quinta-feira, 23 de abril de 2015

Historiadores e biógrafos gregos. Quarta leitura: "Vidas paralelas: Alexandre e César", de Plutarco

CARPEAUX menciona o conceito de “lugar na vida”: de modo geral, o “lugar na vida” de algo é, em última instância, sua finalidade, aquilo a que veio, como e onde se insere na cultura em que aparece. Isto posto, podemos prosseguir a história da literatura ocidental com os parágrafos de Otto Maria Carpeaux:

“O ‘lugar na vida’ da epopeia homérica encontra-se na interpretação da vida; o ‘lugar na vida’ da poesia grega encontra-se na disciplina musical das emoções; o ‘lugar na vida’ do teatro grego encontra-se na reinterpretação do mito; o ‘lugar na vida’ da historiografia grega encontra-se, assim como o da filosofia, em interesses políticos, e está determinado pela retórica.

O gosto dos gregos pela retórica é, para nós outros, um fenômeno algo estranho: não se cansaram de ouvir discursos, inúmeros e intermináveis, na assembleia e perante o tribunal; de discursos metrificados encheram as tragédias, e até nas obras de historiografia inseriram discursos inventados; a retórica era considerada discípula principal da educação superior, e enfim foi identificada com a própria cultura. Evidentemente, não pode ser confundida com a retórica moderna, sempre subjetiva, instrumento de efeitos estilísticos ou tentativa de ‘mettre en scène’ [preparar o terreno para] a pessoa do orador. A retórica grega visava a um fim objetivo, comum a todas as atividades espirituais: a vontade de garantir à obra um ‘lugar na vida’.

O ‘lugar na vida’ da obra historiográfica de Heródoto é a explicação das guerras contra os persas.

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Sobre Heródoto, CARPEAUX nos diz:

Heródoto era natural da Iônia, duma região de civilização muito antiga, sujeita porém, havia muito, à dominação persa. Como fora possível, às minúsculas cidades gregas, vencer esse colosso oriental? Heródoto sentiu certo orgulho patriótico pela vitória dos co-nacionais de além-mar, embora os seus próprios patrícios, decadentes desde muito, ficassem na servidão política dos persas. No Oriente, para além de fronteiras intransponíveis, devia haver coisas misteriosas, explicando a um tempo as riquezas excessivas do Império Oriental e a sua fraqueza inesperada. Propondo-se explorar, antes de narrar os acontecimentos bélicos, o mundo desconhecido fora das cidades gregas, Heródoto realizou obra de patriota consciente e de repórter corajoso, ao mesmo tempo. Narrando as guerras persas, Heródoto criou uma porção de recordações inesquecíveis e lugares-comuns escolares: Leônidas e as Termópilas, Salamina, Maratona. Revela-se, aí, o retor.

[Há uma diferença entre retor e retórico: o primeiro é aquele que se utiliza da arte da retórica, de seus jogos e formas, para tecer seu discurso; o segundo, isto é, o retórico, é o cientista da arte da retórica, aquele que estuda, formaliza e esquematiza os jogos e formas que o retor utiliza. É uma diferença entre theoria e práxis – entre contemplar e exercer a arte da retórica.]

Mas Heródoto criou também uma tradição indestrutível quanto ao Oriente: a sabedoria misteriosa dos sacerdotes egípcios, a luxúria dos reis da Assíria, os palácios, labirintos, haréns, oráculos, grandes crimes e grandes profecias – aqui a retórica é substituída pela reportagem, no mais alto sentido da palavra; e não é esta a única tradição literária que iniciou. Na obra de Heródoto encontram-se insertos numerosos contos, lendas, narrações folclóricas, em que revela a arte consumada dum grande novelista; narra sem comentários morais nem explicações psicológicas os acontecimentos fabulosos, que parece aceitar como verdade histórica. E por que não? A providência que protegeu os gregos contra os persas age por meios às vezes estranhos; o cético religioso, que é Heródoto, zombando um pouco dos sacerdotes orientais com as suas atitudes teatrais e, no entanto, receando-lhes a terrível sabedoria mágica, esse cético acha tudo possível. E muito do que antigamente se considerava invenção ou credulidade do repórter grego, como a história de povos de pigmeus na África, confirmou-se depois como fato etnográfico.

[...] [A] decadência [...] abateu os patrícios jônicos do historiador, colocando-os apenas na situação de observadores abastados, cultos, curiosos e passivos, dos quais Heródoto era o primeiro representante literário, e o mais ingênuo, o mais inteligente, e muito bonachão”.

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Continuando a linha historiográfica, CARPEAUX nos apresenta Tucídides:

“E a hora dos gregos da Grécia chegou também: a guerra do Peloponeso. O caráter pragmatístico da historiografia grega revela-se no fato de que nunca um grego pensou em escrever a história de épocas ou povos sem relação direta com a sua própria época e a sua própria cidade. Tucídides escreveu uma monografia histórica sobre o seu próprio tempo: sobre a guerra peloponésia que arruinou Atenas. A documentação solidíssima do seu relato e o estilo seco e quase militar ou burocrático não conseguem inspirar dúvidas sobre o fato que já a retórica consumada dos discursos insertos fazia entrever: Tucídides é um grande artista, e a sua história tem a feição de uma tragédia. Poder, riqueza e glória da Atenas de Péricles estão no pórtico da obra. O ponto culminante é a oração fúnebre dos cidadãos atenienses mortos pela pátria, na qual Péricles celebra a Cidade como ‘escola da Grécia’ e afirma: ‘Terra e mar não podem limitar a nossa coragem: em toda parte erigimos a nós mesmos monumentos do bem e do mal. E por esta Cidade morreram esses heróis, conscientes do dever de não a deixar perecer’. Mas Atenas perecerá. O discurso de Péricles é a peripécia, seguida imediatamente pela grande peste, começo da catástrofe, das dissensões internas, dos crimes políticos e particulares, da confusão de todos os valores morais, descrita com palavras diretas, e contudo impassíveis, no famoso capítulo 82 do livro III, que se lê como uma diagnose do nosso tempo. Tucídides não moraliza; e já não conhece intervenção do mito. A sua tragédia historiográfica de Atenas é a primeira tragédia moderna cuja ação se rege por motivos puramente humanos, e dos quais o mais poderoso é a ambição do poder: em Atenas, em Esparta, e em toda parte”.

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Passando pela época dos grandes retóricos, que de certa forma se seguiu à dos historiadores (de modo não tão cronologicamente exato, mas sim em termos de história da literatura) em que menciona especialmente Demóstenes e Xenofonte (que não estudaremos em virtude de concluirmos a era grega em apenas 6 encontros), CARPEAUX nos conduz ao fim da era grega, quando nos apresenta Plutarco. Antes disso, ele falou, é claro, sobre a filosofia grega de Sócrates, Platão e Aristóteles, mas deixaremos isso para o encontro final sobre Grécia, na semana que vem. Unamos, por agora, Heródoto e Tucídides a Plutarco, para tirarmos disso uma unidade histórico-biográfica dos escritos gregos.

Quanto a Plutarco, portanto, CARPEAUX nos diz:

A Grécia daquele tempo já não é o centro do mundo. As suas cidades estão ainda cheias de rumor levantino, e nas suas escolas ainda se conserva a arte e o pensamento dos antepassados. Mas este tesouro já não cresce e aquele rumor já não tem sentido político. A vida torna-se burguesa. Os cidadãos são comerciantes abastados e os seus filhos constituem uma jeunesse dorée [juventude de ouro], ocupada em aventuras amorosas com escravas. A vitória esportiva, que Píndaro cantara, é substituída pela vitória sobre o pai: cumpre arrancar-lhe, com a ajuda de um escravo astuto, o dinheiro para comprar a ‘pequena’.

[...] O mundo ideal dos gregos só existia em função da realidade material. Quando a realidade material dos gregos desapareceu, o espírito grego prendeu-se à realidade romana, explicando-a duma maneira idealista de que os próprios criadores dessa realidade não eram capazes.

[...] Dois séculos e meio depois, Plutarco cria a biografia; agora já é só o indivíduo que importa. Plutarco é [...] um grande artista da narração; sabe caracterizar à maravilha, de modo que, de todas as figuras da Antiguidade, só as que ele biografou se transformaram em personagens tão reais como Don Quixote, Hamlet ou Napoleão. Foi ele quem criou para nós os Coriolanos, Mários, Silas, Catões, Brutos e Marco Antônios. Plutarco sabe narrar como um romancista; sabe interessar e até entusiasmar: Montaigne, Rousseau, Alfieri e Schiller embriagaram-se em Plutarco, e ainda Whittier não encontrou elogio maior para Abraham Lincoln do que compará-lo aos heróis de Plutarco. As biografias de Plutarco, lidas em seguida, são monótonas; o herói parece sempre o mesmo. Isto acontece porque a composição das biografias é determinada por um conceito imutável do homem, do grande homem. Plutarco é estoico, na política e na psicologia. Mas na religião, não. Os Moralia, escritos enciclopédicos sobre tudo o que existe e não existe entre o céu e a terra, revelam um platonismo já contaminado pelas superstições do Oriente, um neoplatonismo avant la lettre, enfim, aquela forma de platonismo que irá atingir tão intimamente a religiosidade cristã do Ocidente; mas as veleidades laicistas da história ocidental também tomarão a cor da independência do homem estoico em face do destino. Plutarco legou ao mundo moderno a última atitude do homem grego.

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Na pasta de arquivos online, encontram-se os PDFs de História, de Heródoto, e História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides: 

https://www.dropbox.com/home/Grupo%20de%20Estudo%20e%20Leitura%20dos%20Cl%C3%A1ssicos

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