quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Décima leitura: "Confissões", de Sto. Agostinho

Enfim, sobre Sto. Agostinho, CARPEAUX nos diz o seguinte:

“Chegou, enfim, o momento em que a aliança entre a Igreja e as letras pagãs se rompeu: na realidade, porque o Império caiu; na literatura, porque um espírito poderosíssimo destruiu o equilíbrio.

Agostinho é uma das maiores personalidades da literatura universal; muitos, porém, não o considerarão ‘simpático’, e a culpa é dele mesmo. É o destino de todos os que, como ele nas Confissões e mais tarde Rousseau e Strindberg, contaram com sinceridade irreverente a própria vida: a mocidade devassa, o estágio entre os adeptos da estranha seita dos maniqueus, os estudos de retórica e a vida literária, os remorsos e angústias que duraram anos terríveis, enfim a conversão, a vocação sacerdotal, o bispado, as lutas contra heréticos de toda a espécie, as vitórias políticas; no fim da vida, Agostinho é ‘magnus sacerdos’, o rei episcopal da África cristã, morrendo no momento em que a sua província e a sua Igreja se desmoronavam sob os golpes dos bárbaros.

Este homem de atividades extraordinárias é um introspectivo. ‘Surgunt indocti et rapiunt regnum coelorum, nos autem, cum nostris litteris, mergimur in profundum’ [Os ignorantes elevam-se e raptam (conquistam) o reino dos céus; mas nós, com nossos escritos, mergulhamos nas profundezas]. Eis o lema da sua vida ativa. E o lema da sua vida contemplativa foi a advertência de procurar a Verdade dentro da própria alma: ‘Noli foras ire, in te ipsum redi; in interiore hominis habitat veritas’ [Não queiras ir para fora, mas retorna para dentro de ti mesmo; é no interior do homem que habita a Verdade].

Os efeitos dessa atitude ambígua são fatalmente contraditórios. No mundo exterior, em que a anarquia destrói uma civilização inteira, Agostinho sabe impor a sua autoridade espiritual de bispo, sabe restabelecer a ordem. No mundo interior, sacodem-no ‘tormenta parturientis cordis mei’, reina a noite da anarquia espiritual, iluminada pelos raios dolorosos da graça que se impõe.

Agostinho é um anarquista procurando a ordem, sabendo que precisa nascer outra vez, como homem diferente. É da raça dos ‘twice born’, à qual pertencem os maiores gênios religiosos da Humanidade, um Paulo, um Lutero, um Pascal. Para justificar perante Deus e os homens a sua natureza ambígua, o teólogo Agostinho tem de responsabilizar uma força exterior e mais forte que as suas próprias forças: a Graça, esse seu conceito teológico que será, depois, suscetível de tantas interpretações ambíguas. Esse homem fortíssimo precisa sempre de um apoio de fora: daí provém a sua confiança ilimitada na autoridade da Igreja Romana; daí o seu susto em face da catástrofe do Império, daí a necessidade imperiosa de substituir a derrotada ‘civitas terrena’ pela ‘civitas Dei’, objeto do seu grande mito filosófico-histórico.

Agostinho está contra o Império e não pode viver fora do Império: é um romano. O que o distinguiu, porém, dos outros romanos foi ser um santo, e a demonstração disso está no ‘humano, humano demais’ das Confissões. Um santo não é um anjo, e sim um homem. Agostinho foi o primeiro, em todos os tempos, a expor a sua humanidade fraca, falível e até antipática, pelo lirismo exuberante e efusivo daquele grande livro. Para a literatura universal, é o Colombo de um novo continente. Para a sua época, encerra uma fase decisiva [a segunda das três distinguidas no começo; cf. post anterior] da evolução da mentalidade cristã, e inicia outra fase: após a queda definitiva do Império, o cristianismo retira-se para dentro dos muros da Igreja, e a nova alma encontra a sua nova expressão: eleva-se o hino”.


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Na pasta de arquivos online, há um PDF com o texto completo das Confissões: https://www.dropbox.com/home/Grupo%20de%20Estudo%20e%20Leitura%20dos%20Cl%C3%A1ssicos/2%C2%BA%20semestre%20(2015)/Scans%20e%20PDFs

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