Quanto à leitura de livros de literatura imaginativa, ou seja, de ficção, Mortimer ADLER nos diz o seguinte:
“O problema
de saber como ler literatura imaginativa é intrinsecamente muito mais difícil
do que o de saber como ler livros expositivos. [...] Com base em nossa
experiência como educadores, sabemos como as pessoas perdem a língua na hora de
apontar aquilo de que gostaram num romance. Para elas, é perfeitamente claro
que gostaram do livro, mas não conseguem descrever a satisfação que sentiram
nem dizer o que é que havia ali que lhes causou prazer. [...] Uma leitura
crítica de qualquer coisa depende do quanto alguém consegue apreendê-la.
Aqueles que não conseguem dizer por que gostaram de um romance provavelmente
não ultrapassaram suas mais óbvias superfícies. [...] Fundamentalmente, a
literatura imaginativa mais deleita do que ensina. É muito mais fácil deleitar-se
do que aprender, mas é muito mais difícil saber de onde veio o
deleite. A beleza é mais difícil de analisar do que a verdade.
COMO NÃO LER LITERATURA IMAGINATIVA
[...] Livros
expositivos buscam transmitir conhecimento - conhecimento a
respeito de experiências que o leitor teve ou poderia ter tido. Os imaginativos buscam
comunicar a experiência mesma - e, se conseguem, dão ao leitor algo
com que se deleitar. Por causa de suas intenções distintas, os dois tipos de
obras têm apelos diferentes para o intelecto e para a imaginação.
Temos a experiência das coisas pelo exercício de nossos
sentidos e de nossa imaginação. Para saber algo, temos de usar
nossas capacidades de julgamento e raciocínio, que são intelectuais. Isso não
significa que podemos pensar sem usar nossa imaginação, tampouco que a
experiência sensorial esteja sempre totalmente divorciada da intuição racional
ou da reflexão. A questão é só de ênfase. A ficção tem apelo primário para a
imaginação. Essa é uma das razões para chamá-la de literatura imaginativa, em
contraste com a ciência e a filosofia, que são intelectuais.
Esse fato a respeito da literatura imaginativa leva àquela que é
provavelmente a mais importante das instruções negativas que gostaríamos de
dar. Não tente resistir ao efeito que uma obra de literatura
imaginativa tem sobre você.
Discutimos longamente a importância de ler de modo ativo. Isso vale
para todos os livros, mas vale de maneiras muito diferentes para obras
expositivas e obras poéticas. O leitor das primeiras tem de ser como uma ave de
rapina, sempre alerta, sempre pronto para dar o bote. O tipo de atividade
apropriado para a leitura de poesia e ficção não é o mesmo. É uma
espécie de ação passiva, se é que podemos falar assim, ou melhor, uma
paixão ativa. Ao ler uma narrativa, temos de agir de modo a deixar que ela aja
sobre nós. Temos de permitir que ela nos comova, temos de deixá-la fazer o que
quer que ela queira fazer conosco. Temos de ficar abertos para ela.
[obs.: “Uma peça de teatro é como
um sonho acordado dirigido”, o que vale também para um livro de
ficção. Ambos requerem aquilo que Samuel Taylor Coleridge chamou de “suspension of disbelief”, a suspensão da
incredulidade – ou seja, a disposição prévia a aceitar os ocorridos conforme
eles ocorrem.]
[...] De qualquer modo, as regras para a leitura de uma grande
obra de arte literária devem ter como finalidade ou objetivo nada menos do que
essa experiência profunda. Cabe às regras eliminar tudo aquilo que nos impede
de sentir tão profundamente quanto nos for possível.
[...] Por causa de seus objetivos radicalmente diversos, esses dois
tipos de escrita necessariamente usam a linguagem de modo diferente. O autor
imaginativo tenta maximizar as ambiguidades latentes das palavras, para ver se
consegue alcançar toda a riqueza e toda a força inerentes a seus múltiplos
sentidos. Ele toma as metáforas como unidades de sua construção do mesmo modo
que o autor lógico usa as palavras afiadas à exatidão de um único sentido.
Dante disse que A Divina Comédia deveria ser lida como se tivesse
sentidos diversos, porém relacionados; isso se aplica, de modo geral, à poesia
e à ficção.
[obs.: Os quatro sentidos de um
texto, segundo Dante Alighieri em sua obra Convívio, são: literal
(o semântico imediato, que não ultrapassa a letra da narrativa), alegórico
(o figurativo e, de certa forma, metafórico, que se encontra sob o manto da
narrativa), moral (o do qual se pode tirar orientações de conduta) e anagógico
(ou o supra-sentido, que é quando se expõe espiritualmente o escrito, o qual,
pelas coisas significadas, significa as sublimes coisas do plano da eternidade).
Cf. http://grupotempo.com.br/tex_convivio21.html]
[...] a
escrita imaginativa depende tanto daquilo que é sugerido quanto daquilo que é
dito. A multiplicação de metáforas praticamente coloca mais conteúdo entre as
linhas do que nas palavras que estão nelas. Em sua totalidade, o poema, o conto
e o romance dizem algo que nenhuma de suas palavras diz ou pode dizer.
Desse fato, tiramos outra instrução negativa. Não procure
termos, proposições ou argumentos na literatura imaginativa. Esses
recursos são lógicos, não poéticos.
[...] Claro que podemos aprender com a literatura imaginativa, com poemas,
narrativas e sobretudo, talvez, com peças teatrais - mas não no mesmo sentido
em que aprendemos com livros científicos e filosóficos. Aprendemos com a
experiência - a experiência que temos no curso de nossa vida cotidiana. Assim,
também, podemos aprender com as experiências substitutas, ou criadas
artisticamente, que a ficção produz em nossa imaginação. Nesse sentido, os
poemas e as narrativas tanto ensinam quanto provocam deleite.
[...] Por fim, uma última regra negativa. Não critique a
ficção usando os critérios de verdade e coerência que são devidamente aplicados
à comunicação do conhecimento. A 'verdade' de uma boa narrativa é sua
verossimilhança, sua probabilidade intrínseca ou plausibilidade. A história tem
de ser aceitável, mas não precisa descrever os fatos da vida ou da sociedade de
maneira verificável por meio de experimentos ou de pesquisas. Séculos atrás,
Aristóteles observava que 'o mesmo padrão de correção não vale para a poesia e
para a política', nem, aliás, para a física ou para a psicologia. Devemos
criticar erros geográficos ou inexatidões anatômicas quando o livro se
apresenta como um tratado desses assuntos. Mas equívocos factuais não maculam
uma narrativa, desde que o narrador consiga cercá-los de plausibilidade. Quando
lemos um livro de história, em algum sentido queremos a verdade, e temos razão
em reclamar se não a obtivermos. Quando lemos um romance, queremos uma
narrativa que seja verdadeira apenas no sentido de que ela poderia ter
acontecido no mundo de personagens e acontecimentos que o romancista
criou e recriou em nós.
[Subjacente aos escritos de
Aristóteles sobre discurso e linguagem, há uma idéia organizadora medular (cf.
CARVALHO, Olavo de. “Aristóteles em nova perspectiva: introdução à Teoria
dos Quatro Discursos”, VIDE Editorial, 2013): há quatro tipos
diferentes de discurso humano; ou seja, o homem, ao falar, pode querer
quatro coisas distintas: levantar possibilidades (poesia = versa
sobre aquilo que é possível), convencer quanto à verossimilhança de
algo (retórica = dentre as várias possibilidades existentes, versa
sobre aquilo que é verossímil que seja assim, que parece ser
de fato assim), discutir a probabilidade mais razoável de tal coisa (dialética =
confronta as várias hipóteses a respeito de algo e versa sobre aquilo que é provável ser,
com boas e razoáveis chances, o verdadeiro) ou ainda expor algo que já se sabe
com certeza (lógica = versa sobre o que é certo e
se pode demonstrar com certeza absoluta, posto que já foi verificado - resistiu
ao confrontamento dialético -, foi entendido e explicado). Cf. também: http://grupotempo.com.br/tex_arist.html]
REGRAS GERAIS PARA A LEITURA DE LITERATURA IMAGINATIVA
[...]
Existem, como vimos, três grupos dessas regras. O primeiro grupo é composto das
regras para descobrir a unidade e a relação estrutural entre o todo e as
partes; o segundo, das regras para a identificação e interpretação dos termos,
proposições e argumentos que compõem o livro; o terceiro, das regras para
criticar a doutrina do autor, de modo que consigamos concordar com ele ou
discordar de modo inteligente. Esses três grupos de regras são chamados de estruturais, interpretativos
e críticos. Analogamente, é possível apontar grupos semelhantes
de regras para guiar-nos na leitura de poemas, romances e peças.
Primeiro, podemos traduzir as regras estruturais - as regras do delineamento - em seus análogos
ficcionais desta maneira:
1. É preciso classificar uma obra de literatura
imaginativa de acordo com sua espécie. No poema, uma história aparece
basicamente como uma experiência emocional individual, ao passo que romances e
peças teatrais têm tramas muito mais complicadas, que envolvem muitos
personagens, as ações e reações de uns em relação aos outros, além das emoções
que sentem no processo. Todos sabem, além disso, que uma peça teatral é
diferente de um romance porque sua narração se dá inteiramente por meio de
ações e falas. [...] Todas essas diferenças na maneira de escrever levam a
diferenças na receptividade do leitor. Assim, é preciso que você perceba
imediatamente qual tipo de ficção está lento.
2.
É preciso apreender a unidade da obra inteira.
É possível saber se você fez isso ou não vendo se consegue expressar essa
unidade em uma frase ou duas. Em última instância, a unidade de uma obra
expositiva está no principal problema que ela tenta resolver. Assim, sua
unidade pode ser enunciada pela formulação dessa questão ou pelas proposições
que a respondem. A unidade da ficção também está relacionada ao problema com
que o autor deparou, mas vimos que esse problema é a tentativa de transmitir
uma experiência concreta e por isso a unidade de uma narrativa está
sempre em seu enredo. Você só terá apreendido a história inteiria
quando conseguir resumir seu enredo em uma vreve narração, não em
uma proposição ou argumento. Nisso está sua unidade. [...] Mas o enredo não é a
experiência concreta que é recriada no leitor pela obra, seja ela um poema,
peça teatral, seja um romance; é apenas seu arcabouço ou talvez o seu cenário.
Ele representa a unidade da obra, a qual está precisamente na experiência
mesma, assim como a síntese lógica do sentido de uma obra expositiva representa
o argumento do todo.
3.
Não basta apenas reduzir o todo à sua unidade
mais simples, é preciso também descobrir de que modo o todo é composto
de todas as suas partes. As partes de uma obra expositiva estão
relacionadas Às partes do problema inteiro: as soluções parciais contribuem
para a solução do todo. As partes da ficção são os diversos passos que o autor
dá para desenvolver seu enredo - os detalhes da caracterização e dos
acontecimentos. A maneira como as partes estão dispostas é diferente nos dois
casos. Na ciência e na filosofia, é preciso que elas estejam ordenadas
logicamente. Numa narrativa, as partes têm de caber de algum modo em uma
estrutura temporal, uma progressão que parte de um início, passa por um meio e
chega a um fim. Para conhecer a estrutura de uma narrativa, você tem de saber
onde ela começa - não necessariamente na primeira página, claro -, por onde ela
passa e para onde ela vai. É preciso que você conheça as diversas crises que
levam ao clímax, onde e como o clímax ocorre e o que acontece depois (por
'depois' não queremos dizer aquilo que acontece depois que a história acaba. Ninguém
pode saber isso. Queremos dizer apenas o que acontece, dentro da narrativa,
após o clímax.)
[...] Segundo, quais são as regras interpretativas para a leitura de ficção? [...]
1. Os elementos da ficção são seus episódios e
acontecimentos, seus personagens e pensamentos, falas, sentimentos e ações
deles. Cada uma dessas coisas é um elemento do mundo criado pelo autor. Ao
manipular esses elementos, o autor conta sua história. Elas são como os termos
de um discurso lógico. Assim como você precisa chegar a um acordo com um autor
expositivo, nesse caso você precisa ficar
a par dos detalhes dos acontecimentos e da caracterização. Você não terá
apreendido uma história enquanto não tiver familiaridade com seus personagens, enquanto
não tiver vivido através dos acontecimentos vividos por eles.
2. Nas proposições, os termos estão relacionados. Os
elementos da ficção estão relacionados pela cena ou pano de fundo total contra
o qual se destacam, em primeiro plano. O autor imaginativo, como vimos, cria um
mundo no qual seus personagens ‘vivem, movem-se e são’. A versão análoga, para
a ficção, da regra que lhe recomenda encontrar as proposições de um autor,
pode, portanto, ser enunciada desta maneira: familiarize-se com esse mundo imaginário; conheço-o como se fosse um
observador da cena; torne-se um dos membros de sua população, disposto a
ficar amigo dos personagens, capaz de participar com empatia da vida deles,
assim como faria em relação às ações e paixões de um amigo. Se você conseguir
fazer isso, os elementos da ficção terão deixado de ser peças isoladas, movidas
mecanicamente num tabuleiro. Você terá encontrado as conexões que lhes dão vida
como membros de uma sociedade viva.
3.
[...] Você se familiarizou com os personagens.
Você se reuniu a eles no mundo imaginário em que vivem, deu seu consentimento
às leis de sua sociedade, respirou seu ar, provou sua comida, viajou por suas
estradas. Agora você tem de segui-los em suas aventuras. A cena ou pano de
fundo, a ambiência social, é (como a proposição) um tipo de conexão estática entre os elementos da ficção. O
desenrolar do enredo (como os argumentos ou o raciocínio) é a conexão dinâmica.
Aristóteles disse que o enredo é a alma da narrativa. O enredo é sua vida. Para
ler bem um romance, é preciso que você
mantenha seu dedo no pulso da narrativa, que você acompanhe seu ritmo.
Terceiro, e último, quais são
as regras críticas para a leitura de
ficção? [...] Se, no caso das obras expositivas, a orientação era não criticar um
livro – não dizer se você concorda ou discorda – antes de primeiro dizer que o
entendeu, aqui o princípio é: não critique uma obra imaginativa enquanto
não tiver apreciado por completo a experiência que o autor quer que você tenha.
Disso decorre um importante corolário. O bom leitor de ficção não
questiona o mundo criado pelo autor – mundo recriado nele mesmo, leitor. [...]
disse Henry James em A arte da ficção:
‘nossa crítica se dirige apenas ao que ele faz com isso’.
[...] Nosso julgamento crítico no caso de livros expositivos diz
respeito à sua verdade, mas, ao
criticar as belas-letras, como a própria palavra sugere, consideramos sobretudo
sua beleza. A beleza de qualquer obra
de arte está relacionada ao prazer que ela nos proporciona quando a conhecemos
bem.
[...] [E]m sua primeira expressão [crítica], é mais provável que elas
[suas críticas] digam mais a respeito de você – de suas preferências e
inclinações – do que sobre o livro. Assim, para completar a tarefa da crítica, é preciso que você dê objetividade às suas
reações, apontando as coisas no livro que as provocaram. Você tem de deixar
de falar do que você gosta ou
desgosta e por que, e passar a falar do que é bom ou ruim no livro e por quê.
Quanto melhor você discernir em suas reflexões aquilo que lhe causa
prazer na leitura da ficção e da poesia, mais próximo estará de conhecer as
virtudes artísticas da obra literária em si mesma. Assim, pouco a pouco você
desenvolverá um padrão de crítica. E provavelmente encontrará muitos homens e
mulheres de gosto similar, que compartilham seus julgamentos críticos. Você
pode até descobrir algo que julgamos verdadeiro: que o bom gosto literário pode ser adquirido por qualquer pessoa que aprenda
a ler”.
***
Nota final quanto às regras gerais para a boa leitura de livros de ficção: [em inglês, “belas-artes” é “fine-arts”] “Uma obra de arte é ‘fina’ [fine] não por ser ‘refinada’ ou por
estar ‘finalizada’, mas porque é um fim (em latim, finis significa fim) em si mesma. Ela não tem de produzir um resultado
além de si própria. Ela é, como disse Emerson da beleza, sua própria razão de
existir.
[...] Se você sentir-se impelido a
fazer alguma coisa por causa de um livro [de ficção] que leu, pergunte-se se a
obra possui alguma asserção implícita que tenha produzido esse sentimento. A
poesia, em sentido estrito, não é o domínio das asserções, ainda que muitas
narrativas e muitos poemas contenham asserções mais ou menos escondidas. E não
há problema algum em prestar atenção nelas, em reagir a elas. Mas é preciso que
você recorde que está prestando atenção em algo e reagindo a algo que não é a
narrativa ou o poema. Esses subsistem por si. Para lê-los bem, basta
experienciá-los”.
***
COMO LER NARRATIVAS
“A
primeira orientação que gostaríamos de oferecer a você para a leitura de uma
narrativa é essa: leia-a rápido e
entregue-se totalmente a ela. Idealmente, uma narrativa deveria ser lida
numa única sentada, ainda que isso raramente seja possível para pessoas
ocupadas que queiram ler romances extensos. Ainda assim, é possível
aproximar-se do ideal comprimindo a leitura de uma boa narrativa no menor tempo
possível. Caso contrário, você esquecerá o que aconteceu, a unidade do enredo
lhe escapará e você ficará perdido.
Alguns leitores, quando gostam muito
de um romance, querem saboreá-lo, demorar-se nele, estender sua leitura o
máximo possível. Mas nesse caso é provável que eles não estejam exatamente
lendo o livro, e sim satisfazendo seus sentimentos mais ou menos conscientes a
respeito dos acontecimentos e dos personagens. Voltaremos a isso em breve.
Leia rápido e entregue-se totalmente
– eis a nossa sugestão. Mencionamos a importância de deixar um livro
imaginativo mexer com você. Isso é o que queremos dizer com ‘entregue-se
totalmente’. Deixe os personagens entrarem em sua mente e em seu coração, suspenda sua incredulidade, se houver
alguma, a respeito dos acontecimentos. Não desaprove algo que um personagem
tenha feito, antes de entender por que ele fez aquilo – talvez, nem mesmo
depois. Faça o máximo de esforço para viver no mundo dele, não no seu; ali, as
coisas que ele faz podem ser perfeitamente compreensíveis. E não julgue o mundo
como um todo antes que você tenha certeza de que ‘viveu’ nele até o máximo de
sua capacidade.
Seguir essa regra permitirá que você
responda à primeira pergunta que se deve fazer a respeito de qualquer livro – ‘O
livro, como um todo, é sobre o quê?’. A menos que você leia rápido, não
conseguirá enxergar a unidade da narrativa. A menos que leia intensamente, não
conseguirá perceber os detalhes.
Os termos de uma narrativa, como
observamos, são seus personagens e acontecimentos. É preciso que você se
familiarize com eles e seja capaz de enumerá-los. Aqui, porém, cabe um aviso.
Tomando Guerra e Paz [de Liev Tolstoi]
como exemplo, muitos leitores iniciam esse grande romance e ficam desesperados
com o grande número de personagens aos quais são apresentados, sobretudo porque
eles têm nomes estranhos. Logo esses leitores desistem do livro, crentes de que
jamais serão capazes de distinguir todas as complicadas relações, de saber quem
é quem. Isso vale para qualquer romance extenso – e, se o romance for bom
mesmo, queremos que ele seja o mais longo possível.
Nem sempre ocorre a esses leitores
de ânimo fraco que acontece com eles a mesma coisa quando se mudam de cidade,
ou para outro bairro, quando vão para uma nova escola ou para um novo trabalho,
ou mesmo quando chegam a uma festa. Nessas circunstâncias, eles não desistem;
sabem que após um breve período, conseguirão distingui indivíduos da massa, que
farão amigos na multidão desfigurada dos colegas de trabalho, dos colegas de escola
ou dos convidados da festa. [...] Acontece a mesma coisa num romance. Não
devemos esperar ser capazes de lembrar o nome de cada personagem; muitos deles
são apenas pessoas de fundo, cuja função é provocar as ações dos personagens
principais. Porém, quando terminamos Guerra
e Paz ou qualquer outro romance extenso, sabemos quem é importante, e não
esquecemos. [...]
Apesar da multidão de
acontecimentos, também descobrimos rapidamente o que é importante. Os autores normalmente ajudam muito nesse
quesito; eles não querem que o leitor perca aquilo que é essencial para o
desenrolar do enredo, por isso destacam-no de várias maneiras. Mas o principal
é que você não fique nervoso se as
coisas não estiverem claras desde o início. Uma narrativa é como a vida:
nesta, não esperamos compreender os acontecimentos na hora que eles ocorrem, ao
menos não com total clareza; mas, olhando em retrospecto, nós os compreendemos.
Assim, o leitor de uma narrativa, olhando em retrospecto para ela após terminá-la,
compreende a relação entre os eventos e a ordem das ações.
Tudo isso se resume ao mesmo
princípio: é preciso terminar de ler uma
narrativa para poder dizer que ela foi bem lida. Paradoxalmente, porém, uma
narrativa deixa de ser semelhante à vida na sua última página. A vida continua,
mas a narrativa não. Seus personagens não têm vitalidade fora do livro e aquilo
que você imagina que aconteceu com eles antes da primeira página e depois da
última vale tanto quanto a opinião de qualquer outro leitor. Na realidade,
essas especulações não fazem sentido. Já escreveram prelúdios a Hamlet, todos ridículos. [...] Ficamos
satisfeitos com as criações de Shakespeare e Tolstoi em parte porque elas são
limitadas no tempo. Não precisamos de mais.
A grande maioria dos livros são
narrativas de algum tipo. As pessoas que não sabem ler escutam narrativas. Nós
até as inventamos. A ficção parece uma necessidade humana. Por quê?
Uma razão pela qual a ficção é uma
necessidade humana é que ela satisfaz muitas necessidades conscientes e
inconscientes. Ela seria importante se tocasses apenas a mente consciente, como
a escrita expositiva. Mas a ficção também é importante porque, além disso, toca
o inconsciente.
No nível mais simples – e uma
discussão sobre esse assunto pode ser muito complexa –, gostamos ou desgostamos
de certos tipos de pessoas mais do que de outras e nem sempre sabemos o porquê.
Se, num romance, essas pessoas forem recompensadas ou punidas, o livro poderá
levar a uma mobilização mais forte, a favor ou contra do que se fosse provocada
apenas pelos seus méritos artísticos.
[...] Assim, ao criticar ficção
precisamos ter cuidado para distinguir
os livros que satisfazem nossas próprias necessidades inconscientes –
aqueles que nos fazem dizer: ‘gosto desse livro, mas não sei bem por quê’ –
daqueles que satisfazem as profundas
necessidades inconscientes de quase todo o mundo. Os últimos são sem dúvida
as grandes narrativas, aquelas que sobrevivem por gerações e séculos. Enquanto
o homem for homem, elas continuarão a satisfazê-lo [...]”.
UMA NOTA SOBRE OS ÉPICOS
Talvez
os livros mais celebrados, mas provavelmente menos lidos, da grande tradição do
mundo ocidental sejam os grandes poemas épicos, especialmente a Ilíada e a Odisseia, de Homero, a Eneida
de Virgílio, A Divina Comédia de
Dante e o Paraíso Perdido de Milton.
Esse paradoxo pede um comentário.
A julgar pelo pequeno número dos que
foram concluídos com sucesso nos últimos 2.500 anos, parece que nada é mais
difícil de escrever do que um longo poema épico. Não por falta de tentativas:
centenas de épicos foram iniciados, e alguns, como o Prelude de Wordsworth e o Don
Juan de Byron, atingiram tamanhos consideráveis sem que jamais fossem
terminados. Assim, é preciso honrar o poeta que continua trabalhando até
terminar. É preciso honrar mais ainda o poeta que produza uma obra que tenha as
qualidades das cinco aqui mencionadas. Todavia, elas certamente não são fáceis
de ler.
Não é só porque foram escritas em
verso; [...]. A dificuldade parece estar antes em sua grandeza, na abordagem de
seu assunto. Qualquer um desses grandes épicos faz enormes exigências ao leitor
– exigências de atenção, envolvimento e imaginação. O esforço necessário para
lê-los é, de fato, imenso.
A maioria de nós não tem idéia do
que está perdendo por não fazer esse esforço. As recompensas advindas de uma
boa leitura – uma leitura analítica, diríamos – desses épicos são pelo menos
tão grandes quanto as que vêm da leitura de quaisquer outros livros;
certamente, de outros livros de ficção. Infelizmente, porém, aqueles que não
leem bem esses livros não têm acesso a tais recompensas.
Esperamos que você tente ler esses
cinco grandes poemas épicos e que consiga chegar ao fim de todos eles. Temos
certeza de que não se decepcionará. E você ainda terá outra satisfação. Homero,
Virgílio, Dante e Milton são os autores que todo bom poeta leu, isso para não
falar de outros autores. Formam, com a Bíblia, a espinha dorsal de qualquer
programa sério de leitura”.