“O teatro grego é
de origem religiosa; nunca houve dúvidas a esse respeito. As tragédias – e, em
certo sentido, também as comédias – foram representadas assim como se realizam
festas litúrgicas. Mas quanto à liturgia que teria sido a base histórica do
teatro grego, ainda não se chegou a teses definitivamente estabelecidas. As
pesquisas da escola antropológica de Cambridge parecem ter confirmado, embora
precisando-o, o que sempre se soube: a tragédia grega nasceu de atos litúrgicos
do culto do Dioniso. [...] Podemos continuar adotando a intuição genial de
Nietzsche: a tragédia grega é a
transformação apolínea de ritos dionisíacos.
[...] o único
conteúdo possível da tragédia grega era o mito, fornecido pela tradição;
enredos inventados pela imaginação do dramaturgo, que enchem os nossos repertórios,
estavam excluídos. Tratava-se de interpretações e reinterpretações dramáticas
de enredos dados.
[...] O
teatro grego é mais retórico e mais lírico do que o moderno. Os discursos
extensos, que os gregos não se cansavam de ouvir, seriam insuportáveis para o
espectador moderno, que prefere, a ouvir discursos, ver e viver a ação. O
grego, ao que parece, frequentava o teatro para se deixar convencer da justeza
de uma causa, como se estivesse assistindo à audiência do tribunal ou à
sessão da Assembleia. E os requintes da retórica, superiores em muito aos
pobres recursos da eloquência moderna, não bastaram para esse fim:
acrescentaram-se, por isso, aos argumentos do raciocínio as emoções da poesia lírica,
acompanhada, como sempre, de música, de modo que a representação de uma tragédia
grega se assemelhou, por assim dizer, às nossas grandes óperas. Mas a ópera
moderna é gênero privativo das altas classes da sociedade, enquanto a tragédia
grega era instituição do Estado democrático, e a participação nela era de certo
modo um direito e um dever constitucionais. Assim, a tragédia grega era uma
discussão parlamentar na qual se debatia, lançando-se mão de todos os recursos para
influenciar o público, um mito da religião do Estado.
Considerando-se
isto, as concorrências dos poetas, que apresentaram peças, perdem o caráter de
competição esportiva: a vitória não cabia ao maior poeta ou à melhor poesia
dramática, mas à peça que impressionava mais profundamente; quer dizer, à
peça na qual o mito estava reinterpretado de tal maneira que o público se
convencia dessa interpretação e – podemos acrescentar – por isso o Estado a
aceitava. Tratava-se de um acontecimento político-religioso, que ocorria uma só
vez. O teatro grego não conheceu representações em série. Com a representação
solene, a causa estava julgada, a lei votada. O verdadeiro fim do teatro grego –
assim reza a tese sociológica – era a sanção duma modificação da ordem social
por meio de uma reinterpretação do mito”.
***
“A
cronologia dos grandes trágicos gregos é um tanto confusa. Desde a Antiguidade
foram sempre estudados numa ordem que sugere fatalmente a ideia de três gerações:
Sófocles, sucessor de Ésquilo, e Eurípides, por sua vez, sucessor de Sófocles.
Mas Ésquilo (525-456 a. C.), Sófocles (496-406 a. C.) e Eurípides (480-406 a.
C.) são quase contemporâneos. Quando Aristófanes, contemporâneo dos dois últimos,
se revolta contra as novas ideias dramáticas e filosóficas de Eurípides, não é
a dramaturgia de Sófocles que ele recomenda como remédio, e sim a de Ésquilo. Para
todos três – Sófocles, Aristófanes e Eurípides –, Ésquilo não é um poeta
arcaico, e sim o poeta da geração precedente. Realmente, Eurípides tem
pouco em comum com Sófocles; e está mais perto de Ésquilo do que o reacionário
Aristófanes pensava. É preciso derrubar a ordem que a rotina pretende impor”.
***
Sobre Ésquilo,
CARPEAUX nos diz:
“Só conhecemos o teatro ateniense, e deste apenas poucas peças,
de três dramaturgos. Mas entre eles está o maior de todos, aquele que criou o verdadeiro
teatro grego e já representa o seu apogeu. O sentido profundo do teatro grego
revela-se em Ésquilo.
[...] Na época
de Ésquilo, as leis primitivas da família, do clã, chocam-se com a consciência
humana; daí a força trágica de Os Sete contra Tebas, talvez a peça mais
trágica do teatro grego [...]. O teatro de Ésquilo trata, desse modo, de
destinos coletivos, não de indivíduos. Por isso, é capaz de representar os
grandes conflitos na cidade e decidi-los por reinterpretações do mito. Porque o
mito continua como símbolo supremo da ligação entre o mundo divino e o mundo
humano. Nada se modifica no mundo humano sem modificação correspondente no
mundo divino; o Estado precisa da sanção religiosa dos seus atos, e é o teatro
que lhe permite o uso dinâmico dos mitos para sancionar a nova ordem social.
[...] A Orestéia [trilogia composta das peças Agamêmnon, Coéforas e Eumênides] é a
maior tragédia política de todos os tempos”.
[obs.:
Carpeaux ainda cita duas tragédias de Ésquilo dignas de nota;
são elas Os persas e Prometeu acorrentado]
são elas Os persas e Prometeu acorrentado]
***
Sobre Eurípedes, CARPEAUX nos diz:
“Eurípides não pertence ao ‘partido’ religioso-político de Ésquilo;
[...]. Na tragédia esquiliana, os heróis representam coletividades; na tragédia
euripidiana, são indivíduos. Já não se trata do restabelecimento de
ordens antigas, ou do estabelecimento de novas ordens, mas da oposição
sistemática do indivíduo contra as ordens estabelecidas. [...] Aristóteles
chama a Eurípides tragikotatos, ‘o poeta mais trágico de todos’ [...].
[...] A base
da tragédia euripidiana, como a da esquiliana, é a família. Mas há uma diferença
essencial. Em Ésquilo, as relações familiares constituem a lei bárbara do
passado, substituída pela ordem social duma nova religião, a religião da
Cidade. Em Eurípides, o Estado é uma força exterior, alheia; o indivíduo
encontra-se exposto às complicações da vida familiar, das paixões e desgraças
particulares. [...] Mas Ésquilo e Eurípides são quase contemporâneos. Só o
ponto de vista de cada um deles é diferente: Ésquilo é coletivista; Eurípides,
individualista. Mas o tema dos dois dramaturgos é o mesmo: a família. Ésquilo e
Eurípides são, ambos, inimigos da família: Ésquilo, porque ela se opõe ao Estado;
Eurípides, porque ela violenta a liberdade do indivíduo”.
“Na exposição
dos conflitos psicológicos entre a vontade sentimental do indivíduo e as leis
fatais da convivência social e familiar, Eurípides usa a retórica, como o seu
grande predecessor; mas em Ésquilo falam montanhas, em Eurípides, almas. Almas
que pretendem justificar as suas paixões, inspirar compaixão e terror; a definição
dos efeitos da tragédia por Aristóteles é deduzida das peças de Eurípides – por
isso, Aristóteles lhe chamou ‘o poeta mais trágico’. [...] Eurípides é o
primeiro poeta que exprime a alma do homem, sozinho no mundo, fora de todas
as ligações religiosas, familiares e políticas, sozinho com a sua razão crítica
e o seu sentimento pessimista, com a sua paixão e o seu desespero. É ‘o mais trágico
dos poetas’”.
“Na tragédia de Eurípides aparecem personagens que a tragédia anterior não conhecera: o mendigo que se queixa da sua condição social, e sobretudo a mulher, envolvida em conflitos sexuais. As personagens femininas são as maiores criações de Eurípides: Fedra, Ifigênia, Electra, Alceste; Medéia é a primeira grande personagem de mãe no palco; Hipólito é a primeira tragédia de amor na literatura universal”.
***
Sobre Aristófanes,
CARPEAUX nos diz:
“Um individualista como Eurípides encontraria fatalmente
oposições em todas as épocas. Mas nenhuma época lhe teria respondido como a
Atenas do seu tempo – pela comédia de Aristófanes.
Píndaro é estranho. Aristófanes é
mais estranho ainda, a ponto de não encontrar nenhum eco em nossas literaturas.
Não há termo de comparação. Até em época de liberdade completa de imprensa e do
teatro, não se conheceu entre nós a alta comédia política [...]. Por outro
lado, a política é o tema de Aristófanes, mas não a essência da sua arte.
Todas as comédias de Aristófanes
têm assunto político. [...] De todos os assuntos, Aristófanes vê só o lado político:
Eurípides aparecendo, em As Rãs, pessoalmente, no palco, é o corruptor
daquela venerável instituição política que era o teatro, e Sócrates, em As
Nuvens, é o corruptor de outra instituição do Estado totalitário ateniense,
da educação.
[...] Aristófanes não é profundo.
Não tem ideologia bem definida. O seu conservantismo é um tanto sentimental,
elogiando os ‘bons velhos tempos’ e denunciando o ‘modernismo’ perigoso dos ‘intelectuais’
e dos ‘socialistas’. [...] Contra eles, Aristófanes não defende uma
ideologia, e sim o sentimento moral, ofendido, de um burguês decente, embora de
expressão indecentíssima. Pois também nunca se ouviu poeta tão francamente
obsceno, chamando todas as coisas pelos nomes certos”.
***
Sobre Sófocles,
CARPEAUX nos diz:
“Sófocles representa a tentativa de mediar entre os
extremos; e quando a mediação se revelou impossível, o grande poeta trágico
cantou uma elegia suave e dolorosa, irresistível, que pareceu à posteridade síntese
perfeita. Por isso, Sófocles foi sempre o poeta preferido dos partidários do equilíbrio
puramente estético: dos classicistas.
É grandíssimo artista. Artista da
palavra, dono de extraordinário lirismo musical, sobretudo nos coros. Mas foi
também artista da cena, sábio calculador dos efeitos, mestre incomparável da
arquitetura dramática, da exposição analítica do enredo. Entre o pathos coletivista
de Ésquilo e o pathos individualista de Eurípides, a tragédia
semipolítica, semissentimental de Édipo revela força superior de emoção;
conflito coletivo e conflito individual estão ligados de maneira tão íntima que
o efeito se torna independente de todas as circunstâncias exteriores, efeito
permanente. O espectador moderno reconhece-se nos personagens de Sófocles, primeiro
grande mestre da dramaturgia de caracteres. O fim, porém, é sempre a emoção
lírica: a arquitetura dramática serve para arrancar aos personagens o lamento
elegíaco.
[...] No fim das tragédias
sofoclianas, os personagens são mais dignos do que eram antes. Eis a solução euripidiana
que Sófocles achou para o conflito esquiliano: ordem divina e ordem terrestre,
cujo conflito torna tão dolorosa a vida, reconciliam-se na dignidade humana. Em
Sófocles, tudo é harmonia, sem que fosse esquecido uma só vez o fundo escuro da
nossa existência. Sófocles é humanista. Mas não é um humanismo satisfeito e
suficiente, porque o humanismo grego nunca se esquece da precariedade do
mundo, pela possível ira dos deuses, nem da tristeza deste mundo que nos
impõe o silêncio piedoso no fim da tragédia”.
***
Na pasta de arquivos online, estão disponíveis alguns PDFs das peças mencionadas, e de algumas outras: https://www.dropbox.com/home/Grupo%20de%20Estudo%20e%20Leitura%20dos%20Cl%C3%A1ssicos
Muito bom o resumo sobre os dramaturgos clássicos (gregos).
ResponderExcluirBastante esclarecedor.
Grato!