espíritos de uma liberdade surpreendente, com  veleidades de poesia e ciências naturais. Das escolas episcopais nascem as primeiras universidades: Paris, Montpellier, Toulouse, Cambridge – universidades eclesiásticas, nas quais ensinam, como nas escolas episcopais, os magistri. Estão ao lado das universidades municipais, domínio dos scolares: Bologna, Pádua, Siena.

Os conhecimentos literários dessa gente universitária – mesmo fora das disciplinas profissionais: Teologia, Filosofia, Jurisprudência, Medicina – eram muito extensos, mais do que em geral se acredita, e, em parte, mais vastos do que em plena Renascença. Pode servir de exemplo a então famosa escola do gramático Eberard de Béthune (por volta de 1210): leram-se, aí, Virgílio, as sátiras de Horácio, Ovídio (inclusive as poesias eróticas), Lucano, Estácio, Pérsio, Juvenal, Fedro, Claudiano e Boécio, além de numerosas obras latinas de autores medievais; não se menciona, porém, Terêncio (leitura preferida nos conventos), nem Plauto e Marcial, igualmente muito lidos em outras escolas. O agostiniano inglês Alexander Neckham (1157-1217) escreveu para o ensino monástico o Mythographus, manual da mitologia pagã. Um quadro quase completo de conhecimentos clássicos apresenta o famoso polígrafo Vincentius de Beauvais († c. 1264). No seu tratado didático De eruditione filiorum nobilium, A. Steiner contou 148 citações de Jerônimo e 75 de Agostinho, 60 citações de Ovídio, 57 de Sêneca e 39 de Cícero. Na sua enorme enciclopédia Speculum maius, que trata em 9865 capítulos de tudo o que existe e de muitas outras coisas, Vincentius utilizou Plauto, Terêncio, César, Cícero, Virgílio, Horácio, Ovídio, Manílio, Vitrúvio, Fedro, Lucano, Pérsio, Sêneca, Plínio, Estácio, Juvenal, Quintiliano, Suetônio, Apuleio e Marcial, além de muitos autores gregos em tradução latina; Vincentius desconhece, porém, Lucrécio, Catulo, Lívio e Tácito. Esses extensos estudos latinos serviam, em primeiro plano, para fins gramaticais: tratava-se de dominar a língua da liturgia, da teologia e filosofia, e da jurisprudência. A época dos clérigos não as concebia em outra língua, e a consequência foi a uniformidade internacional das instituições medievais.

Brunetière abre o seu Manuel de l’histoire de la littérature française com uma citação de Tocqueville: ‘J’ai eu l’occasion... d’étudier les institutions politiques du Moyen Age en France, en Angleterre et en Allemagne; et, à mesure que j’avançais dans ce travail, j’étais rempli d’étonnement em voyant la prodigieuse similitude qui se rencontre en toutes ces lois’ [‘Eu tive a oportunidade... de estudar as instituições políticas da Idade Média na Franca, na Inglaterra e na Alemanha; e, à medida que avançava nesse estudo, enchia-me de admiração ao ver a semelhança incrível presente em todas essas leis]. Isso se aplica também às instituições universitárias e às atividades literárias. O ‘internacionalismo’ da Idade Média é muito forte.

Mas aquela citação convém particularmente para abrir o estudo da literatura francesa medieval: na Idade Média, a literatura francesa dominou a Europa inteira, fornecendo às outras literaturas os assuntos, os gêneros, os metros, a mentalidade. O fenômeno não pode ser explicado sem consideração do fato de que a França dos séculos XII e XIII também era o centro de uma outra literatura, em língua latina; a literatura francesa da época não passa, com poucas exceções individuais, de um órgão intermediário, em língua “vulgar”, entre a literatura latina e as novas literaturas nacionais. A literatura latina medieval é a expressão do internacionalismo medieval”.

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A literatura latina medieval é imensamente vasta; mas está morta, isto é, não se continua, e a sua extensão é um dos obstáculos a uma apreciação mais justa. Eis porque subsistem ideias errôneas com respeito ao caráter unilateral, puramente eclesiástico, dessa literatura: parece composta de hinos litúrgicos e vidas de santos. Com efeito, a hinografia constitui parte essencial da literatura latina média; mas no século XII o hino, que é uma criação de épocas anteriores, já estava em decadência, e o século XIII, a idade áurea da literatura latina medieval, só viu o fim da hinografia, com os ingleses John de Hoveden ( 1275) e John Peckham ( 1292), e o francês Philippe de Grève ( 1237). Um fim, aliás, que pertence principalmente ao movimento franciscano, cujos hinos diferem, na forma e na essência, do hino litúrgico anterior. E quanto à hagiografia, o seu monumento principal, a Legenda aurea, do dominicano Jacopus de Varagine, fonte inesgotável de iconografia medieval, é igualmente um fim: é o cume da hagiografia, e só deixou lugar para os epígonos. Mas a literatura latina medieval é muito mais vasta, tem muitos outros aspectos. Só o desconhecimento dela é responsável pela pobreza dos ‘capítulos medievais’ em muitas histórias das literaturas nacionais. Os franceses, ingleses, italianos, alemães, espanhóis dos séculos XI, XII e XIII tinham duas literaturas: uma em língua latina, outra em língua vulgar; e a latina era mais rica e informou a outra, fornecendo-lhe assuntos, temas, gêneros, metros, formas. A literatura latina medieval é a base da literatura medieval inteira. E só aparentemente caiu, depois, em esquecimento completo. Pois inúmeros enredos, temas e formas da literatura latina medieval sobreviveram, ainda que apenas por via de alusão; e sobrevivem até hoje”.

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A literatura religiosa só raramente sai da igreja para oferecer leitura aos leigos. Cria, porém, pelo menos, um novo gênero: a ‘Visio’, relato da visão de um místico ou outro homem pio, em que se lhe revelavam os segredos do outro mundo. A ‘visio’ mais antiga parece ser a chamada Visio Wettini, na qual o monge Walafrid Strabo (c. 809-849) viu as almas nos três reinos sobrenaturais. O que interessava sobremodo nessas visões era o estado das almas no outro mundo, os seus sofrimentos, especialmente no Purgatório. Daí a grande popularidade do gênero, depois da instituição da festa de Finados. Destacam-se, então, o Purgatorium Sancti Patricii, no qual já se encontra um sistema complicado de penas infligidas às almas, a Visio Tungdali (c. 1150), e a visão do monge Alberico de Monte Cassino. Esse gênero é precursor literário da Divina Comédia.

O Purgatório imaginava-se no subsolo; o lugar das recompensas celestes, em uma ilha, perdida ao longe, no Oceano ocidental. A imaginação céltica colaborou nessa ideia, e das lendas de marinheiros irlandeses nasceu a Navigatio Sancti Brendani, relato de uma viagem fantástica, no Atlântico. A Idade Média gostava muito de relatos de viagens, sobretudo a lugares santos. As romarias a Roma criaram um gênero especial, os ‘Mirabilia’, espécie de ‘Baedeker[3] ou ‘Guide Hachette[4] para informar sobre as igrejas e relíquias de Roma; tais são os Mirabilia urbis Romae (c. 1150), do padre romano Benedictus; e cita-se ainda a Narratio de mirabilibus urbis Romae, de Osbern de Gloucester (século XII). Depois de as Cruzadas terem aberto o caminho para a Palestina, o gênero se ampliou, como o revela a Descriptio terrae sanctae, de Johannes de Wuerzburg (c. 1170). O contato com o Oriente produziu outros relatos de viagens, inventadas, como as de Mandeville, ou reais, como as de Marco Polo. Mas isso já fora do meio da língua litúrgica”.

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Ao lado da geografia está a história. Guibert de Nogent descreveu a primeira cruzada e deu à obra o título Gesta Dei per Francos, que impressionou o patriotismo religioso dos franceses até o século XX. Sem veleidades de panache, com o espírito prático de inglês e diplomata eclesiástico, um monge de St. Alban, Matthaeus Parisiensis, escreveu a poderosa Chronica Major, o maior monumento da Inglaterra católica. Na Itália, o franciscano Fra Salimbene de Parma encheu a sua Chronica de anedotas, de baladas que se cantavam nas ruas, de toda a vida tumultuosa das pequenas cidades italianas. Guibert, o patriota, Matthaeus, o político, e Salimbene, o homem do povo e da vida pitoresca, representam três tipos da historiografia, que continuarão.

A Idade Média não sabe distinguir entre realidades materiais e realidades imaginárias: história e lenda se confundem, porque ambas têm a mesma significação alegórica. Grande parte da literatura latina média serve para fins de interpretação alegórica dos objetos e do mundo, o que dá oportunidade a que se introduzam clandestinamente muitas coisas profanas. Entre inúmeras obras ineptas, cita-se o Liber lapidum, do bispo Marbod de Rennes ( 1123), explicação alegórica das qualidades das pedras preciosas; o mesmo Marbod é um moralista eloquente no Liber decem capitulorum. O moralismo justifica tudo: até os contos de origem oriental, que o judeu espanhol Petrus Alphonsi (convertido em 1106) inseriu na Disciplina clericalis. O maior moralista medieval é o cluniacense Bernadus de Morlas: o seu vasto poema De contemptu mundi (c. 1140) está cheio de eloquência terrível contra a mulher (‘femina perfida, femina foetida’), contra o clero corrupto, contra os prazeres do mundo. Numa hora de melancolia, Bernardus escreveu o poema que principia com o verso ‘Est ubi gloria nunc Babylonia?’ [Onde está agora a glória de Babilônia?] primeira versão do ‘Qué se hizo el rey Don Juan?...’ [Que foi feito do Rei Don Juan?], de Jorge Manrique, do ‘Dites moy ou, n’en quel pays...’ [Diga-me, então, em que país...], de Villon, e do ‘Ubi sunt qui ante nos in mundo fuere?...’ [Onde estão os que estavam no mundo antes de nós?], canção dos estudantes alemães”.

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Ao moralismo se alia a sátira, que é, na Idade Média, extremamente violenta. O clero não pode ser atacado com maior ímpeto do que nas sátiras pouco horacianas de Philippus de Grève ( 1237), chanceler da catedral e Notre-Dame de Paris. As mais das vezes, porém, a sátira esconde-se atrás da alegoria. Colaboraram vários fatores para popularizar a ideia de apresentar as personagens satirizadas em disfarce de animais: reminiscências de fábulas de animais, do paganismo germânico, como na Ecbasis captivi, de um monge alemão do século X; a explicação alegórica das qualidades dos animais, iniciada no Physiologus, da Antiguidade decadente, e muito imitada, como no Poema de naturis animalium, do monge Theobaldus de Monte Cassino (século XI); enfim, a repercussão das fábulas de Fedro, como no Aesopus, de Gualterus Anglicus (século XII). O resultado é o Ysengrimus (c. 1184), do magister Nivardus de Gent, origem do romance de Renart”.

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Um passo mais adiante, a fábula irá transformar-se em conto. A primeira tentativa é muito antiga: é o Ruodlieb latino, que um monge alemão do convento de Tegernse escreveu por volta de 1050. Depois, chega a invasão de contos orientais, através de versões bizantinas. Tais são os contos narrados pelos ‘sete sábios’, no romance Dolopathus (1184), do francês Johannes de Alta Silva, e, nos séculos XIII e XIV, a vasta coleção do Gesta Romanorum, que reúne contos das origens mais variadas, da antiguidade clássica, até da Índia, uniformizados pela mentalidade medieval, da qual a obra é um espelho perfeito”.

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Também aparece, pela primeira vez, em latim, o conto humorístico-satírico, o fabliau: o conto diversificado Milon (c. 1160), de Matthaeus de Vendôme, é a primeira narração de um adultério escrita por um francês. O assunto está em relação com o fato literário que menos se espera na Idade Média: a existência de peças dramáticas profanas. Plauto e Terêncio impressionaram a imaginação dos monges, inspirando-lhes cenas dialogadas, à maneira dos ‘debates’ – o ‘Debate entre corpo e alma’ é assunto predileto da literatura medieval – ‘debates’ na língua clássica, e logo em espírito ‘pagão’. No século XII, Vitalis de Blois decalcou as ‘comédias’ Geta e Querulus sobre Amphitruo e Aulularia. São anônimas uma comédia terenciana Pamphilus et Gliscerium, uma comédia de adultério, Comoedia Babionis, e o escandaloso Pamphilus de amore, que o Arcipreste Ruiz de Hita utilizou. Compreende-se o anonimato, mas essas comédias dão testemunho da força do espírito profano na literatura da língua litúrgica”.

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A literatura latina apoderou-se também da matéria épica, enriquecendo-a e devolvendo-a às literaturas vulgares. É exceção, antes rara, uma epopeia bíblica, como a Aurora, de Petrus de Riga, cônego em Reims no século XII, versificação fastidiosa da Bíblia inteira, mas que foi o livro didático mais divulgado da Idade Média, existindo em numerosos manuscritos, embora nunca impresso. A Chanson de Roland forneceu a matéria da Historia Caroli Magni (c. 1165), que se dá como obra de um arcebispo Turpin; é um romance de valor diminuto, mas alcançou fama universal e contribuiu para a divulgação do assunto em toda a Europa. O Ciclo Bretão deriva mesmo de uma fonte latina: da Historia regum Britanniae, de Geoffrey do Monmouth. E, finalmente, o Ciclo Antigo. Imitando o romance bizantino de Pseudo-Kallisthenes, o arcipreste Leo de Nápoles escreveu, por volta de 1000, uma fantástica Historia de proeliis, sobre a vida de Alexandre Magno. Depois, Gualterius de Châtillon, bispo de Tournai, do qual também existem Rhytmi rimados, compôs a Alexandreis (c. 1175), que se recomendou às escolas pelo elemento alegórico; é um poema de valor de atmosfera virgiliana. Hugo de Orléans ( 1160) e Josephus de Exeter (1210) escreveram poemas sobre a guerra troiana, segundo a versão de Dares; mas o grande êxito coube à Historia Destructionis Troiana, do italiano Guido delle Colonne ( 1287), mais divulgada que o modelo francês de Benoît de Saint-More. Guido, que os contemporâneos compararam a Dante e ainda os latinistas do século XVII exaltaram, é o mais morto entre os ilustres defuntos do cemitério da literatura universal.
            As ‘gestes’ latinas não se podiam impor sem assimilar também a atmosfera erótica que envolvia as obras correspondentes em língua vulgar. E os clérigos-poetas latinos revelaram capacidade surpreendente para exprimir até o lado menos sublime do amor. Andréas Capellanus, chamado assim porque era capelão do rei da França, escreveu um tratado De amore bem ovidiano, e Giraldus Cambrensis, bispo de St. David no País de Gales, era um poeta do amor sentimental, na Descriptio cuiusdam puellae e em De subito amore. Mas o ponto culminante é uma obra anônima do mesmo século XII, o Concilium in monte Romarici: reunião de religiosas, sob a presidência da abadessa, discutindo se é preferível o amor de um clérigo ou de um cavaleiro”.

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“Outros havia que preferiram, evidentemente, os acordes mais sérios da lira antiga. Alfano, arcebispo de Salerno por volta de 1080, celebrou em versos clássicos a venerável abadia de Monte Cassino, que tinha, já então, mais de meio milênio de existência; e Matthaeus de Vendôme, ao qual já encontramos como fabulista licencioso, sabia fazer versos de feição virgiliana – seu poema Tobias foi, no gênero, a obra mais famosa da Idade Média. Mas Matthaeus é só artista da forma; escreveu também uma Ars versificatoria. E entre os cultores do latim litúrgico existem verdadeiros humanistas. O primeiro e o mais digno entre eles é Hildebert de Lavardin, arcebispo de Tours. Este sucessor do semibárbaro Gregório de Tours não deixa de ser um bispo medieval; só poetiza para dar lições morais e, por meio do verso, gravá-las melhor na memória. Mas quando, em 1085, viu a Cidade Eterna devastada pelos normandos, a emoção inspirou-lhe os versos clássicos: ‘Urbs cecidit, de qua si quicquam dicere dignus / Moliar, hoc potero dicere: Roma fuit’ [A cidade caiu; não há nada mais digno de se dizer como epitáfio do que: Isto era Roma].

O humanismo toma atitudes oposicionistas em [Pedro] Abelardo, cavaleiro perdido entre os clérigos, mas, em realidade, não perdido, porque de uma inteligência superior. ‘Docente livre’ em Paris, fora da Universidade, bateu os magistri pelo talento brilhante de causeur, perturbou os teólogos pelo dialético do Sic et Non, despertou as consciências pela ética quase autonomista do Nosce te ipsum, comoveu a todos pelos seus sermões, e sobretudo pelos seus hinos, que já pertencem à liturgia, mas são obras de arte independentes, como o ‘Advenit veritas, umbra praeteriit’, arte que podemos situar entre gongorismo e parnasianismo. Abelardo tinha muitos admiradores e ainda mais inimigos. Lutou, quanto pôde, contra os anátemas de São Bernard de Clairvaux, e não teria sucumbido, talvez, se não o tivesse desgraçado o amor de Heloísa. A sua Historia calamitatum mearum é a autobiografia de um homem moderno; Gourmont chamou a Abelardo o primeiro racionalista e artista tipicamente francês, ou antes parisiense”.

‘Racionalista’ moderado, ‘classicista’ conservador, ao lado do ‘radical’ Abelardo – assim aparece o eruditíssimo Alanus ab Insulis, mas no Anticlaudianus e Liber de planctu naturae ele também se revela pouco conformista: um entusiasta místico da Natureza, celebrando-a em versos quase baudelairianos [...].

Agora, já não parece estranha a figura extraordinária de Johannes de Salisbury, bispo de Chartres, amigo do grande arcebispo Thomas de Canterbury, do qual escreveu a biografia. Homem de cultura francesa e serenidade inglesa, Johannes é essencialmente ‘prelado romano’ no sentido em que os tempos modernos empregam a palavra: ortodoxo quanto aos dogmas essenciais e céptico quanto ao resto; identificando o amor de Deus com a filosofia, e a sabedoria com as letras clássicas; partidário de uma política ‘clerical’, contra o Estado dos leigos, para preservar a independência do poder espiritual e do Espírito. Johannes de Salisbury parece, às vezes, um precursor longínquo de Thomas Morus; outra vez, um cardeal da Renascença”.

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“A presença – e glória – de uma figura assim, no século XII, basta para destruir o conceito convencional da ‘Idade Média’; a definição da época pelo binômio ‘Catedral e Summa’ torna-se insuficiente. Na verdade, a ‘Summa’ também representa o resultado de um movimento ‘renascentista’: a renascença de Aristóteles. A capacidade medieval de assimilar o pensamento e as formas da Antiguidade era muito grande. Uma obra como o Speculum Maius, de Vincentius de Beauvais, tão representativa da época, está saturada de ‘humanismo’; incorpora ingenuamente a Antiguidade pagã, justificando-a, quando preciso, pela interpretação alegórica. A alegoria é o instrumento supremo do humanismo medieval. No fundo, é o mesmo processo pelo qual o público medieval se apoderou de Homero, Virgílio e Ovídio, transformando os personagens antigos em cavaleiros e damas feudais. É um anacronismo enorme. O mesmo anacronismo age, aliás, na imaginação popular. Do mesmo modo por que Virgílio é aceito como feiticeiro e profeta pré-cristão, povoam-se as ruínas romanas de fantasmas noturnos que não são outra coisa senão disfarces supersticiosos dos deuses que tiveram antigamente o seu culto nos mesmos lugares. Até no Dialogus miraculorum (c. 1220), de Caesarius de Heisterbach, cheio de relatos fantásticos de almas que aparecem vindas do Purgatório, pedindo ajuda, e de demônios que as fazem recuar para o lugar sinistro, até nessas histórias de um monge angustiado os diabos levantam, às vezes, a máscara, e o rosto de Vênus ou Mercúrio se revela.

A Idade Média, assimilando a Antiguidade, parece incapaz de compreendê-la. O grande obstáculo é o ascetismo. Ao ‘homo cluniacensis’ a liberdade grega do corpo e do espírito permanece incompreensível. Desde os estudos famosos, porém já antiquados de von Eicken, o ascetismo foi sempre considerado como a tendência mais característica da civilização medieval. Existe, novamente, vasta literatura medieval antiascética.

Uma das obras dessa literatura é até muito famosa, e com toda a razão: é o conto anônimo Aucassin et Nicolette. É uma chantefable; quer dizer, pequenas canções interrompem a história de Aucassin, que se apaixonou pela escrava sarracena Nicolette e a conquistou e casou com ela, contra todos os obstáculos do mundo. Como tudo termina bem, é um idílio, cheio de ternura, mas não de inocência. As perfeitas maneiras cavaleirescas do estilo mal escondem a sensualidade ardente; e quando ameaçam com o Inferno o enamorado da bela infiel, Aucassin responde: [‘O que tenho eu com o paraíso, desde que eu tenho Nicolette, meu doce amigo? Céu é para velhos sacerdotes, para os aleijados, pinguins que dia e noite rastejam ao redor dos altares, na cripta bolorenta; isso é para os velhos triturados, trapos de imundícia, para os de pés descalços, sem meias ou calças, para os que morrem de fome e usam tapa-dentes! Eis aí o que vai para o seu paraíso: o que eu tenho a ver com mendigos? É do inferno que eu preciso! Lá há clérigos elegantes, os belos cavaleiros mortos em torneios e nas grandes guerras magníficas; e até lá vão lindas garotas, belas e finas senhoras que têm dois ou três amantes, além de seus maridos’]”.

Atribuiu-se essa atitude à influência oriental, importada pelas cruzadas. Mas o ‘inferno’ de Aucassin não é maometano; e o caso não é isolado. Aí está a poesia dos goliardos e outros vagabundos latinos.

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“Entre as universidades medievais existia o maior intercâmbio possível de professores e estudantes. Os universitários viviam em viagens contínuas entre Bologna, Paris e Oxford; juntaram-se a eles outros clérigos, fugitivos da disciplina rigorosa dos conventos; muitos se perderam na vida devassa e até criminosa das estradas reais, outros na anarquia moral das grandes cidades como Paris. Havia mais clérigos do que prebendas, e constituiu-se afinal um ‘proletariado latino’: os ‘clerici vagantes’ ou ‘goliardos’. Entre eles nasceu uma poesia antiascética, pendant estranho da hinografia.

Já ao bispo Gualterius de Châtillon se atribuem poesias dessa espécie. Mas o primeiro goliardo autêntico é magister Hugo de Orléans (c.1093-1160), com as suas poesias de amor e vinho, maravilhosamente rimadas, com os lamentos típicos sobre a pobreza e, depois, sobre a velhice. Ao inglês Walther Map ou Mapes (c. 1140-1209), autor de poemas sobre Lancelot e o Graal, atribuem-se versos violentos contra o celibato, e também a blasfêmia do ‘mihi est propositum in taberna mori’ [meu propósito é morrer na taberna]. Na Chronica de Fra Salimbene acha-se inserta uma canção tabernária do goliardo Morando da Padova. Enfim, o maior corpus dessas poesias está reunido no manuscrito dos ‘Carmina burana, preciosidade extraordinária da Biblioteca Nacional de Munique”.



[1] Período que vai de 100 a 600 d.C., aproximadamente (séc. II a VII d.C., portanto).
[2] A Primeira Parte do estudo, chamada “A herança”, teve três capítulos: o I chamou-se “A literatura grega”, o II, “O mundo romano” e o III, “O cristianismo e o mundo”.
[3] Espécie de guia turístico compacto e resistente, em vários volumes.
[4] Espécie de cartilha de apresentação e avaliação de vinhos.