quinta-feira, 27 de agosto de 2015

O cristianismo e o mundo: literatura patrística

Sobre os primórdios do Cristianismo e seus escritores, CARPEAUX nos diz:

“As obras dos escritores cristãos do século V, que foi o século da grande catástrofe, estão cheias de lamentações sobre a situação do mundo mediterrâneo. As cidades estão destruídas, desertos os campos, foram depostas as autoridades, vazias estão as escolas. ‘A cultura das letras’, dirá o bispo e historiógrafo Gregório de Tours, ‘agoniza, ou antes, desaparece nas cidades de Gália. No meio de atos bons ou ruins, quando a ferocidade das nações e o furor dos reis estão desencadeados, quando a Igreja é atacada pelos heréticos e defendida pelos fiéis, e quando a fé cristã, ardente em muitos corações, enfraquece em outros, quando as instituições religiosas são saqueadas pelos perversos, então não se encontrou nenhum homem de letras para descrever esses acontecimentos, nem em prosa, nem em verso. E muitos dizem, gemendo: Ai do nosso tempo, porque o estudo das letras desaparece entre nós, e ninguém é capaz de descrever as coisas desta época’.

[...] Os escritores cristãos que se exprimiram assim fizeram o papel do advocatus diaboli. [...] Havia outros espíritos, capazes de ‘descrever as coisas desta época’. Porque neles um novo conteúdo enchera as formas gramaticais da velha língua; eram eles mesmos, aqueles escritores cristãos.

É verdade que o Ocidente teve de experimentar uma catástrofe, uma interrupção quase total de todas as atividades espirituais; mas essa catástrofe veio alguns séculos depois. Um observador imparcial, não perturbado pela nostalgia convencional do ‘paganismo alegre’, nem pela mentalidade apocalíptica dos escritores eclesiásticos, admitirá a existência de uma notável atividade literária nos séculos do cristianismo vitorioso e da invasão dos bárbaros; de uma literatura rica, embora não grande, que contou com personalidades tão extraordinárias como Jerônimo e Agostinho, que criaram formas inteiramente novas de expressão literária, nos hinos da Igreja, e que criaram, enfim, uma das maiores obras, das mais permanentes da literatura universal de todos os tempos: a liturgia romana.

A mentalidade cristã dos primeiros séculos percorreu três fases distintas, coordenadas como uma evolução dialética. No período das catacumbas, o espírito cristão é de uma introversão tão completa que a expressão se torna silêncio; adivinhamos esse estado de almas nas inscrições lacônicas e, contudo, eloquentes, dos túmulos nas catacumbas; e, com eloquência maior, no silêncio das grandes basílicas romanas, como San Paolo fuori le mura. A segunda fase é a do encontro do cristianismo com o mundo: a literatura patrística. A terceira fase, após a queda definitiva do Império, é o novo ensimismamiento: o cristianismo se retira para dentro dos muros das igrejas, para encontrar aí a sua expressão genuína: os hinos e a liturgia”.

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CARPEAUX faz então uma distinção entre duas definições que nos será bastante esclarecedora mais adiante, que é a seguinte:

“O encontro com o mundo pagão estava preparado pelos Padres da Igreja oriental. Lá, no Oriente, o compromisso deu origem a uma nova literatura, independente, que não pertence ao mundo ocidental: a literatura bizantina. No Ocidente, criou-se uma literatura de transição, com determinados objetivos de apologia dogmática e historiografia eclesiástica: a literatura patrística”.

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Já sobre o primeiro autor dessa literatura patrística, TERTULIANO, nos diz CARPEAUX:

“O são João Batista dessa literatura era o grande herético africano Tertuliano. O seu Apologeticum, que pretende ser a defesa da religião cristã contra os pagãos, é mais ataque do que defesa. Esse polemista terrivelmente agressivo irrita-se contra todos: contra as autoridades romanas que fazem mártires, contra os perseguidos que fogem ao martírio, contra os mártires que morrem sem a fé ortodoxa, contra a ortodoxia que violenta as consciências; o próprio Tertuliano acabou como herético. Mas a sua heresia não é de origem doutrinária, é antes de ordem moral. Revolta-se contra a indulgência com a qual bispos e sacerdotes tratam os cristãos que participaram das festas romanas, que não mandam velar o rosto às suas filhas, que toleram em casa qualquer vestígio do naturalismo sexual dos greco-romanos, e que chegam ao cúmulo de frequentar os teatros, esses ‘consistoria impudicitiae’ [assembléia de lascivos, ou assembléia dos sem-vergonha].
            Neste momento, o moralista revela-se como da família dos puritanos ingleses que mandaram fechar os teatros. Tertuliano lembra os predicadores calvinistas que ameaçam os ‘servos de Baal’ com citações terrificantes do Velho Testamento, ou lembra os próprios profetas do Velho Testamento. O seu estilo violento, artificial, obscuro, revela-lhe as origens africanas. Tertuliano é um Apuleio às avessas, um individualista furioso, um dos maiores escritores de língua latina e um romano autêntico”.

Depois, sobre Sto. AMBRÓSIO, diz CARPEAUX:

“A quase todos os grandes Padres da Igreja ocidental se pode conferir o mesmo título de ‘romano autêntico’, que já se deu a Ambrósio, o poderoso bispo de Milão, ao qual a tradição atribui a criação do hino litúrgico. Ambrósio era natural da Gália, da mais romana das províncias romanas. Em De Officiis ministrorum apresenta um sistema bem organizado, quase em parágrafos, da conduta moral do clero; aplicação razoável da moral estoica do De officiis, de Cícero.

Ambrósio era o primeiro a obedecer aos seus próprios conselhos. Sabia reunir imperialismo eclesiástico e dignidade sacerdotal tão bem como um senador romano sabia reunir política de anexação e dignidade humana. Grandes quadros, nas igrejas do catolicismo pós-tridentino, representam a cena em que Ambrósio, recebendo em Milão o imperador Teodósio, culpado de assassínio, lhe nega a entrada na basílica. Ambrósio era mais homem de ação do que escritor; nisso, também, é romano”.

Sobre São JERÔNIMO, diz CARPEAUX:

“Escritor, literato até, é Jerônimo. Homem de vastas atividades, quase febris, fazendo inúmeras viagens, escrevendo, traduzindo, comentando, trocando cartas com papas e religiosas, dando conselhos a toda a gente, grande trabalhador, que acabou seus dias num convento, no deserto da Judéia. Odiava a literatura pagã, na qual fora educado, e é o literato mais típico entre os Padres da Igreja. A sua maior obra é um trabalho de estilística, a tradução latina da Bíblia, a Vulgata, que alcançou autoridade canônica na Igreja Romana.

Com essa obra, Jerônimo criou uma língua nova e uma nova literatura. Prestou ao latim medieval o serviço que os poetas da idade augustana tinham prestado à literatura imperial, naturalizando em Roma as letras gregas. Durante mais de um milênio, a Europa inteira rezou na língua de Jerônimo, que é, contra a sua vontade, a língua de Virgílio, e não inteiramente indigna dele. A Vulgata é a Eneida do cristianismo. Jerônimo, anti-humanista furioso, é o primeiro grande humanista europeu. Valéry Larbaud exalta o autor da Vulgata como o rei ou padroeiro de todos os tradutores”.

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