quinta-feira, 26 de março de 2015

Como ler literatura imaginativa

Quanto à leitura de livros de literatura imaginativa, ou seja, de ficção, Mortimer ADLER nos diz o seguinte:

“O problema de saber como ler literatura imaginativa é intrinsecamente muito mais difícil do que o de saber como ler livros expositivos. [...] Com base em nossa experiência como educadores, sabemos como as pessoas perdem a língua na hora de apontar aquilo de que gostaram num romance. Para elas, é perfeitamente claro que gostaram do livro, mas não conseguem descrever a satisfação que sentiram nem dizer o que é que havia ali que lhes causou prazer. [...] Uma leitura crítica de qualquer coisa depende do quanto alguém consegue apreendê-la. Aqueles que não conseguem dizer por que gostaram de um romance provavelmente não ultrapassaram suas mais óbvias superfícies. [...] Fundamentalmente, a literatura imaginativa mais deleita do que ensina. É muito mais fácil deleitar-se do que aprender, mas é muito mais difícil saber de onde veio o deleite. A beleza é mais difícil de analisar do que a verdade.

COMO NÃO LER LITERATURA IMAGINATIVA

[...] Livros expositivos buscam transmitir conhecimento - conhecimento a respeito de experiências que o leitor teve ou poderia ter tido. Os imaginativos buscam comunicar a experiência mesma - e, se conseguem, dão ao leitor algo com que se deleitar. Por causa de suas intenções distintas, os dois tipos de obras têm apelos diferentes para o intelecto e para a imaginação.

Temos a experiência das coisas pelo exercício de nossos sentidos e de nossa imaginação. Para saber algo, temos de usar nossas capacidades de julgamento e raciocínio, que são intelectuais. Isso não significa que podemos pensar sem usar nossa imaginação, tampouco que a experiência sensorial esteja sempre totalmente divorciada da intuição racional ou da reflexão. A questão é só de ênfase. A ficção tem apelo primário para a imaginação. Essa é uma das razões para chamá-la de literatura imaginativa, em contraste com a ciência e a filosofia, que são intelectuais.

Esse fato a respeito da literatura imaginativa leva àquela que é provavelmente a mais importante das instruções negativas que gostaríamos de dar. Não tente resistir ao efeito que uma obra de literatura imaginativa tem sobre você.

Discutimos longamente a importância de ler de modo ativo. Isso vale para todos os livros, mas vale de maneiras muito diferentes para obras expositivas e obras poéticas. O leitor das primeiras tem de ser como uma ave de rapina, sempre alerta, sempre pronto para dar o bote. O tipo de atividade apropriado para a leitura de poesia e ficção não é o mesmo. É uma espécie de ação passiva, se é que podemos falar assim, ou melhor, uma paixão ativa. Ao ler uma narrativa, temos de agir de modo a deixar que ela aja sobre nós. Temos de permitir que ela nos comova, temos de deixá-la fazer o que quer que ela queira fazer conosco. Temos de ficar abertos para ela.

[obs.: “Uma peça de teatro é como um sonho acordado dirigido”, o que vale também para um livro de ficção. Ambos requerem aquilo que Samuel Taylor Coleridge chamou de “suspension of disbelief”, a suspensão da incredulidade – ou seja, a disposição prévia a aceitar os ocorridos conforme eles ocorrem.]

[...] De qualquer modo, as regras para a leitura de uma grande obra de arte literária devem ter como finalidade ou objetivo nada menos do que essa experiência profunda. Cabe às regras eliminar tudo aquilo que nos impede de sentir tão profundamente quanto nos for possível.

[...] Por causa de seus objetivos radicalmente diversos, esses dois tipos de escrita necessariamente usam a linguagem de modo diferente. O autor imaginativo tenta maximizar as ambiguidades latentes das palavras, para ver se consegue alcançar toda a riqueza e toda a força inerentes a seus múltiplos sentidos. Ele toma as metáforas como unidades de sua construção do mesmo modo que o autor lógico usa as palavras afiadas à exatidão de um único sentido. Dante disse que A Divina Comédia deveria ser lida como se tivesse sentidos diversos, porém relacionados; isso se aplica, de modo geral, à poesia e à ficção.

[obs.: Os quatro sentidos de um texto, segundo Dante Alighieri em sua obra Convívio, são: literal (o semântico imediato, que não ultrapassa a letra da narrativa), alegórico (o figurativo e, de certa forma, metafórico, que se encontra sob o manto da narrativa), moral (o do qual se pode tirar orientações de conduta) e anagógico (ou o supra-sentido, que é quando se expõe espiritualmente o escrito, o qual, pelas coisas significadas, significa as sublimes coisas do plano da eternidade). Cf. http://grupotempo.com.br/tex_convivio21.html]

[...] a escrita imaginativa depende tanto daquilo que é sugerido quanto daquilo que é dito. A multiplicação de metáforas praticamente coloca mais conteúdo entre as linhas do que nas palavras que estão nelas. Em sua totalidade, o poema, o conto e o romance dizem algo que nenhuma de suas palavras diz ou pode dizer.

Desse fato, tiramos outra instrução negativa. Não procure termos, proposições ou argumentos na literatura imaginativa. Esses recursos são lógicos, não poéticos.

[...] Claro que podemos aprender com a literatura imaginativa, com poemas, narrativas e sobretudo, talvez, com peças teatrais - mas não no mesmo sentido em que aprendemos com livros científicos e filosóficos. Aprendemos com a experiência - a experiência que temos no curso de nossa vida cotidiana. Assim, também, podemos aprender com as experiências substitutas, ou criadas artisticamente, que a ficção produz em nossa imaginação. Nesse sentido, os poemas e as narrativas tanto ensinam quanto provocam deleite.

[...] Por fim, uma última regra negativa. Não critique a ficção usando os critérios de verdade e coerência que são devidamente aplicados à comunicação do conhecimento. A 'verdade' de uma boa narrativa é sua verossimilhança, sua probabilidade intrínseca ou plausibilidade. A história tem de ser aceitável, mas não precisa descrever os fatos da vida ou da sociedade de maneira verificável por meio de experimentos ou de pesquisas. Séculos atrás, Aristóteles observava que 'o mesmo padrão de correção não vale para a poesia e para a política', nem, aliás, para a física ou para a psicologia. Devemos criticar erros geográficos ou inexatidões anatômicas quando o livro se apresenta como um tratado desses assuntos. Mas equívocos factuais não maculam uma narrativa, desde que o narrador consiga cercá-los de plausibilidade. Quando lemos um livro de história, em algum sentido queremos a verdade, e temos razão em reclamar se não a obtivermos. Quando lemos um romance, queremos uma narrativa que seja verdadeira apenas no sentido de que ela poderia ter acontecido no mundo de personagens e acontecimentos que o romancista criou e recriou em nós.

[Subjacente aos escritos de Aristóteles sobre discurso e linguagem, há uma idéia organizadora medular (cf. CARVALHO, Olavo de. “Aristóteles em nova perspectiva: introdução à Teoria dos Quatro Discursos”, VIDE Editorial, 2013): há quatro tipos diferentes de discurso humano; ou seja, o homem, ao falar, pode querer quatro coisas distintas: levantar possibilidades (poesia = versa sobre aquilo que é possível), convencer quanto à verossimilhança de algo (retórica = dentre as várias possibilidades existentes, versa sobre aquilo que é verossímil que seja assim, que parece ser de fato assim), discutir a probabilidade mais razoável de tal coisa (dialética = confronta as várias hipóteses a respeito de algo e versa sobre aquilo que é provável ser, com boas e razoáveis chances, o verdadeiro) ou ainda expor algo que já se sabe com certeza (lógica = versa sobre o que é certo e se pode demonstrar com certeza absoluta, posto que já foi verificado - resistiu ao confrontamento dialético -, foi entendido e explicado). Cf. também: http://grupotempo.com.br/tex_arist.html]

REGRAS GERAIS PARA A LEITURA DE LITERATURA IMAGINATIVA

[...] Existem, como vimos, três grupos dessas regras. O primeiro grupo é composto das regras para descobrir a unidade e a relação estrutural entre o todo e as partes; o segundo, das regras para a identificação e interpretação dos termos, proposições e argumentos que compõem o livro; o terceiro, das regras para criticar a doutrina do autor, de modo que consigamos concordar com ele ou discordar de modo inteligente. Esses três grupos de regras são chamados de estruturaisinterpretativos críticos. Analogamente, é possível apontar grupos semelhantes de regras para guiar-nos na leitura de poemas, romances e peças.

Primeiro, podemos traduzir as regras estruturais - as regras do delineamento - em seus análogos ficcionais desta maneira:

1.     É preciso classificar uma obra de literatura imaginativa de acordo com sua espécie. No poema, uma história aparece basicamente como uma experiência emocional individual, ao passo que romances e peças teatrais têm tramas muito mais complicadas, que envolvem muitos personagens, as ações e reações de uns em relação aos outros, além das emoções que sentem no processo. Todos sabem, além disso, que uma peça teatral é diferente de um romance porque sua narração se dá inteiramente por meio de ações e falas. [...] Todas essas diferenças na maneira de escrever levam a diferenças na receptividade do leitor. Assim, é preciso que você perceba imediatamente qual tipo de ficção está lento.

2.      É preciso apreender a unidade da obra inteira. É possível saber se você fez isso ou não vendo se consegue expressar essa unidade em uma frase ou duas. Em última instância, a unidade de uma obra expositiva está no principal problema que ela tenta resolver. Assim, sua unidade pode ser enunciada pela formulação dessa questão ou pelas proposições que a respondem. A unidade da ficção também está relacionada ao problema com que o autor deparou, mas vimos que esse problema é a tentativa de transmitir uma experiência concreta e por isso a unidade de uma narrativa está sempre em seu enredo. Você só terá apreendido a história inteiria quando conseguir resumir seu enredo em uma vreve narração, não em uma proposição ou argumento. Nisso está sua unidade. [...] Mas o enredo não é a experiência concreta que é recriada no leitor pela obra, seja ela um poema, peça teatral, seja um romance; é apenas seu arcabouço ou talvez o seu cenário. Ele representa a unidade da obra, a qual está precisamente na experiência mesma, assim como a síntese lógica do sentido de uma obra expositiva representa o argumento do todo.

3.      Não basta apenas reduzir o todo à sua unidade mais simples, é preciso também descobrir de que modo o todo é composto de todas as suas partes. As partes de uma obra expositiva estão relacionadas Às partes do problema inteiro: as soluções parciais contribuem para a solução do todo. As partes da ficção são os diversos passos que o autor dá para desenvolver seu enredo - os detalhes da caracterização e dos acontecimentos. A maneira como as partes estão dispostas é diferente nos dois casos. Na ciência e na filosofia, é preciso que elas estejam ordenadas logicamente. Numa narrativa, as partes têm de caber de algum modo em uma estrutura temporal, uma progressão que parte de um início, passa por um meio e chega a um fim. Para conhecer a estrutura de uma narrativa, você tem de saber onde ela começa - não necessariamente na primeira página, claro -, por onde ela passa e para onde ela vai. É preciso que você conheça as diversas crises que levam ao clímax, onde e como o clímax ocorre e o que acontece depois (por 'depois' não queremos dizer aquilo que acontece depois que a história acaba. Ninguém pode saber isso. Queremos dizer apenas o que acontece, dentro da narrativa, após o clímax.)

[...] Segundo, quais são as regras interpretativas para a leitura de ficção? [...]

1. Os elementos da ficção são seus episódios e acontecimentos, seus personagens e pensamentos, falas, sentimentos e ações deles. Cada uma dessas coisas é um elemento do mundo criado pelo autor. Ao manipular esses elementos, o autor conta sua história. Elas são como os termos de um discurso lógico. Assim como você precisa chegar a um acordo com um autor expositivo, nesse caso você precisa ficar a par dos detalhes dos acontecimentos e da caracterização. Você não terá apreendido uma história enquanto não tiver familiaridade com seus personagens, enquanto não tiver vivido através dos acontecimentos vividos por eles.

2.     Nas proposições, os termos estão relacionados. Os elementos da ficção estão relacionados pela cena ou pano de fundo total contra o qual se destacam, em primeiro plano. O autor imaginativo, como vimos, cria um mundo no qual seus personagens ‘vivem, movem-se e são’. A versão análoga, para a ficção, da regra que lhe recomenda encontrar as proposições de um autor, pode, portanto, ser enunciada desta maneira: familiarize-se com esse mundo imaginário; conheço-o como se fosse um observador da cena; torne-se um dos membros de sua população, disposto a ficar amigo dos personagens, capaz de participar com empatia da vida deles, assim como faria em relação às ações e paixões de um amigo. Se você conseguir fazer isso, os elementos da ficção terão deixado de ser peças isoladas, movidas mecanicamente num tabuleiro. Você terá encontrado as conexões que lhes dão vida como membros de uma sociedade viva.

3.      [...] Você se familiarizou com os personagens. Você se reuniu a eles no mundo imaginário em que vivem, deu seu consentimento às leis de sua sociedade, respirou seu ar, provou sua comida, viajou por suas estradas. Agora você tem de segui-los em suas aventuras. A cena ou pano de fundo, a ambiência social, é (como a proposição) um tipo de conexão estática entre os elementos da ficção. O desenrolar do enredo (como os argumentos ou o raciocínio) é a conexão dinâmica. Aristóteles disse que o enredo é a alma da narrativa. O enredo é sua vida. Para ler bem um romance, é preciso que você mantenha seu dedo no pulso da narrativa, que você acompanhe seu ritmo.

Terceiro, e último, quais são as regras críticas para a leitura de ficção? [...] Se, no caso das obras expositivas, a orientação era não criticar um livro – não dizer se você concorda ou discorda – antes de primeiro dizer que o entendeu, aqui o princípio é: não critique uma obra imaginativa enquanto não tiver apreciado por completo a experiência que o autor quer que você tenha.

Disso decorre um importante corolário. O bom leitor de ficção não questiona o mundo criado pelo autor – mundo recriado nele mesmo, leitor. [...] disse Henry James em A arte da ficção: ‘nossa crítica se dirige apenas ao que ele faz com isso’.

[...] Nosso julgamento crítico no caso de livros expositivos diz respeito à sua verdade, mas, ao criticar as belas-letras, como a própria palavra sugere, consideramos sobretudo sua beleza. A beleza de qualquer obra de arte está relacionada ao prazer que ela nos proporciona quando a conhecemos bem.

[...] [E]m sua primeira expressão [crítica], é mais provável que elas [suas críticas] digam mais a respeito de você – de suas preferências e inclinações – do que sobre o livro. Assim, para completar a tarefa da crítica, é preciso que você dê objetividade às suas reações, apontando as coisas no livro que as provocaram. Você tem de deixar de falar do que você gosta ou desgosta e por que, e passar a falar do que é bom ou ruim no livro e por quê.

Quanto melhor você discernir em suas reflexões aquilo que lhe causa prazer na leitura da ficção e da poesia, mais próximo estará de conhecer as virtudes artísticas da obra literária em si mesma. Assim, pouco a pouco você desenvolverá um padrão de crítica. E provavelmente encontrará muitos homens e mulheres de gosto similar, que compartilham seus julgamentos críticos. Você pode até descobrir algo que julgamos verdadeiro: que o bom gosto literário pode ser adquirido por qualquer pessoa que aprenda a ler”.

***

Nota final quanto às regras gerais para a boa leitura de livros de ficção: [em inglês, “belas-artes” é “fine-arts”] “Uma obra de arte é ‘fina’ [fine] não por ser ‘refinada’ ou por estar ‘finalizada’, mas porque é um fim (em latim, finis significa fim) em si mesma. Ela não tem de produzir um resultado além de si própria. Ela é, como disse Emerson da beleza, sua própria razão de existir.

[...] Se você sentir-se impelido a fazer alguma coisa por causa de um livro [de ficção] que leu, pergunte-se se a obra possui alguma asserção implícita que tenha produzido esse sentimento. A poesia, em sentido estrito, não é o domínio das asserções, ainda que muitas narrativas e muitos poemas contenham asserções mais ou menos escondidas. E não há problema algum em prestar atenção nelas, em reagir a elas. Mas é preciso que você recorde que está prestando atenção em algo e reagindo a algo que não é a narrativa ou o poema. Esses subsistem por si. Para lê-los bem, basta experienciá-los”.

***

COMO LER NARRATIVAS

“A primeira orientação que gostaríamos de oferecer a você para a leitura de uma narrativa é essa: leia-a rápido e entregue-se totalmente a ela. Idealmente, uma narrativa deveria ser lida numa única sentada, ainda que isso raramente seja possível para pessoas ocupadas que queiram ler romances extensos. Ainda assim, é possível aproximar-se do ideal comprimindo a leitura de uma boa narrativa no menor tempo possível. Caso contrário, você esquecerá o que aconteceu, a unidade do enredo lhe escapará e você ficará perdido.

Alguns leitores, quando gostam muito de um romance, querem saboreá-lo, demorar-se nele, estender sua leitura o máximo possível. Mas nesse caso é provável que eles não estejam exatamente lendo o livro, e sim satisfazendo seus sentimentos mais ou menos conscientes a respeito dos acontecimentos e dos personagens. Voltaremos a isso em breve. 

Leia rápido e entregue-se totalmente – eis a nossa sugestão. Mencionamos a importância de deixar um livro imaginativo mexer com você. Isso é o que queremos dizer com ‘entregue-se totalmente’. Deixe os personagens entrarem em sua mente e em seu coração, suspenda sua incredulidade, se houver alguma, a respeito dos acontecimentos. Não desaprove algo que um personagem tenha feito, antes de entender por que ele fez aquilo – talvez, nem mesmo depois. Faça o máximo de esforço para viver no mundo dele, não no seu; ali, as coisas que ele faz podem ser perfeitamente compreensíveis. E não julgue o mundo como um todo antes que você tenha certeza de que ‘viveu’ nele até o máximo de sua capacidade.

Seguir essa regra permitirá que você responda à primeira pergunta que se deve fazer a respeito de qualquer livro – ‘O livro, como um todo, é sobre o quê?’. A menos que você leia rápido, não conseguirá enxergar a unidade da narrativa. A menos que leia intensamente, não conseguirá perceber os detalhes.

Os termos de uma narrativa, como observamos, são seus personagens e acontecimentos. É preciso que você se familiarize com eles e seja capaz de enumerá-los. Aqui, porém, cabe um aviso. Tomando Guerra e Paz [de Liev Tolstoi] como exemplo, muitos leitores iniciam esse grande romance e ficam desesperados com o grande número de personagens aos quais são apresentados, sobretudo porque eles têm nomes estranhos. Logo esses leitores desistem do livro, crentes de que jamais serão capazes de distinguir todas as complicadas relações, de saber quem é quem. Isso vale para qualquer romance extenso – e, se o romance for bom mesmo, queremos que ele seja o mais longo possível.

Nem sempre ocorre a esses leitores de ânimo fraco que acontece com eles a mesma coisa quando se mudam de cidade, ou para outro bairro, quando vão para uma nova escola ou para um novo trabalho, ou mesmo quando chegam a uma festa. Nessas circunstâncias, eles não desistem; sabem que após um breve período, conseguirão distingui indivíduos da massa, que farão amigos na multidão desfigurada dos colegas de trabalho, dos colegas de escola ou dos convidados da festa. [...] Acontece a mesma coisa num romance. Não devemos esperar ser capazes de lembrar o nome de cada personagem; muitos deles são apenas pessoas de fundo, cuja função é provocar as ações dos personagens principais. Porém, quando terminamos Guerra e Paz ou qualquer outro romance extenso, sabemos quem é importante, e não esquecemos. [...]

Apesar da multidão de acontecimentos, também descobrimos rapidamente o que é importante. Os autores normalmente ajudam muito nesse quesito; eles não querem que o leitor perca aquilo que é essencial para o desenrolar do enredo, por isso destacam-no de várias maneiras. Mas o principal é que você não fique nervoso se as coisas não estiverem claras desde o início. Uma narrativa é como a vida: nesta, não esperamos compreender os acontecimentos na hora que eles ocorrem, ao menos não com total clareza; mas, olhando em retrospecto, nós os compreendemos. Assim, o leitor de uma narrativa, olhando em retrospecto para ela após terminá-la, compreende a relação entre os eventos e a ordem das ações.

Tudo isso se resume ao mesmo princípio: é preciso terminar de ler uma narrativa para poder dizer que ela foi bem lida. Paradoxalmente, porém, uma narrativa deixa de ser semelhante à vida na sua última página. A vida continua, mas a narrativa não. Seus personagens não têm vitalidade fora do livro e aquilo que você imagina que aconteceu com eles antes da primeira página e depois da última vale tanto quanto a opinião de qualquer outro leitor. Na realidade, essas especulações não fazem sentido. Já escreveram prelúdios a Hamlet, todos ridículos. [...] Ficamos satisfeitos com as criações de Shakespeare e Tolstoi em parte porque elas são limitadas no tempo. Não precisamos de mais.

A grande maioria dos livros são narrativas de algum tipo. As pessoas que não sabem ler escutam narrativas. Nós até as inventamos. A ficção parece uma necessidade humana. Por quê?

Uma razão pela qual a ficção é uma necessidade humana é que ela satisfaz muitas necessidades conscientes e inconscientes. Ela seria importante se tocasses apenas a mente consciente, como a escrita expositiva. Mas a ficção também é importante porque, além disso, toca o inconsciente.

No nível mais simples – e uma discussão sobre esse assunto pode ser muito complexa –, gostamos ou desgostamos de certos tipos de pessoas mais do que de outras e nem sempre sabemos o porquê. Se, num romance, essas pessoas forem recompensadas ou punidas, o livro poderá levar a uma mobilização mais forte, a favor ou contra do que se fosse provocada apenas pelos seus méritos artísticos.

[...] Assim, ao criticar ficção precisamos ter cuidado para distinguir os livros que satisfazem nossas próprias necessidades inconscientes – aqueles que nos fazem dizer: ‘gosto desse livro, mas não sei bem por quê’ – daqueles que satisfazem as profundas necessidades inconscientes de quase todo o mundo. Os últimos são sem dúvida as grandes narrativas, aquelas que sobrevivem por gerações e séculos. Enquanto o homem for homem, elas continuarão a satisfazê-lo [...]”.

UMA NOTA SOBRE OS ÉPICOS

Talvez os livros mais celebrados, mas provavelmente menos lidos, da grande tradição do mundo ocidental sejam os grandes poemas épicos, especialmente a Ilíada e a Odisseia, de Homero, a Eneida de Virgílio, A Divina Comédia de Dante e o Paraíso Perdido de Milton. Esse paradoxo pede um comentário.

A julgar pelo pequeno número dos que foram concluídos com sucesso nos últimos 2.500 anos, parece que nada é mais difícil de escrever do que um longo poema épico. Não por falta de tentativas: centenas de épicos foram iniciados, e alguns, como o Prelude de Wordsworth e o Don Juan de Byron, atingiram tamanhos consideráveis sem que jamais fossem terminados. Assim, é preciso honrar o poeta que continua trabalhando até terminar. É preciso honrar mais ainda o poeta que produza uma obra que tenha as qualidades das cinco aqui mencionadas. Todavia, elas certamente não são fáceis de ler.

Não é só porque foram escritas em verso; [...]. A dificuldade parece estar antes em sua grandeza, na abordagem de seu assunto. Qualquer um desses grandes épicos faz enormes exigências ao leitor – exigências de atenção, envolvimento e imaginação. O esforço necessário para lê-los é, de fato, imenso.

A maioria de nós não tem idéia do que está perdendo por não fazer esse esforço. As recompensas advindas de uma boa leitura – uma leitura analítica, diríamos – desses épicos são pelo menos tão grandes quanto as que vêm da leitura de quaisquer outros livros; certamente, de outros livros de ficção. Infelizmente, porém, aqueles que não leem bem esses livros não têm acesso a tais recompensas.

Esperamos que você tente ler esses cinco grandes poemas épicos e que consiga chegar ao fim de todos eles. Temos certeza de que não se decepcionará. E você ainda terá outra satisfação. Homero, Virgílio, Dante e Milton são os autores que todo bom poeta leu, isso para não falar de outros autores. Formam, com a Bíblia, a espinha dorsal de qualquer programa sério de leitura”.

Um comentário:

  1. Muito bom ! Obrigado pelo conhecimento transmitido de como ler literatura imaginativa.

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