CARPEAUX
menciona o conceito de “lugar na vida”:
de modo geral, o “lugar na vida” de algo é, em última instância, sua
finalidade, aquilo a que veio, como e onde se insere na cultura em que aparece.
Isto posto, podemos prosseguir a história da literatura ocidental com os
parágrafos de Otto Maria Carpeaux:
“O
‘lugar na vida’ da epopeia homérica
encontra-se na interpretação da vida; o ‘lugar na vida’ da poesia grega
encontra-se na disciplina musical das emoções; o ‘lugar na vida’ do teatro
grego encontra-se na reinterpretação do mito; o ‘lugar na vida’ da
historiografia grega encontra-se, assim como o da filosofia, em interesses políticos,
e está determinado pela retórica.
O gosto dos gregos pela retórica é,
para nós outros, um fenômeno algo estranho: não se cansaram de ouvir discursos,
inúmeros e intermináveis, na assembleia e perante o tribunal; de discursos
metrificados encheram as tragédias, e até nas obras de historiografia inseriram
discursos inventados; a retórica era considerada discípula principal da
educação superior, e enfim foi identificada com a própria cultura.
Evidentemente, não pode ser confundida com a retórica moderna, sempre subjetiva,
instrumento de efeitos estilísticos ou tentativa de ‘mettre en scène’ [preparar o terreno para] a pessoa do orador. A
retórica grega visava a um fim objetivo, comum a todas as
atividades espirituais: a vontade de garantir à obra um ‘lugar na vida’.
O ‘lugar na vida’ da obra
historiográfica de Heródoto é a explicação das guerras contra os persas.
***
Sobre
Heródoto, CARPEAUX nos diz:
“Heródoto era natural da Iônia, duma
região de civilização muito antiga, sujeita porém, havia muito, à dominação
persa. Como fora possível, às minúsculas cidades gregas, vencer esse colosso
oriental? Heródoto sentiu certo orgulho patriótico pela vitória dos
co-nacionais de além-mar, embora os seus próprios patrícios, decadentes desde
muito, ficassem na servidão política dos persas. No Oriente, para além de
fronteiras intransponíveis, devia haver coisas misteriosas, explicando a um
tempo as riquezas excessivas do Império Oriental e a sua fraqueza inesperada. Propondo-se
explorar, antes de narrar os acontecimentos bélicos, o mundo desconhecido fora
das cidades gregas, Heródoto realizou obra de patriota consciente e de repórter
corajoso, ao mesmo tempo. Narrando as guerras persas, Heródoto criou uma porção
de recordações inesquecíveis e lugares-comuns escolares: Leônidas e as Termópilas,
Salamina, Maratona. Revela-se, aí, o retor.
[Há uma diferença entre retor e retórico: o
primeiro é aquele que se utiliza da arte da retórica, de seus jogos e formas,
para tecer seu discurso; o segundo, isto é, o retórico, é o cientista da arte
da retórica, aquele que estuda, formaliza e esquematiza os jogos e formas que o
retor utiliza. É uma diferença entre theoria
e práxis – entre contemplar e exercer
a arte da retórica.]
Mas
Heródoto criou também uma tradição indestrutível quanto ao Oriente: a sabedoria
misteriosa dos sacerdotes egípcios, a luxúria dos reis da Assíria, os palácios,
labirintos, haréns, oráculos, grandes crimes e grandes profecias – aqui a
retórica é substituída pela reportagem, no mais alto sentido da palavra; e não é
esta a única tradição literária que iniciou. Na obra de Heródoto
encontram-se insertos numerosos contos, lendas, narrações folclóricas, em que
revela a arte consumada dum grande novelista; narra sem comentários morais nem
explicações psicológicas os acontecimentos fabulosos, que parece aceitar como
verdade histórica. E por que não? A providência que protegeu os gregos contra
os persas age por meios às vezes estranhos; o cético religioso, que é Heródoto,
zombando um pouco dos sacerdotes orientais com as suas atitudes teatrais e, no
entanto, receando-lhes a terrível sabedoria mágica, esse cético acha tudo possível.
E muito do que antigamente se considerava invenção ou credulidade do repórter
grego, como a história de povos de pigmeus na África, confirmou-se depois como
fato etnográfico.
[...] [A] decadência [...] abateu os
patrícios jônicos do historiador, colocando-os apenas na situação de
observadores abastados, cultos, curiosos e passivos, dos quais Heródoto era o primeiro
representante literário, e o mais ingênuo, o mais inteligente, e muito bonachão”.
***
Continuando
a linha historiográfica, CARPEAUX nos apresenta Tucídides:
“E
a hora dos gregos da Grécia chegou também: a
guerra do Peloponeso. O caráter pragmatístico da historiografia grega
revela-se no fato de que nunca um grego pensou em escrever a história de épocas
ou povos sem relação direta com a sua própria época e a sua própria cidade.
Tucídides escreveu uma monografia
histórica sobre o seu próprio tempo: sobre a guerra peloponésia que arruinou
Atenas. A documentação solidíssima do seu relato e o estilo seco e quase
militar ou burocrático não conseguem inspirar dúvidas sobre o fato que já a retórica
consumada dos discursos insertos fazia entrever: Tucídides é um grande artista,
e a sua história tem a feição de uma tragédia. Poder, riqueza e glória da
Atenas de Péricles estão no pórtico da obra. O ponto culminante é a oração fúnebre
dos cidadãos atenienses mortos pela pátria, na qual Péricles celebra a Cidade
como ‘escola da Grécia’ e afirma: ‘Terra
e mar não podem limitar a nossa coragem: em toda parte erigimos a nós mesmos
monumentos do bem e do mal. E por esta Cidade morreram esses heróis,
conscientes do dever de não a deixar perecer’. Mas Atenas perecerá. O
discurso de Péricles é a peripécia, seguida imediatamente pela grande peste,
começo da catástrofe, das dissensões internas, dos crimes políticos e
particulares, da confusão de todos os valores morais, descrita com palavras
diretas, e contudo impassíveis, no famoso capítulo 82 do livro III, que
se lê como uma diagnose do nosso tempo. Tucídides não moraliza; e já não
conhece intervenção do mito. A sua tragédia historiográfica de Atenas é a
primeira tragédia moderna cuja ação se rege por motivos puramente humanos, e
dos quais o mais poderoso é a ambição do poder: em Atenas, em Esparta, e em
toda parte”.
***
Passando
pela época dos grandes retóricos, que de certa forma se seguiu à dos
historiadores (de modo não tão cronologicamente exato, mas sim em termos de
história da literatura) em que menciona especialmente Demóstenes e Xenofonte
(que não estudaremos em virtude de concluirmos a era grega em apenas 6
encontros), CARPEAUX nos conduz ao fim da era grega, quando nos apresenta
Plutarco. Antes disso, ele falou, é claro, sobre a filosofia grega de Sócrates,
Platão e Aristóteles, mas deixaremos isso para o encontro final
sobre Grécia, na semana que vem. Unamos, por agora, Heródoto e Tucídides a
Plutarco, para tirarmos disso uma unidade histórico-biográfica dos escritos
gregos.
Quanto
a Plutarco, portanto, CARPEAUX nos
diz:
“A
Grécia daquele tempo já não é o centro do mundo. As suas cidades estão
ainda cheias de rumor levantino, e nas suas escolas ainda se conserva a arte e
o pensamento dos antepassados. Mas este tesouro já não cresce e aquele rumor já
não tem sentido político. A vida torna-se burguesa. Os cidadãos são
comerciantes abastados e os seus filhos constituem uma jeunesse dorée [juventude
de ouro], ocupada em aventuras amorosas com escravas. A vitória esportiva, que
Píndaro cantara, é substituída pela vitória sobre o pai: cumpre arrancar-lhe, com
a ajuda de um escravo astuto, o dinheiro para comprar a ‘pequena’.
[...] O mundo ideal dos gregos só
existia em função da realidade material. Quando a realidade material dos gregos
desapareceu, o espírito grego prendeu-se à realidade romana, explicando-a
duma maneira idealista de que os próprios criadores dessa realidade não eram
capazes.
[...] Dois séculos e meio depois, Plutarco cria a biografia; agora
já é só o indivíduo que importa. Plutarco é [...] um grande artista da narração;
sabe caracterizar à maravilha, de modo que, de todas as figuras da Antiguidade,
só as que ele biografou se transformaram em personagens tão reais como Don Quixote,
Hamlet ou Napoleão. Foi ele quem criou para nós os Coriolanos, Mários, Silas,
Catões, Brutos e Marco Antônios. Plutarco sabe narrar como um romancista; sabe
interessar e até entusiasmar: Montaigne, Rousseau, Alfieri e Schiller
embriagaram-se em Plutarco, e ainda Whittier não encontrou elogio maior para
Abraham Lincoln do que compará-lo aos heróis de Plutarco. As biografias de
Plutarco, lidas em seguida, são monótonas; o herói parece sempre o mesmo. Isto acontece
porque a composição das biografias é determinada por um conceito imutável do
homem, do grande homem. Plutarco é estoico, na política e na psicologia.
Mas na religião, não. Os Moralia, escritos enciclopédicos sobre tudo o
que existe e não existe entre o céu e a terra, revelam um platonismo já
contaminado pelas superstições do Oriente, um neoplatonismo avant la lettre,
enfim, aquela forma de platonismo que irá atingir tão intimamente a
religiosidade cristã do Ocidente; mas as veleidades laicistas da história
ocidental também tomarão a cor da independência do homem estoico em face do
destino. Plutarco legou ao mundo moderno a última atitude do homem grego.
***
Na pasta de arquivos online, encontram-se os PDFs de História, de Heródoto, e História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides:
https://www.dropbox.com/home/Grupo%20de%20Estudo%20e%20Leitura%20dos%20Cl%C3%A1ssicos
Nenhum comentário:
Postar um comentário