quarta-feira, 29 de abril de 2015

A filosofia grega e Platão. Quinta leitura: "Fédon", de Platão.

Quanto à filosofia grega, ao seu “lugar na vida” grega e, especialmente, quanto a Platão, CARPEAUX nos diz:

“A construção dessa utopia [de um reino político ideal] – que é, entre os gregos, um programa imediato – foi a maior preocupação da filosofia grega. Com os sofistas e Sócrates, a filosofia torna-se ‘retórica’, isto é, analisa a composição dos fatos morais, cujo fim último é a moralização das almas; ‘salvação’ que parece religiosa e que se enquadra na renovação do mito. O mito – Platão é o maior criador de mitos na literatura universal – é o fundamento da Cidade grega.

Os diálogos de Platão constituem um mundo completo como nenhum outro poeta – além de Dante – criou. No fundamento da construção quase cósmica encontram-se os diálogos polêmicos com os sofistas, as discussões meio literárias, meio comediográficas, do tipo do Protágoras e Górgias; no Mênon estabelece-se o programa da Academia socrática que conservará nome e memória do mestre. Platão não tem, contudo, o intuito de escrever uma biografia documentada do seu mestre: Sócrates é, para ele, um símbolo, e simbólico é o fim da sua vida, o suicídio sereno após o discurso sobre a imortalidade da alma, no Fédon. Daí em diante, o Sócrates dos diálogos platônicos torna-se centro de uma companhia fantástica de seres superiores, cuja reunião máxima, cheia de alegria sublime, é o Simpósio, o banquete de Sócrates com o poeta trágico Ágaton, o comediógrafo Aristófanes, o pederasta Pausânias, o médico Eryximachos, o aluno de filosofia Fedro e a sacerdotisa Diótima; é uma noite de ebriedade patética; e durante a discussão desenfreada surge o mito de Eros, explicação da atração física e espiritual entre as criaturas humanas. Ao amanhecer, entra Alcibíades, e com ele a realidade de Atenas, associando-se ao banquete filosófico. Quer dizer, o Eros que está nas regiões ‘baixas’ do corpo e igualmente no céu da especulação filosófica, o Eros também seria a nova força de ligação entre os cidadãos, o novo mito da Cidade. Desde então, Platão abandona os abismos do seu inferno de sofistas e as prisões do purgatório das almas, em que Sócrates sofreu, para subir ao paraíso da sua mitologia. No Timeu conta, como advertência, o mito historiográfico do continente de Atlântida que se perdeu como se está perdendo a Grécia. Na República, o mundo inferior é simbolizado como aquela caverna mítica, na qual os homens, prisioneiros dos sentidos, só veem as sombras das idéias verdadeiras, refletidas pela luz da ‘anamnese’; e Platão opõe, na mesma obra, à educação irreligiosa dos sofistas o mito da educação totalitária da mocidade grega, a fim de que ela integre o Estado utópico, em que a Verdade, a Beleza e a Justiça acham realização. O malogro de Platão na tentativa de realizar a Utopia na Sicília já não teve importância: o realismo grego incluiu também, no seu cosmos, as criações do espírito, e estas em primeira linha. Neste sentido, o mito platônico já era uma realidade, mais real até do que a vida política, que, desligada do seu mito tradicional, já não tinha realidade completa e ia agonizando.

Os mitos platônicos são criações poéticas em cuja realidade o seu autor acreditava; correspondem àquelas invenções na Divina Comédia que não têm base no dogma ou nos axiomas da filosofia tomista, e que, no entanto, representam a realidade florentina que Dante encontrou no seu outro mundo. Tampouco os mitos platônicos são axiomas filosóficos; por isso, Platão os expôs em diálogos de índole literária, dramática, com a pretensão de criar uma Cidade e talvez uma religião, mas sem a pretensão de defender um sistema filosófico.

Nunca, na Antigüidade, os diálogos de Platão foram citados como obras de filosofia racional. O grande criador de fórmulas filosóficas entre os gregos foi Aristóteles, do qual não pode tratar a história da literatura, porque – ao que parece – todas as suas obras literariamente elaboradas se perderam, ficando-nos apenas cadernos de notas e aulas. Os mitos de Platão são antes metáforas poéticas, às quais a posteridade atribuiu correspondência com realidades superiores. A atividade de Aristóteles parece principalmente um esforço de corrigir, segundo as experiências empíricas e conclusões lógicas, os ‘erros’ de Platão: o equívoco do ‘platonismo’. Mas aqueles ‘erros’ revelaram-se indestrutíveis: toda a história espiritual da humanidade, de Sócrates em diante, é uma psicomaquia entre os seus dois sucessores. No campo da filosofia racional, a vitória coube, as mais das vezes, a Aristóteles. Mas a influência indireta de Platão, através da especulação cristã e de toda a literatura idealista, foi maior. O filósofo Platão agiu, na história, indiretamente; a ação direta era impedida pela forma da sua obra. Pois Platão é poeta.

A origem da poesia platônica talvez fosse casual; a dramaturgia do diálogo seria – como o estilo coloquial de Platão revela – a transformação artística das conversas filosóficas que Sócrates inventara para refutar os sofistas e expor, de maneira dialética, os seus próprios conceitos. Essa origem será motivo das maiores dificuldades para a compreensão da filosofia platônica. A filosofia de Platão é dogmática: baseia-se num a priori, a existência das idéias e o seu reflexo na nossa mente. O método dialético, imposto pela índole pragmatística do espírito grego, era o mais impróprio para expor essa filosofia dogmática, e teve como conseqüência o fato de certos conceitos, como a relação ontológica entre as idéias e os objetos materiais, nunca se tornarem bem claros e constituírem até hoje a crux dos comentadores. O próprio conceito do mito, em Platão – realidade religiosa ou verdade filosófica? – não está inteiramente claro. Há em Platão as ambiguidades que caracterizam, segundo Coleridge, a poesia. O método dialético e a exposição dialogal eram caminhos de evasão, assim como a explicação dos dogmas platônicos mediante as perguntas e respostas, um tanto céticas, de um Sócrates meio imaginário. Essa interpretação da dramaturgia do diálogo, em Platão, baseia-se em duas premissas: a existência de outros escritos platônicos, não dialéticos e sim dogmáticos, embora estejam perdidos; a evolução da sua dramaturgia no sentido da eliminação gradual da dialética com a evolução do dogma idealista. A existência desses outros escritos, hoje perdidos, foi afirmada por Werner Jaeger, com argumentos convincentes. A evolução da dramaturgia platônica foi provada por Stenzel; na República, o diálogo já está praticamente eliminado; no Parmênides e no Sophistes, a figura de Sócrates perde a importância. Nos últimos diálogos, o ‘Homero da filosofia’ está transformado em legislador dogmático de uma utopia já malograda; e desaparecera a arte.

Platão, porém, era essencialmente poeta. Mais poeta do que filósofo, porque a mera ‘compreensão’ não o deixou satisfeito. O caminho da sua evasão poética levou-o até os confins do mundo da razão, até o mito. Afinal, Platão é um grande espírito religioso. Não é [apenas] fundador de uma academia; antes é o profeta de uma seita. Esta seita, porém, transformou-se na Humanidade”.

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Na pasta de arquivos online, consta um PDF de Fédon, de Platão, diálogo que narra a morte de Sócrates e trata da imortalidade da alma: 
https://www.dropbox.com/home/Grupo%20de%20Estudo%20e%20Leitura%20dos%20Cl%C3%A1ssicos 

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Historiadores e biógrafos gregos. Quarta leitura: "Vidas paralelas: Alexandre e César", de Plutarco

CARPEAUX menciona o conceito de “lugar na vida”: de modo geral, o “lugar na vida” de algo é, em última instância, sua finalidade, aquilo a que veio, como e onde se insere na cultura em que aparece. Isto posto, podemos prosseguir a história da literatura ocidental com os parágrafos de Otto Maria Carpeaux:

“O ‘lugar na vida’ da epopeia homérica encontra-se na interpretação da vida; o ‘lugar na vida’ da poesia grega encontra-se na disciplina musical das emoções; o ‘lugar na vida’ do teatro grego encontra-se na reinterpretação do mito; o ‘lugar na vida’ da historiografia grega encontra-se, assim como o da filosofia, em interesses políticos, e está determinado pela retórica.

O gosto dos gregos pela retórica é, para nós outros, um fenômeno algo estranho: não se cansaram de ouvir discursos, inúmeros e intermináveis, na assembleia e perante o tribunal; de discursos metrificados encheram as tragédias, e até nas obras de historiografia inseriram discursos inventados; a retórica era considerada discípula principal da educação superior, e enfim foi identificada com a própria cultura. Evidentemente, não pode ser confundida com a retórica moderna, sempre subjetiva, instrumento de efeitos estilísticos ou tentativa de ‘mettre en scène’ [preparar o terreno para] a pessoa do orador. A retórica grega visava a um fim objetivo, comum a todas as atividades espirituais: a vontade de garantir à obra um ‘lugar na vida’.

O ‘lugar na vida’ da obra historiográfica de Heródoto é a explicação das guerras contra os persas.

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Sobre Heródoto, CARPEAUX nos diz:

Heródoto era natural da Iônia, duma região de civilização muito antiga, sujeita porém, havia muito, à dominação persa. Como fora possível, às minúsculas cidades gregas, vencer esse colosso oriental? Heródoto sentiu certo orgulho patriótico pela vitória dos co-nacionais de além-mar, embora os seus próprios patrícios, decadentes desde muito, ficassem na servidão política dos persas. No Oriente, para além de fronteiras intransponíveis, devia haver coisas misteriosas, explicando a um tempo as riquezas excessivas do Império Oriental e a sua fraqueza inesperada. Propondo-se explorar, antes de narrar os acontecimentos bélicos, o mundo desconhecido fora das cidades gregas, Heródoto realizou obra de patriota consciente e de repórter corajoso, ao mesmo tempo. Narrando as guerras persas, Heródoto criou uma porção de recordações inesquecíveis e lugares-comuns escolares: Leônidas e as Termópilas, Salamina, Maratona. Revela-se, aí, o retor.

[Há uma diferença entre retor e retórico: o primeiro é aquele que se utiliza da arte da retórica, de seus jogos e formas, para tecer seu discurso; o segundo, isto é, o retórico, é o cientista da arte da retórica, aquele que estuda, formaliza e esquematiza os jogos e formas que o retor utiliza. É uma diferença entre theoria e práxis – entre contemplar e exercer a arte da retórica.]

Mas Heródoto criou também uma tradição indestrutível quanto ao Oriente: a sabedoria misteriosa dos sacerdotes egípcios, a luxúria dos reis da Assíria, os palácios, labirintos, haréns, oráculos, grandes crimes e grandes profecias – aqui a retórica é substituída pela reportagem, no mais alto sentido da palavra; e não é esta a única tradição literária que iniciou. Na obra de Heródoto encontram-se insertos numerosos contos, lendas, narrações folclóricas, em que revela a arte consumada dum grande novelista; narra sem comentários morais nem explicações psicológicas os acontecimentos fabulosos, que parece aceitar como verdade histórica. E por que não? A providência que protegeu os gregos contra os persas age por meios às vezes estranhos; o cético religioso, que é Heródoto, zombando um pouco dos sacerdotes orientais com as suas atitudes teatrais e, no entanto, receando-lhes a terrível sabedoria mágica, esse cético acha tudo possível. E muito do que antigamente se considerava invenção ou credulidade do repórter grego, como a história de povos de pigmeus na África, confirmou-se depois como fato etnográfico.

[...] [A] decadência [...] abateu os patrícios jônicos do historiador, colocando-os apenas na situação de observadores abastados, cultos, curiosos e passivos, dos quais Heródoto era o primeiro representante literário, e o mais ingênuo, o mais inteligente, e muito bonachão”.

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Continuando a linha historiográfica, CARPEAUX nos apresenta Tucídides:

“E a hora dos gregos da Grécia chegou também: a guerra do Peloponeso. O caráter pragmatístico da historiografia grega revela-se no fato de que nunca um grego pensou em escrever a história de épocas ou povos sem relação direta com a sua própria época e a sua própria cidade. Tucídides escreveu uma monografia histórica sobre o seu próprio tempo: sobre a guerra peloponésia que arruinou Atenas. A documentação solidíssima do seu relato e o estilo seco e quase militar ou burocrático não conseguem inspirar dúvidas sobre o fato que já a retórica consumada dos discursos insertos fazia entrever: Tucídides é um grande artista, e a sua história tem a feição de uma tragédia. Poder, riqueza e glória da Atenas de Péricles estão no pórtico da obra. O ponto culminante é a oração fúnebre dos cidadãos atenienses mortos pela pátria, na qual Péricles celebra a Cidade como ‘escola da Grécia’ e afirma: ‘Terra e mar não podem limitar a nossa coragem: em toda parte erigimos a nós mesmos monumentos do bem e do mal. E por esta Cidade morreram esses heróis, conscientes do dever de não a deixar perecer’. Mas Atenas perecerá. O discurso de Péricles é a peripécia, seguida imediatamente pela grande peste, começo da catástrofe, das dissensões internas, dos crimes políticos e particulares, da confusão de todos os valores morais, descrita com palavras diretas, e contudo impassíveis, no famoso capítulo 82 do livro III, que se lê como uma diagnose do nosso tempo. Tucídides não moraliza; e já não conhece intervenção do mito. A sua tragédia historiográfica de Atenas é a primeira tragédia moderna cuja ação se rege por motivos puramente humanos, e dos quais o mais poderoso é a ambição do poder: em Atenas, em Esparta, e em toda parte”.

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Passando pela época dos grandes retóricos, que de certa forma se seguiu à dos historiadores (de modo não tão cronologicamente exato, mas sim em termos de história da literatura) em que menciona especialmente Demóstenes e Xenofonte (que não estudaremos em virtude de concluirmos a era grega em apenas 6 encontros), CARPEAUX nos conduz ao fim da era grega, quando nos apresenta Plutarco. Antes disso, ele falou, é claro, sobre a filosofia grega de Sócrates, Platão e Aristóteles, mas deixaremos isso para o encontro final sobre Grécia, na semana que vem. Unamos, por agora, Heródoto e Tucídides a Plutarco, para tirarmos disso uma unidade histórico-biográfica dos escritos gregos.

Quanto a Plutarco, portanto, CARPEAUX nos diz:

A Grécia daquele tempo já não é o centro do mundo. As suas cidades estão ainda cheias de rumor levantino, e nas suas escolas ainda se conserva a arte e o pensamento dos antepassados. Mas este tesouro já não cresce e aquele rumor já não tem sentido político. A vida torna-se burguesa. Os cidadãos são comerciantes abastados e os seus filhos constituem uma jeunesse dorée [juventude de ouro], ocupada em aventuras amorosas com escravas. A vitória esportiva, que Píndaro cantara, é substituída pela vitória sobre o pai: cumpre arrancar-lhe, com a ajuda de um escravo astuto, o dinheiro para comprar a ‘pequena’.

[...] O mundo ideal dos gregos só existia em função da realidade material. Quando a realidade material dos gregos desapareceu, o espírito grego prendeu-se à realidade romana, explicando-a duma maneira idealista de que os próprios criadores dessa realidade não eram capazes.

[...] Dois séculos e meio depois, Plutarco cria a biografia; agora já é só o indivíduo que importa. Plutarco é [...] um grande artista da narração; sabe caracterizar à maravilha, de modo que, de todas as figuras da Antiguidade, só as que ele biografou se transformaram em personagens tão reais como Don Quixote, Hamlet ou Napoleão. Foi ele quem criou para nós os Coriolanos, Mários, Silas, Catões, Brutos e Marco Antônios. Plutarco sabe narrar como um romancista; sabe interessar e até entusiasmar: Montaigne, Rousseau, Alfieri e Schiller embriagaram-se em Plutarco, e ainda Whittier não encontrou elogio maior para Abraham Lincoln do que compará-lo aos heróis de Plutarco. As biografias de Plutarco, lidas em seguida, são monótonas; o herói parece sempre o mesmo. Isto acontece porque a composição das biografias é determinada por um conceito imutável do homem, do grande homem. Plutarco é estoico, na política e na psicologia. Mas na religião, não. Os Moralia, escritos enciclopédicos sobre tudo o que existe e não existe entre o céu e a terra, revelam um platonismo já contaminado pelas superstições do Oriente, um neoplatonismo avant la lettre, enfim, aquela forma de platonismo que irá atingir tão intimamente a religiosidade cristã do Ocidente; mas as veleidades laicistas da história ocidental também tomarão a cor da independência do homem estoico em face do destino. Plutarco legou ao mundo moderno a última atitude do homem grego.

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Na pasta de arquivos online, encontram-se os PDFs de História, de Heródoto, e História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides: 

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quinta-feira, 16 de abril de 2015

Terceira leitura: "Antígona", de Sófocles

Segue um breve resumo dos antecedentes e da trama de "ANTÍGONA", de Sófocles:

Édipo, Rei de Tebas, ao descobrir que Jocasta, além de sua esposa, era sua mãe, arranca os próprios olhos (trama de Édipo Rei) e sai vagueando pelo mundo até chegar a Colono, perto de Atenas, onde morre (trama de Édipo em Colono). Jocasta, sabendo que havia se casado com o próprio filho, enforca-se. Tebas fica desgovernada.

Em vida, porém, os dois tiveram 4 filhos: Etéocles, Polinices, Antígona e Ismênia. Com a debandada de Édipo, estabelece-se em Tebas que os irmãos Etéocles e Polinices reinariam, um a cada ano, sucessivamente. Etéocles, sendo o primeiro a reinar, se recusa a ceder a vez ao irmão mais novo, Policines, que, durante esse primeiro ano de reinado do irmão Etéocles, havia se instalado na corte de Árgos, uma das cidades gregas que, como Tebas, faziam parte da Conferência da Beócia. Lá, inclusive, ele havia se casado com a filha do Rei. Quando ele, Polinices, descobre que foi traído pelo irmão, reúne um exército com a ajuda de seu sogro, Rei de Árgos, e outros seis grandes heróis, e parte para atacar a cidade de Tebas, que tinha sete grandes portões (trama de Os Sete contra Tebas). No maior dos portões, o mais fortificado, Etéocles e Polinices se enfrentam; ambos morrem.

Jocasta, ex-rainha de Tebas que havia se enforcado, deixou um irmão chamado Creonte. Com a morte de Etéocles e Polinices, ele mesmo, Creonte, é quem toma o poder e assume o trono de Tebas. Ele enterra o corpo de Etéocles com honras de herói e deixa o corpo de Polinices largado às hienas, para ser devorado pelos abutres. É precisamente contra isso que se revolta Antígona. Em franca desobediência ao mandamento de Creonte (e dizendo-se fiel “às leis não escritas dos deuses”, superiores às do tirano), Antígona enterra o corpo do irmão Polinices. Ismênia, sua irmã, que não havia concordado com o ato no começo da história, tenta agora assumir a responsabilidade pelo feito da irmã; o faz em vão, e ambas são condenadas à morte.

Antígona, porém, estava noiva; seu futuro marido seria Hémon, justamente o filho de Creonte. Ele tenta por todos os meios convencer o pai de que está errado em suas decisões, inclusive demonstrando a ele que todo o povo está a favor de Antígona; Creonte, no entanto, não se deixa persuadir. Até que o respeitado e conhecido adivinho, o cego Tirésias, vem apelar a Creonte, dizendo que os deuses já estão furiosos com sua obstinação; a princípio irredutível, o tirano enfim se deixa convencer e parte para libertar Antígona.

Ao encontrá-la, depara-se com uma cena aterradora: ela havia se enforcado, seu noivo Hémon, filho de Creonte, em prantos, tenta matar o pai assim que o avista; Creonte foge e Hémon, louco de ódio, suicida-se. As notícias fúnebres chegam à mulher de Creonte, Eurídice, que, diante de tamanha amargura, também suicida-se. Resta Creonte, rodeado a um tempo pela presença esmagadora da culpa assassina e a incapacidade de governar sua terra. Ismênia também resta viva.

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Sobre Antígona, CARPEAUX diz:

“‘Lirismo’ é o verdadeiro nome da ordem divina e humana no mundo de Sófocles; sintomas dum equilíbrio precário, porque puramente estético. Na Antígona, não existe mediação dramática possível entre a lei cruel e inelutável que impõe a Creonte, tirano contra a vontade, a perseguição do inimigo para além da morte, e, por outro lado, o sentimento íntimo, quase cristão, da Antígone: ‘Não nasci para odiar com os outros, mas para amar com os outros’.

[...] Contudo, o pessimismo de Sófocles – um crítico moderno fala de ‘visão pavorosa da vida’ – não é absoluto; porque pelo sofrimento, e só pelo sofrimento, conseguimos a plena consciência da nossa situação no cosmo. Sem o conflito trágico com a lei do Estado, Antígone seria só uma criatura sentimental; o conflito lhe revela a força do seu imperativo de consciência que lhe impôs a resistência – e assim Antígona se tornou o símbolo permanente de todas as Resistências. De igual modo se torna Édipo o símbolo permanente dos erros trágicos da humanidade: através das complicações dum enredo quase diabólico, os erros se dissipam e Édipo se transforma de homem infeliz em homem trágico, aceitando o que a vida lhe impôs.


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Na pasta de arquivos online, pode-se encontrar uma tradução brasileira de Antígona num PDF que reúne também as peças antecedentes, Édipo Rei e Édipo em Colono:
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O teatro grego e os grandes dramaturgos

Ésquilo, Eurípedes, Aristófanes e Sófocles são os grandes nomes da dramaturgia grega. Sobre eles e sobre o teatro grego da antigüidade, CARPEAUX nos diz:

“O teatro grego é de origem religiosa; nunca houve dúvidas a esse respeito. As tragédias – e, em certo sentido, também as comédias – foram representadas assim como se realizam festas litúrgicas. Mas quanto à liturgia que teria sido a base histórica do teatro grego, ainda não se chegou a teses definitivamente estabelecidas. As pesquisas da escola antropológica de Cambridge parecem ter confirmado, embora precisando-o, o que sempre se soube: a tragédia grega nasceu de atos litúrgicos do culto do Dioniso. [...] Podemos continuar adotando a intuição genial de Nietzsche: a tragédia grega é a transformação apolínea de ritos dionisíacos.

[...] o único conteúdo possível da tragédia grega era o mito, fornecido pela tradição; enredos inventados pela imaginação do dramaturgo, que enchem os nossos repertórios, estavam excluídos. Tratava-se de interpretações e reinterpretações dramáticas de enredos dados.

[...] O teatro grego é mais retórico e mais lírico do que o moderno. Os discursos extensos, que os gregos não se cansavam de ouvir, seriam insuportáveis para o espectador moderno, que prefere, a ouvir discursos, ver e viver a ação. O grego, ao que parece, frequentava o teatro para se deixar convencer da justeza de uma causa, como se estivesse assistindo à audiência do tribunal ou à sessão da Assembleia. E os requintes da retórica, superiores em muito aos pobres recursos da eloquência moderna, não bastaram para esse fim: acrescentaram-se, por isso, aos argumentos do raciocínio as emoções da poesia lírica, acompanhada, como sempre, de música, de modo que a representação de uma tragédia grega se assemelhou, por assim dizer, às nossas grandes óperas. Mas a ópera moderna é gênero privativo das altas classes da sociedade, enquanto a tragédia grega era instituição do Estado democrático, e a participação nela era de certo modo um direito e um dever constitucionais. Assim, a tragédia grega era uma discussão parlamentar na qual se debatia, lançando-se mão de todos os recursos para influenciar o público, um mito da religião do Estado.


Considerando-se isto, as concorrências dos poetas, que apresentaram peças, perdem o caráter de competição esportiva: a vitória não cabia ao maior poeta ou à melhor poesia dramática, mas à peça que impressionava mais profundamente; quer dizer, à peça na qual o mito estava reinterpretado de tal maneira que o público se convencia dessa interpretação e – podemos acrescentar – por isso o Estado a aceitava. Tratava-se de um acontecimento político-religioso, que ocorria uma só vez. O teatro grego não conheceu representações em série. Com a representação solene, a causa estava julgada, a lei votada. O verdadeiro fim do teatro grego – assim reza a tese sociológica – era a sanção duma modificação da ordem social por meio de uma reinterpretação do mito”.

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“A cronologia dos grandes trágicos gregos é um tanto confusa. Desde a Antiguidade foram sempre estudados numa ordem que sugere fatalmente a ideia de três gerações: Sófocles, sucessor de Ésquilo, e Eurípides, por sua vez, sucessor de Sófocles. Mas Ésquilo (525-456 a. C.), Sófocles (496-406 a. C.) e Eurípides (480-406 a. C.) são quase contemporâneos. Quando Aristófanes, contemporâneo dos dois últimos, se revolta contra as novas ideias dramáticas e filosóficas de Eurípides, não é a dramaturgia de Sófocles que ele recomenda como remédio, e sim a de Ésquilo. Para todos três – Sófocles, Aristófanes e Eurípides –, Ésquilo não é um poeta arcaico, e sim o poeta da geração precedente. Realmente, Eurípides tem pouco em comum com Sófocles; e está mais perto de Ésquilo do que o reacionário Aristófanes pensava. É preciso derrubar a ordem que a rotina pretende impor”.

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Sobre Ésquilo, CARPEAUX nos diz:

“Só conhecemos o teatro ateniense, e deste apenas poucas peças, de três dramaturgos. Mas entre eles está o maior de todos, aquele que criou o verdadeiro teatro grego e já representa o seu apogeu. O sentido profundo do teatro grego revela-se em Ésquilo.

[...] Na época de Ésquilo, as leis primitivas da família, do clã, chocam-se com a consciência humana; daí a força trágica de Os Sete contra Tebas, talvez a peça mais trágica do teatro grego [...]. O teatro de Ésquilo trata, desse modo, de destinos coletivos, não de indivíduos. Por isso, é capaz de representar os grandes conflitos na cidade e decidi-los por reinterpretações do mito. Porque o mito continua como símbolo supremo da ligação entre o mundo divino e o mundo humano. Nada se modifica no mundo humano sem modificação correspondente no mundo divino; o Estado precisa da sanção religiosa dos seus atos, e é o teatro que lhe permite o uso dinâmico dos mitos para sancionar a nova ordem social. [...] A Orestéia [trilogia composta das peças Agamêmnon, Coéforas e Eumênides] é a maior tragédia política de todos os tempos”.

[obs.: Carpeaux ainda cita duas tragédias de Ésquilo dignas de nota;
são elas Os persas e Prometeu acorrentado]

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Sobre Eurípedes, CARPEAUX nos diz:

“Eurípides não pertence ao ‘partido’ religioso-político de Ésquilo; [...]. Na tragédia esquiliana, os heróis representam coletividades; na tragédia euripidiana, são indivíduos. Já não se trata do restabelecimento de ordens antigas, ou do estabelecimento de novas ordens, mas da oposição sistemática do indivíduo contra as ordens estabelecidas. [...] Aristóteles chama a Eurípides tragikotatos, ‘o poeta mais trágico de todos’ [...].

[...] A base da tragédia euripidiana, como a da esquiliana, é a família. Mas há uma diferença essencial. Em Ésquilo, as relações familiares constituem a lei bárbara do passado, substituída pela ordem social duma nova religião, a religião da Cidade. Em Eurípides, o Estado é uma força exterior, alheia; o indivíduo encontra-se exposto às complicações da vida familiar, das paixões e desgraças particulares. [...] Mas Ésquilo e Eurípides são quase contemporâneos. Só o ponto de vista de cada um deles é diferente: Ésquilo é coletivista; Eurípides, individualista. Mas o tema dos dois dramaturgos é o mesmo: a família. Ésquilo e Eurípides são, ambos, inimigos da família: Ésquilo, porque ela se opõe ao Estado; Eurípides, porque ela violenta a liberdade do indivíduo”.

“Na exposição dos conflitos psicológicos entre a vontade sentimental do indivíduo e as leis fatais da convivência social e familiar, Eurípides usa a retórica, como o seu grande predecessor; mas em Ésquilo falam montanhas, em Eurípides, almas. Almas que pretendem justificar as suas paixões, inspirar compaixão e terror; a definição dos efeitos da tragédia por Aristóteles é deduzida das peças de Eurípides – por isso, Aristóteles lhe chamou ‘o poeta mais trágico’. [...] Eurípides é o primeiro poeta que exprime a alma do homem, sozinho no mundo, fora de todas as ligações religiosas, familiares e políticas, sozinho com a sua razão crítica e o seu sentimento pessimista, com a sua paixão e o seu desespero. É ‘o mais trágico dos poetas’”. 

“Na tragédia de Eurípides aparecem personagens que a tragédia anterior não conhecera: o mendigo que se queixa da sua condição social, e sobretudo a mulher, envolvida em conflitos sexuais. As personagens femininas são as maiores criações de Eurípides: Fedra, Ifigênia, Electra, Alceste; Medéia é a primeira grande personagem de mãe no palco; Hipólito é a primeira tragédia de amor na literatura universal”.

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Sobre Aristófanes, CARPEAUX nos diz:

“Um individualista como Eurípides encontraria fatalmente oposições em todas as épocas. Mas nenhuma época lhe teria respondido como a Atenas do seu tempo – pela comédia de Aristófanes.

Píndaro é estranho. Aristófanes é mais estranho ainda, a ponto de não encontrar nenhum eco em nossas literaturas. Não há termo de comparação. Até em época de liberdade completa de imprensa e do teatro, não se conheceu entre nós a alta comédia política [...]. Por outro lado, a política é o tema de Aristófanes, mas não a essência da sua arte.

Todas as comédias de Aristófanes têm assunto político. [...] De todos os assuntos, Aristófanes vê só o lado político: Eurípides aparecendo, em As Rãs, pessoalmente, no palco, é o corruptor daquela venerável instituição política que era o teatro, e Sócrates, em As Nuvens, é o corruptor de outra instituição do Estado totalitário ateniense, da educação.

[...] Aristófanes não é profundo. Não tem ideologia bem definida. O seu conservantismo é um tanto sentimental, elogiando os ‘bons velhos tempos’ e denunciando o ‘modernismo’ perigoso dos ‘intelectuais’ e dos ‘socialistas’. [...] Contra eles, Aristófanes não defende uma ideologia, e sim o sentimento moral, ofendido, de um burguês decente, embora de expressão indecentíssima. Pois também nunca se ouviu poeta tão francamente obsceno, chamando todas as coisas pelos nomes certos”.

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Sobre Sófocles, CARPEAUX nos diz:

“Sófocles representa a tentativa de mediar entre os extremos; e quando a mediação se revelou impossível, o grande poeta trágico cantou uma elegia suave e dolorosa, irresistível, que pareceu à posteridade síntese perfeita. Por isso, Sófocles foi sempre o poeta preferido dos partidários do equilíbrio puramente estético: dos classicistas.

É grandíssimo artista. Artista da palavra, dono de extraordinário lirismo musical, sobretudo nos coros. Mas foi também artista da cena, sábio calculador dos efeitos, mestre incomparável da arquitetura dramática, da exposição analítica do enredo. Entre o pathos coletivista de Ésquilo e o pathos individualista de Eurípides, a tragédia semipolítica, semissentimental de Édipo revela força superior de emoção; conflito coletivo e conflito individual estão ligados de maneira tão íntima que o efeito se torna independente de todas as circunstâncias exteriores, efeito permanente. O espectador moderno reconhece-se nos personagens de Sófocles, primeiro grande mestre da dramaturgia de caracteres. O fim, porém, é sempre a emoção lírica: a arquitetura dramática serve para arrancar aos personagens o lamento elegíaco.

[...] No fim das tragédias sofoclianas, os personagens são mais dignos do que eram antes. Eis a solução euripidiana que Sófocles achou para o conflito esquiliano: ordem divina e ordem terrestre, cujo conflito torna tão dolorosa a vida, reconciliam-se na dignidade humana. Em Sófocles, tudo é harmonia, sem que fosse esquecido uma só vez o fundo escuro da nossa existência. Sófocles é humanista. Mas não é um humanismo satisfeito e suficiente, porque o humanismo grego nunca se esquece da precariedade do mundo, pela possível ira dos deuses, nem da tristeza deste mundo que nos impõe o silêncio piedoso no fim da tragédia”.

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Na pasta de arquivos online, estão disponíveis alguns PDFs das peças mencionadas, e de algumas outras: https://www.dropbox.com/home/Grupo%20de%20Estudo%20e%20Leitura%20dos%20Cl%C3%A1ssicos

Retomada: Hesíodo e Píndaro

Após uma breve pausa, retomamos o estudo com a leitura dos clássicos posteriores a Homero - os primeiros nomes que surgem são os de Hesíodo e Píndaro. Quanto a eles, Otto Maria CARPEAUX nos diz o seguinte:

“Homero parece situado fora do tempo. Em comparação, Hesíodo já é poeta de uma época histórica, se bem que primitiva. A Teogonia revela crenças religiosas pré-homéricas: a narração das cinco idades da Humanidade, da idade áurea até a idade do ferro, está imbuída de um pessimismo pouco homérico, e os mitos do caos, da luta dos deuses, dos gigantes, de Prometeu e Pandora, cheiram ao terror cósmico, próprio dos povos primitivos.

[...] Os trabalhos e os dias, a outra obra de Hesíodo, é uma espécie de poema didático, que estabelece normas de agricultura, de educação dos filhos, de práticas supersticiosas na vida cotidiana. É uma poesia cinzenta, prosaica. Não tem nada com Homero. Não se trata de guerras, e sim de trabalhos, não de reis, e sim de camponeses; camponeses que se queixam da miséria e da opressão, e cujo ideal é a honestidade, cuja esperança é a justiça. [...] Hesíodo não é um produto da decadência; é o Homero dos proletários, é o reverso da medalha”.

“Os nossos conhecimentos da poesia lírica grega são precários. Com exceção da obra de Píndaro, possuímos só fragmentos, que não permitem reconhecer a personalidade dos poetas, nem sequer nos dão ideia bastante exata do que foi aquela poesia [...]. Além disso, a poesia lírica grega estava intimamente ligada à música; e da música grega não podemos formar ideia.

[...] A maior parte das poesias de Píndaro chama-se “Epinikioi”: canções de vitórias, quer dizer, de vitórias em jogos esportivos; são epinícios olímpicos, píticos, nemeus, ístmicos, assim denominados conforme os lugares nos quais as festas esportivas se celebraram. A primeira impressão da poesia pindárica é: aristocracia. Não há, no mundo, poesia mais solene, mais nobre; daí a atração irresistível que Píndaro exerceu em todos os séculos aristocráticos [...].

Píndaro canta o mito para estabelecer uma ligação entre os feitos dos deuses e dos heróis de outrora e o feito esportivo do dia: para demonstrar que os homens são capazes de grandes coisas, mas que o deus é sempre superior à mais elevada condição humana. É poesia de aristocratas que se educam para merecer a sua posição; mas o poeta lhes observa que a sua ética depende da sanção divina. Eis a religião aristocrática ou o aristocratismo religioso de Píndaro. O homem é aristocrata quando consegue o equilíbrio – um equilíbrio homérico – entre as faculdades físicas e as faculdades espirituais, como os jogos gregos o revelam; por isso, a poesia é capaz de celebrar a vitória do corpo”.

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Na pasta de arquivos online, é possível baixar os PDFs de Teogonia e de Os trabalhos e os dias, de Hesíodo, e alguns poemas de Píndaro, reunidos numa coleção chamada Pítica, cujo terceiro volume é o que está disponível.