Quanto
à filosofia grega, ao seu “lugar na vida” grega e, especialmente, quanto a Platão, CARPEAUX nos diz:
“A
construção dessa utopia [de um reino político ideal] – que é, entre os gregos,
um programa imediato – foi a maior preocupação da
filosofia grega. Com os sofistas e Sócrates,
a filosofia torna-se ‘retórica’, isto é, analisa a composição dos fatos morais,
cujo fim último é a moralização das almas; ‘salvação’ que parece religiosa e
que se enquadra na renovação do mito. O mito – Platão é o maior criador de
mitos na literatura universal – é o fundamento da Cidade grega.
Os diálogos de Platão constituem um mundo completo
como nenhum outro poeta – além de Dante – criou. No fundamento da construção quase
cósmica encontram-se os diálogos polêmicos com os sofistas, as discussões meio
literárias, meio comediográficas, do tipo do Protágoras e Górgias;
no Mênon estabelece-se o programa da Academia socrática que conservará
nome e memória do mestre. Platão não tem, contudo, o intuito de escrever uma
biografia documentada do seu mestre: Sócrates é, para ele, um símbolo, e simbólico
é o fim da sua vida, o suicídio sereno após o discurso sobre a imortalidade da
alma, no Fédon. Daí em diante, o Sócrates dos diálogos platônicos
torna-se centro de uma companhia fantástica de seres superiores, cuja reunião máxima,
cheia de alegria sublime, é o Simpósio, o banquete de Sócrates com o
poeta trágico Ágaton, o comediógrafo Aristófanes, o pederasta Pausânias, o médico
Eryximachos, o aluno de filosofia Fedro e a sacerdotisa Diótima; é uma noite de
ebriedade patética; e durante a discussão desenfreada surge o mito de Eros,
explicação da atração física e espiritual entre as criaturas humanas. Ao
amanhecer, entra Alcibíades, e com ele a realidade de Atenas, associando-se ao
banquete filosófico. Quer dizer, o Eros que está nas regiões ‘baixas’ do corpo
e igualmente no céu da especulação filosófica, o Eros também seria a nova força
de ligação entre os cidadãos, o novo mito da Cidade. Desde então, Platão
abandona os abismos do seu inferno de sofistas e as prisões do purgatório das
almas, em que Sócrates sofreu, para subir ao paraíso da sua mitologia. No
Timeu conta, como advertência, o mito historiográfico do continente de Atlântida
que se perdeu como se está perdendo a Grécia. Na República, o mundo
inferior é simbolizado como aquela caverna mítica, na qual os homens,
prisioneiros dos sentidos, só veem as sombras das idéias verdadeiras,
refletidas pela luz da ‘anamnese’; e
Platão opõe, na mesma obra, à educação irreligiosa dos sofistas o mito da
educação totalitária da mocidade grega, a fim de que ela integre o Estado utópico,
em que a Verdade, a Beleza e a Justiça acham realização. O malogro de Platão
na tentativa de realizar a Utopia na Sicília já não teve importância: o
realismo grego incluiu também, no seu cosmos, as criações do espírito, e estas
em primeira linha. Neste sentido, o mito platônico já era uma realidade, mais real
até do que a vida política, que, desligada do seu mito tradicional, já não tinha
realidade completa e ia agonizando.
Os mitos platônicos são criações
poéticas em cuja realidade o seu autor acreditava; correspondem àquelas
invenções na Divina Comédia que não têm base no dogma ou nos axiomas da
filosofia tomista, e que, no entanto, representam a realidade florentina que
Dante encontrou no seu outro mundo. Tampouco os
mitos platônicos são axiomas filosóficos; por isso, Platão os expôs em diálogos
de índole literária, dramática, com a pretensão de criar uma Cidade e talvez
uma religião, mas sem a pretensão de defender um sistema filosófico.
Nunca, na Antigüidade, os diálogos
de Platão foram citados como obras de filosofia racional. O grande criador
de fórmulas filosóficas entre os gregos foi Aristóteles, do qual não pode tratar a história da literatura,
porque – ao que parece – todas as suas obras literariamente elaboradas se
perderam, ficando-nos apenas cadernos de notas e aulas. Os mitos de Platão são
antes metáforas poéticas, às quais a posteridade atribuiu correspondência
com realidades superiores. A atividade de Aristóteles parece principalmente um
esforço de corrigir, segundo as experiências empíricas e conclusões lógicas, os
‘erros’ de Platão: o equívoco do ‘platonismo’. Mas aqueles ‘erros’ revelaram-se
indestrutíveis: toda a história espiritual da humanidade, de Sócrates em
diante, é uma psicomaquia entre os
seus dois sucessores. No campo da filosofia racional, a vitória coube, as mais
das vezes, a Aristóteles. Mas a influência indireta de Platão, através da
especulação cristã e de toda a literatura idealista, foi maior. O filósofo
Platão agiu, na história, indiretamente; a ação direta era impedida pela forma
da sua obra. Pois Platão é poeta.
A origem da poesia platônica talvez
fosse casual; a dramaturgia do diálogo seria – como o estilo coloquial de Platão
revela – a transformação artística das conversas filosóficas que Sócrates
inventara para refutar os sofistas e expor, de maneira dialética, os seus próprios
conceitos. Essa origem será motivo das maiores dificuldades para a compreensão
da filosofia platônica. A filosofia de Platão é dogmática: baseia-se num a
priori, a existência das idéias e o seu reflexo na nossa mente. O método
dialético, imposto pela índole pragmatística do espírito grego, era o mais impróprio
para expor essa filosofia dogmática, e teve como conseqüência o fato de certos conceitos,
como a relação ontológica entre as idéias e os objetos materiais, nunca se
tornarem bem claros e constituírem até hoje a crux dos comentadores. O
próprio conceito do mito, em Platão – realidade religiosa ou verdade filosófica?
– não está inteiramente claro. Há em Platão as ambiguidades que
caracterizam, segundo Coleridge, a poesia. O método dialético e a exposição
dialogal eram caminhos de evasão, assim como a explicação dos dogmas platônicos
mediante as perguntas e respostas, um tanto céticas, de um Sócrates meio imaginário. Essa interpretação da dramaturgia do diálogo, em Platão,
baseia-se em duas premissas: a existência de outros escritos platônicos, não
dialéticos e sim dogmáticos, embora estejam perdidos; a evolução da sua
dramaturgia no sentido da eliminação gradual da dialética com a evolução do
dogma idealista. A existência desses outros escritos, hoje perdidos, foi
afirmada por Werner Jaeger, com argumentos convincentes. A evolução da
dramaturgia platônica foi provada por Stenzel; na República, o diálogo já
está praticamente eliminado; no Parmênides e no Sophistes, a
figura de Sócrates perde a importância. Nos últimos diálogos, o ‘Homero da
filosofia’ está transformado em legislador dogmático de uma utopia já
malograda; e desaparecera a arte.
Platão, porém, era essencialmente
poeta. Mais poeta do que filósofo, porque a mera ‘compreensão’ não o deixou
satisfeito. O caminho da sua evasão poética levou-o até os confins do mundo da
razão, até o mito. Afinal, Platão é um grande espírito religioso. Não é [apenas]
fundador de uma academia; antes é o profeta de uma seita. Esta seita, porém,
transformou-se na Humanidade”.
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Na pasta de arquivos online, consta um PDF de Fédon, de Platão, diálogo que narra a morte de Sócrates e trata da imortalidade da alma:
https://www.dropbox.com/home/Grupo%20de%20Estudo%20e%20Leitura%20dos%20Cl%C3%A1ssicos