terça-feira, 31 de março de 2015

Interlúdio: canal do ConaLit

Para aproveitar a pequena pausa no nosso itinerário de estudo e leitura: 
  • o ConaLit (Congresso Nacional de Literatura e História Pessoal) é um congresso online cujo intuito é mostrar de que modo as grandes histórias da literatura podem transformar a história pessoal do leitor. O canal do ConaLit no YouTube, que contém um punhado de preciosos depoimentos a respeito do assunto, pode ser visitado através do link: http://tinyurl.com/p924rxj.
  • Dentre os relatos mais interessantes, encontra-se esta clara e breve demonstração de como se deve ler a fim de que se possa tirar o melhor proveito da leitura, feita pelo professor, escritor e crítico literário Rodrigo Gurgel: http://tinyurl.com/pxeeeor.
Os vídeos são recomendadíssimos.

quinta-feira, 26 de março de 2015

Como ler literatura imaginativa

Quanto à leitura de livros de literatura imaginativa, ou seja, de ficção, Mortimer ADLER nos diz o seguinte:

“O problema de saber como ler literatura imaginativa é intrinsecamente muito mais difícil do que o de saber como ler livros expositivos. [...] Com base em nossa experiência como educadores, sabemos como as pessoas perdem a língua na hora de apontar aquilo de que gostaram num romance. Para elas, é perfeitamente claro que gostaram do livro, mas não conseguem descrever a satisfação que sentiram nem dizer o que é que havia ali que lhes causou prazer. [...] Uma leitura crítica de qualquer coisa depende do quanto alguém consegue apreendê-la. Aqueles que não conseguem dizer por que gostaram de um romance provavelmente não ultrapassaram suas mais óbvias superfícies. [...] Fundamentalmente, a literatura imaginativa mais deleita do que ensina. É muito mais fácil deleitar-se do que aprender, mas é muito mais difícil saber de onde veio o deleite. A beleza é mais difícil de analisar do que a verdade.

COMO NÃO LER LITERATURA IMAGINATIVA

[...] Livros expositivos buscam transmitir conhecimento - conhecimento a respeito de experiências que o leitor teve ou poderia ter tido. Os imaginativos buscam comunicar a experiência mesma - e, se conseguem, dão ao leitor algo com que se deleitar. Por causa de suas intenções distintas, os dois tipos de obras têm apelos diferentes para o intelecto e para a imaginação.

Temos a experiência das coisas pelo exercício de nossos sentidos e de nossa imaginação. Para saber algo, temos de usar nossas capacidades de julgamento e raciocínio, que são intelectuais. Isso não significa que podemos pensar sem usar nossa imaginação, tampouco que a experiência sensorial esteja sempre totalmente divorciada da intuição racional ou da reflexão. A questão é só de ênfase. A ficção tem apelo primário para a imaginação. Essa é uma das razões para chamá-la de literatura imaginativa, em contraste com a ciência e a filosofia, que são intelectuais.

Esse fato a respeito da literatura imaginativa leva àquela que é provavelmente a mais importante das instruções negativas que gostaríamos de dar. Não tente resistir ao efeito que uma obra de literatura imaginativa tem sobre você.

Discutimos longamente a importância de ler de modo ativo. Isso vale para todos os livros, mas vale de maneiras muito diferentes para obras expositivas e obras poéticas. O leitor das primeiras tem de ser como uma ave de rapina, sempre alerta, sempre pronto para dar o bote. O tipo de atividade apropriado para a leitura de poesia e ficção não é o mesmo. É uma espécie de ação passiva, se é que podemos falar assim, ou melhor, uma paixão ativa. Ao ler uma narrativa, temos de agir de modo a deixar que ela aja sobre nós. Temos de permitir que ela nos comova, temos de deixá-la fazer o que quer que ela queira fazer conosco. Temos de ficar abertos para ela.

[obs.: “Uma peça de teatro é como um sonho acordado dirigido”, o que vale também para um livro de ficção. Ambos requerem aquilo que Samuel Taylor Coleridge chamou de “suspension of disbelief”, a suspensão da incredulidade – ou seja, a disposição prévia a aceitar os ocorridos conforme eles ocorrem.]

[...] De qualquer modo, as regras para a leitura de uma grande obra de arte literária devem ter como finalidade ou objetivo nada menos do que essa experiência profunda. Cabe às regras eliminar tudo aquilo que nos impede de sentir tão profundamente quanto nos for possível.

[...] Por causa de seus objetivos radicalmente diversos, esses dois tipos de escrita necessariamente usam a linguagem de modo diferente. O autor imaginativo tenta maximizar as ambiguidades latentes das palavras, para ver se consegue alcançar toda a riqueza e toda a força inerentes a seus múltiplos sentidos. Ele toma as metáforas como unidades de sua construção do mesmo modo que o autor lógico usa as palavras afiadas à exatidão de um único sentido. Dante disse que A Divina Comédia deveria ser lida como se tivesse sentidos diversos, porém relacionados; isso se aplica, de modo geral, à poesia e à ficção.

[obs.: Os quatro sentidos de um texto, segundo Dante Alighieri em sua obra Convívio, são: literal (o semântico imediato, que não ultrapassa a letra da narrativa), alegórico (o figurativo e, de certa forma, metafórico, que se encontra sob o manto da narrativa), moral (o do qual se pode tirar orientações de conduta) e anagógico (ou o supra-sentido, que é quando se expõe espiritualmente o escrito, o qual, pelas coisas significadas, significa as sublimes coisas do plano da eternidade). Cf. http://grupotempo.com.br/tex_convivio21.html]

[...] a escrita imaginativa depende tanto daquilo que é sugerido quanto daquilo que é dito. A multiplicação de metáforas praticamente coloca mais conteúdo entre as linhas do que nas palavras que estão nelas. Em sua totalidade, o poema, o conto e o romance dizem algo que nenhuma de suas palavras diz ou pode dizer.

Desse fato, tiramos outra instrução negativa. Não procure termos, proposições ou argumentos na literatura imaginativa. Esses recursos são lógicos, não poéticos.

[...] Claro que podemos aprender com a literatura imaginativa, com poemas, narrativas e sobretudo, talvez, com peças teatrais - mas não no mesmo sentido em que aprendemos com livros científicos e filosóficos. Aprendemos com a experiência - a experiência que temos no curso de nossa vida cotidiana. Assim, também, podemos aprender com as experiências substitutas, ou criadas artisticamente, que a ficção produz em nossa imaginação. Nesse sentido, os poemas e as narrativas tanto ensinam quanto provocam deleite.

[...] Por fim, uma última regra negativa. Não critique a ficção usando os critérios de verdade e coerência que são devidamente aplicados à comunicação do conhecimento. A 'verdade' de uma boa narrativa é sua verossimilhança, sua probabilidade intrínseca ou plausibilidade. A história tem de ser aceitável, mas não precisa descrever os fatos da vida ou da sociedade de maneira verificável por meio de experimentos ou de pesquisas. Séculos atrás, Aristóteles observava que 'o mesmo padrão de correção não vale para a poesia e para a política', nem, aliás, para a física ou para a psicologia. Devemos criticar erros geográficos ou inexatidões anatômicas quando o livro se apresenta como um tratado desses assuntos. Mas equívocos factuais não maculam uma narrativa, desde que o narrador consiga cercá-los de plausibilidade. Quando lemos um livro de história, em algum sentido queremos a verdade, e temos razão em reclamar se não a obtivermos. Quando lemos um romance, queremos uma narrativa que seja verdadeira apenas no sentido de que ela poderia ter acontecido no mundo de personagens e acontecimentos que o romancista criou e recriou em nós.

[Subjacente aos escritos de Aristóteles sobre discurso e linguagem, há uma idéia organizadora medular (cf. CARVALHO, Olavo de. “Aristóteles em nova perspectiva: introdução à Teoria dos Quatro Discursos”, VIDE Editorial, 2013): há quatro tipos diferentes de discurso humano; ou seja, o homem, ao falar, pode querer quatro coisas distintas: levantar possibilidades (poesia = versa sobre aquilo que é possível), convencer quanto à verossimilhança de algo (retórica = dentre as várias possibilidades existentes, versa sobre aquilo que é verossímil que seja assim, que parece ser de fato assim), discutir a probabilidade mais razoável de tal coisa (dialética = confronta as várias hipóteses a respeito de algo e versa sobre aquilo que é provável ser, com boas e razoáveis chances, o verdadeiro) ou ainda expor algo que já se sabe com certeza (lógica = versa sobre o que é certo e se pode demonstrar com certeza absoluta, posto que já foi verificado - resistiu ao confrontamento dialético -, foi entendido e explicado). Cf. também: http://grupotempo.com.br/tex_arist.html]

REGRAS GERAIS PARA A LEITURA DE LITERATURA IMAGINATIVA

[...] Existem, como vimos, três grupos dessas regras. O primeiro grupo é composto das regras para descobrir a unidade e a relação estrutural entre o todo e as partes; o segundo, das regras para a identificação e interpretação dos termos, proposições e argumentos que compõem o livro; o terceiro, das regras para criticar a doutrina do autor, de modo que consigamos concordar com ele ou discordar de modo inteligente. Esses três grupos de regras são chamados de estruturaisinterpretativos críticos. Analogamente, é possível apontar grupos semelhantes de regras para guiar-nos na leitura de poemas, romances e peças.

Primeiro, podemos traduzir as regras estruturais - as regras do delineamento - em seus análogos ficcionais desta maneira:

1.     É preciso classificar uma obra de literatura imaginativa de acordo com sua espécie. No poema, uma história aparece basicamente como uma experiência emocional individual, ao passo que romances e peças teatrais têm tramas muito mais complicadas, que envolvem muitos personagens, as ações e reações de uns em relação aos outros, além das emoções que sentem no processo. Todos sabem, além disso, que uma peça teatral é diferente de um romance porque sua narração se dá inteiramente por meio de ações e falas. [...] Todas essas diferenças na maneira de escrever levam a diferenças na receptividade do leitor. Assim, é preciso que você perceba imediatamente qual tipo de ficção está lento.

2.      É preciso apreender a unidade da obra inteira. É possível saber se você fez isso ou não vendo se consegue expressar essa unidade em uma frase ou duas. Em última instância, a unidade de uma obra expositiva está no principal problema que ela tenta resolver. Assim, sua unidade pode ser enunciada pela formulação dessa questão ou pelas proposições que a respondem. A unidade da ficção também está relacionada ao problema com que o autor deparou, mas vimos que esse problema é a tentativa de transmitir uma experiência concreta e por isso a unidade de uma narrativa está sempre em seu enredo. Você só terá apreendido a história inteiria quando conseguir resumir seu enredo em uma vreve narração, não em uma proposição ou argumento. Nisso está sua unidade. [...] Mas o enredo não é a experiência concreta que é recriada no leitor pela obra, seja ela um poema, peça teatral, seja um romance; é apenas seu arcabouço ou talvez o seu cenário. Ele representa a unidade da obra, a qual está precisamente na experiência mesma, assim como a síntese lógica do sentido de uma obra expositiva representa o argumento do todo.

3.      Não basta apenas reduzir o todo à sua unidade mais simples, é preciso também descobrir de que modo o todo é composto de todas as suas partes. As partes de uma obra expositiva estão relacionadas Às partes do problema inteiro: as soluções parciais contribuem para a solução do todo. As partes da ficção são os diversos passos que o autor dá para desenvolver seu enredo - os detalhes da caracterização e dos acontecimentos. A maneira como as partes estão dispostas é diferente nos dois casos. Na ciência e na filosofia, é preciso que elas estejam ordenadas logicamente. Numa narrativa, as partes têm de caber de algum modo em uma estrutura temporal, uma progressão que parte de um início, passa por um meio e chega a um fim. Para conhecer a estrutura de uma narrativa, você tem de saber onde ela começa - não necessariamente na primeira página, claro -, por onde ela passa e para onde ela vai. É preciso que você conheça as diversas crises que levam ao clímax, onde e como o clímax ocorre e o que acontece depois (por 'depois' não queremos dizer aquilo que acontece depois que a história acaba. Ninguém pode saber isso. Queremos dizer apenas o que acontece, dentro da narrativa, após o clímax.)

[...] Segundo, quais são as regras interpretativas para a leitura de ficção? [...]

1. Os elementos da ficção são seus episódios e acontecimentos, seus personagens e pensamentos, falas, sentimentos e ações deles. Cada uma dessas coisas é um elemento do mundo criado pelo autor. Ao manipular esses elementos, o autor conta sua história. Elas são como os termos de um discurso lógico. Assim como você precisa chegar a um acordo com um autor expositivo, nesse caso você precisa ficar a par dos detalhes dos acontecimentos e da caracterização. Você não terá apreendido uma história enquanto não tiver familiaridade com seus personagens, enquanto não tiver vivido através dos acontecimentos vividos por eles.

2.     Nas proposições, os termos estão relacionados. Os elementos da ficção estão relacionados pela cena ou pano de fundo total contra o qual se destacam, em primeiro plano. O autor imaginativo, como vimos, cria um mundo no qual seus personagens ‘vivem, movem-se e são’. A versão análoga, para a ficção, da regra que lhe recomenda encontrar as proposições de um autor, pode, portanto, ser enunciada desta maneira: familiarize-se com esse mundo imaginário; conheço-o como se fosse um observador da cena; torne-se um dos membros de sua população, disposto a ficar amigo dos personagens, capaz de participar com empatia da vida deles, assim como faria em relação às ações e paixões de um amigo. Se você conseguir fazer isso, os elementos da ficção terão deixado de ser peças isoladas, movidas mecanicamente num tabuleiro. Você terá encontrado as conexões que lhes dão vida como membros de uma sociedade viva.

3.      [...] Você se familiarizou com os personagens. Você se reuniu a eles no mundo imaginário em que vivem, deu seu consentimento às leis de sua sociedade, respirou seu ar, provou sua comida, viajou por suas estradas. Agora você tem de segui-los em suas aventuras. A cena ou pano de fundo, a ambiência social, é (como a proposição) um tipo de conexão estática entre os elementos da ficção. O desenrolar do enredo (como os argumentos ou o raciocínio) é a conexão dinâmica. Aristóteles disse que o enredo é a alma da narrativa. O enredo é sua vida. Para ler bem um romance, é preciso que você mantenha seu dedo no pulso da narrativa, que você acompanhe seu ritmo.

Terceiro, e último, quais são as regras críticas para a leitura de ficção? [...] Se, no caso das obras expositivas, a orientação era não criticar um livro – não dizer se você concorda ou discorda – antes de primeiro dizer que o entendeu, aqui o princípio é: não critique uma obra imaginativa enquanto não tiver apreciado por completo a experiência que o autor quer que você tenha.

Disso decorre um importante corolário. O bom leitor de ficção não questiona o mundo criado pelo autor – mundo recriado nele mesmo, leitor. [...] disse Henry James em A arte da ficção: ‘nossa crítica se dirige apenas ao que ele faz com isso’.

[...] Nosso julgamento crítico no caso de livros expositivos diz respeito à sua verdade, mas, ao criticar as belas-letras, como a própria palavra sugere, consideramos sobretudo sua beleza. A beleza de qualquer obra de arte está relacionada ao prazer que ela nos proporciona quando a conhecemos bem.

[...] [E]m sua primeira expressão [crítica], é mais provável que elas [suas críticas] digam mais a respeito de você – de suas preferências e inclinações – do que sobre o livro. Assim, para completar a tarefa da crítica, é preciso que você dê objetividade às suas reações, apontando as coisas no livro que as provocaram. Você tem de deixar de falar do que você gosta ou desgosta e por que, e passar a falar do que é bom ou ruim no livro e por quê.

Quanto melhor você discernir em suas reflexões aquilo que lhe causa prazer na leitura da ficção e da poesia, mais próximo estará de conhecer as virtudes artísticas da obra literária em si mesma. Assim, pouco a pouco você desenvolverá um padrão de crítica. E provavelmente encontrará muitos homens e mulheres de gosto similar, que compartilham seus julgamentos críticos. Você pode até descobrir algo que julgamos verdadeiro: que o bom gosto literário pode ser adquirido por qualquer pessoa que aprenda a ler”.

***

Nota final quanto às regras gerais para a boa leitura de livros de ficção: [em inglês, “belas-artes” é “fine-arts”] “Uma obra de arte é ‘fina’ [fine] não por ser ‘refinada’ ou por estar ‘finalizada’, mas porque é um fim (em latim, finis significa fim) em si mesma. Ela não tem de produzir um resultado além de si própria. Ela é, como disse Emerson da beleza, sua própria razão de existir.

[...] Se você sentir-se impelido a fazer alguma coisa por causa de um livro [de ficção] que leu, pergunte-se se a obra possui alguma asserção implícita que tenha produzido esse sentimento. A poesia, em sentido estrito, não é o domínio das asserções, ainda que muitas narrativas e muitos poemas contenham asserções mais ou menos escondidas. E não há problema algum em prestar atenção nelas, em reagir a elas. Mas é preciso que você recorde que está prestando atenção em algo e reagindo a algo que não é a narrativa ou o poema. Esses subsistem por si. Para lê-los bem, basta experienciá-los”.

***

COMO LER NARRATIVAS

“A primeira orientação que gostaríamos de oferecer a você para a leitura de uma narrativa é essa: leia-a rápido e entregue-se totalmente a ela. Idealmente, uma narrativa deveria ser lida numa única sentada, ainda que isso raramente seja possível para pessoas ocupadas que queiram ler romances extensos. Ainda assim, é possível aproximar-se do ideal comprimindo a leitura de uma boa narrativa no menor tempo possível. Caso contrário, você esquecerá o que aconteceu, a unidade do enredo lhe escapará e você ficará perdido.

Alguns leitores, quando gostam muito de um romance, querem saboreá-lo, demorar-se nele, estender sua leitura o máximo possível. Mas nesse caso é provável que eles não estejam exatamente lendo o livro, e sim satisfazendo seus sentimentos mais ou menos conscientes a respeito dos acontecimentos e dos personagens. Voltaremos a isso em breve. 

Leia rápido e entregue-se totalmente – eis a nossa sugestão. Mencionamos a importância de deixar um livro imaginativo mexer com você. Isso é o que queremos dizer com ‘entregue-se totalmente’. Deixe os personagens entrarem em sua mente e em seu coração, suspenda sua incredulidade, se houver alguma, a respeito dos acontecimentos. Não desaprove algo que um personagem tenha feito, antes de entender por que ele fez aquilo – talvez, nem mesmo depois. Faça o máximo de esforço para viver no mundo dele, não no seu; ali, as coisas que ele faz podem ser perfeitamente compreensíveis. E não julgue o mundo como um todo antes que você tenha certeza de que ‘viveu’ nele até o máximo de sua capacidade.

Seguir essa regra permitirá que você responda à primeira pergunta que se deve fazer a respeito de qualquer livro – ‘O livro, como um todo, é sobre o quê?’. A menos que você leia rápido, não conseguirá enxergar a unidade da narrativa. A menos que leia intensamente, não conseguirá perceber os detalhes.

Os termos de uma narrativa, como observamos, são seus personagens e acontecimentos. É preciso que você se familiarize com eles e seja capaz de enumerá-los. Aqui, porém, cabe um aviso. Tomando Guerra e Paz [de Liev Tolstoi] como exemplo, muitos leitores iniciam esse grande romance e ficam desesperados com o grande número de personagens aos quais são apresentados, sobretudo porque eles têm nomes estranhos. Logo esses leitores desistem do livro, crentes de que jamais serão capazes de distinguir todas as complicadas relações, de saber quem é quem. Isso vale para qualquer romance extenso – e, se o romance for bom mesmo, queremos que ele seja o mais longo possível.

Nem sempre ocorre a esses leitores de ânimo fraco que acontece com eles a mesma coisa quando se mudam de cidade, ou para outro bairro, quando vão para uma nova escola ou para um novo trabalho, ou mesmo quando chegam a uma festa. Nessas circunstâncias, eles não desistem; sabem que após um breve período, conseguirão distingui indivíduos da massa, que farão amigos na multidão desfigurada dos colegas de trabalho, dos colegas de escola ou dos convidados da festa. [...] Acontece a mesma coisa num romance. Não devemos esperar ser capazes de lembrar o nome de cada personagem; muitos deles são apenas pessoas de fundo, cuja função é provocar as ações dos personagens principais. Porém, quando terminamos Guerra e Paz ou qualquer outro romance extenso, sabemos quem é importante, e não esquecemos. [...]

Apesar da multidão de acontecimentos, também descobrimos rapidamente o que é importante. Os autores normalmente ajudam muito nesse quesito; eles não querem que o leitor perca aquilo que é essencial para o desenrolar do enredo, por isso destacam-no de várias maneiras. Mas o principal é que você não fique nervoso se as coisas não estiverem claras desde o início. Uma narrativa é como a vida: nesta, não esperamos compreender os acontecimentos na hora que eles ocorrem, ao menos não com total clareza; mas, olhando em retrospecto, nós os compreendemos. Assim, o leitor de uma narrativa, olhando em retrospecto para ela após terminá-la, compreende a relação entre os eventos e a ordem das ações.

Tudo isso se resume ao mesmo princípio: é preciso terminar de ler uma narrativa para poder dizer que ela foi bem lida. Paradoxalmente, porém, uma narrativa deixa de ser semelhante à vida na sua última página. A vida continua, mas a narrativa não. Seus personagens não têm vitalidade fora do livro e aquilo que você imagina que aconteceu com eles antes da primeira página e depois da última vale tanto quanto a opinião de qualquer outro leitor. Na realidade, essas especulações não fazem sentido. Já escreveram prelúdios a Hamlet, todos ridículos. [...] Ficamos satisfeitos com as criações de Shakespeare e Tolstoi em parte porque elas são limitadas no tempo. Não precisamos de mais.

A grande maioria dos livros são narrativas de algum tipo. As pessoas que não sabem ler escutam narrativas. Nós até as inventamos. A ficção parece uma necessidade humana. Por quê?

Uma razão pela qual a ficção é uma necessidade humana é que ela satisfaz muitas necessidades conscientes e inconscientes. Ela seria importante se tocasses apenas a mente consciente, como a escrita expositiva. Mas a ficção também é importante porque, além disso, toca o inconsciente.

No nível mais simples – e uma discussão sobre esse assunto pode ser muito complexa –, gostamos ou desgostamos de certos tipos de pessoas mais do que de outras e nem sempre sabemos o porquê. Se, num romance, essas pessoas forem recompensadas ou punidas, o livro poderá levar a uma mobilização mais forte, a favor ou contra do que se fosse provocada apenas pelos seus méritos artísticos.

[...] Assim, ao criticar ficção precisamos ter cuidado para distinguir os livros que satisfazem nossas próprias necessidades inconscientes – aqueles que nos fazem dizer: ‘gosto desse livro, mas não sei bem por quê’ – daqueles que satisfazem as profundas necessidades inconscientes de quase todo o mundo. Os últimos são sem dúvida as grandes narrativas, aquelas que sobrevivem por gerações e séculos. Enquanto o homem for homem, elas continuarão a satisfazê-lo [...]”.

UMA NOTA SOBRE OS ÉPICOS

Talvez os livros mais celebrados, mas provavelmente menos lidos, da grande tradição do mundo ocidental sejam os grandes poemas épicos, especialmente a Ilíada e a Odisseia, de Homero, a Eneida de Virgílio, A Divina Comédia de Dante e o Paraíso Perdido de Milton. Esse paradoxo pede um comentário.

A julgar pelo pequeno número dos que foram concluídos com sucesso nos últimos 2.500 anos, parece que nada é mais difícil de escrever do que um longo poema épico. Não por falta de tentativas: centenas de épicos foram iniciados, e alguns, como o Prelude de Wordsworth e o Don Juan de Byron, atingiram tamanhos consideráveis sem que jamais fossem terminados. Assim, é preciso honrar o poeta que continua trabalhando até terminar. É preciso honrar mais ainda o poeta que produza uma obra que tenha as qualidades das cinco aqui mencionadas. Todavia, elas certamente não são fáceis de ler.

Não é só porque foram escritas em verso; [...]. A dificuldade parece estar antes em sua grandeza, na abordagem de seu assunto. Qualquer um desses grandes épicos faz enormes exigências ao leitor – exigências de atenção, envolvimento e imaginação. O esforço necessário para lê-los é, de fato, imenso.

A maioria de nós não tem idéia do que está perdendo por não fazer esse esforço. As recompensas advindas de uma boa leitura – uma leitura analítica, diríamos – desses épicos são pelo menos tão grandes quanto as que vêm da leitura de quaisquer outros livros; certamente, de outros livros de ficção. Infelizmente, porém, aqueles que não leem bem esses livros não têm acesso a tais recompensas.

Esperamos que você tente ler esses cinco grandes poemas épicos e que consiga chegar ao fim de todos eles. Temos certeza de que não se decepcionará. E você ainda terá outra satisfação. Homero, Virgílio, Dante e Milton são os autores que todo bom poeta leu, isso para não falar de outros autores. Formam, com a Bíblia, a espinha dorsal de qualquer programa sério de leitura”.

Segunda leitura: "Odisséia", de Homero

Segue um breve RESUMO da trama da “ODISSEIA”:

Telêmaco, filho de Ulisses (Odisseu), tinha apenas um mês de idade quando seu pai saiu para combater em Troia. No ponto em que a Odisséia começa, já se passaram dez anos desde o fim da Guerra de Troia – que, por sua vez, durou dez anos. Telêmaco tem, portanto, 20 anos e está dividindo a casa de seu pai ausente, localizada na ilha de Ítaca, com sua mãe, Penélope, e uma multidão de 108 arruaceiros, “os pretendentes”, cuja meta é persuadir Penélope de que seu marido está morto e que ela deve se casar com um deles.

Atena, deusa protetora de Ulisses, disfarçada de Mentes, um chefe táfio, visita Telêmaco e o encoraja a procurar notícias de seu pai. Naquela mesma noite, Atena, disfarçada de Telêmaco, encontra um navio e uma tripulação para o verdadeiro Telêmaco. Ele, no dia seguinte, acompanhado por Atena (agora disfarçada como seu amigo, Mentor), parte para a Grécia continental. Lá é recebido por Nestor, o mais respeitável dos guerreiros gregos de Troia. De lá, Telêmaco parte por terra, acompanhado pelo filho de Nestor, para Esparta, onde encontra Menelau e Helena, já reconciliados; estes descrevem como retornaram à Grécia depois de uma longa viagem, que passou pelo Egito e pela ilha mágica de Faros, onde Menelau encontrou o velho deus do mar Proteu, que lhe contou que Ulisses havia sido aprisionado pela ninfa Calipso. Telêmaco também descobre o destino do irmão de Menelau, Agamêmnon, rei e líder dos gregos em Troia, assassinado logo depois de retornar ao seu lar por sua esposa Clitemnestra e seu amante Egisto.

A obra passa então a narrar a história de Ulisses, que passou sete anos no cativeiro, na ilha de Calipso. Ela é persuadida a libertá-lo pelo deus mensageiro Hermes, enviado por Zeus. Ulisses constrói uma jangada e recebe roupas, comida e bebida de Calipso; acaba naufragando, no entanto, por obra de Poseidon, e é obrigado a nadar até a ilha de Esquéria onde conhece a jovem Nausícaa, que o encoraja a procurar a hospitalidade de seus pais. Ulisses, que inicialmente não se identifica, é bem recebido; permanece no local por diversos dias, participa de um pentatlo e ouve o cantor cego Demódoco declamar poemas narrativos. Um deles conta sobre o Cavalo de Troia, um estratagema no qual Ulisses havia desempenhado um papel crucial. Incapaz de esconder suas emoções ao narrar o episódio, Ulisses finalmente revela sua identidade e começa a contar a fantástica história de seu retorno à Troia. A narrativa, a partir daí, passa a ser majoritariamente recordativa.

Naqueles dias, após uma incursão pirática em Ismara, na terra dos cicones, Ulisses e seus doze navios foram desviados do curso por tempestades. Foram então capturados pelo ciclope Polifemo, do qual escapam apenas após Ulisses cegá-lo com um pedaço afiado de madeira. São recebidos por Éolo, senhor dos ventos, que dá a Ulisses um saco de couro contendo todos os ventos (com a exceção do vento oeste), um presente que deveria lhe ter garantido a viagem de volta para casa; seus marinheiros, no entanto, abrem de maneira tola o saco enquanto ele dormia, pensando que continha ouro; todo o vento voou para fora do saco, e a tempestade resultante mandou os navios de volta para onde haviam vindo, justo quando Ítaca havia acabado de aparecer no horizonte.

Após pedir em vão para que Éolo o ajudasse novamente, Ulisses e seus companheiros reembarcaram nos navios e viajaram até encontrar o canibal Lestrigão. O navio de Ulisses acaba sendo o único a sobreviver ao ataque, e acaba indo parar junto à deusa-bruxa Circe, que transforma metade dos seus homens em porcos, após alimentá-los com vinho e queijo. Hermes, que havia alertado Ulisses a respeito de Circe, dá a ele uma droga que o fazia resistente à magia de Circe. Esta, atraída por esta resistência, apaixonou-se por ele e libertou seus homens a seu pedido. Ulisses e sua tripulação permaneceram na ilha por um ano, durante o qual festejaram, beberam e realizaram banquetes incessantes.

Finalmente, os homens de Ulisses o convencem que é hora de partir para Ítaca; guiado pelas instruções de Circe, cruzam o oceano a atingem um porto na beira ocidental do mundo, onde Ulisses realiza sacrifícios aos mortos e invoca o espírito do velho profeta Tirésias para aconselhá-lo (Canto XI – Nekyia). Em seguida Ulisses encontra o espírito de sua própria mãe, que havia morrido de desgosto durante sua longa ausência; dela, descobre pela primeira vez notícias de sua própria casa e família, ameaçada pela cobiça dos pretendentes. Lá encontra também os espíritos de mulheres e homens famosos, entre eles Agamêmnon, que lhe informa sobre seu assassinato e lhe alerta sobre os perigos das mulheres.

Ao retornar à ilha de Circe, são aconselhados por ela sobre as etapas restantes de sua jornada. Após costearem a terra das Sereias, passam por entre Cila, um monstro de muitas cabeças, e o redemoinho Caribde, e chegam à ilha de Trinácia. Lá, os homens de Ulisses ignoram os avisos de Tirésias e Circe, e abatem o gado sagrado do deus-sol, Hélio; este sacrilégio lhes traz como punição um naufrágio, onde todos morrem afogados, com a exceção de Ulisses, que consegue chegar à ilha de Calipso, ninfa que o força a se tornar seu amante por sete anos, até que ele consegue escapar.

Depois de ouvir com grande atenção a história, os feácios, marinheiros experientes, concordam em ajudar Ulisses a voltar para casa. Deixam-no à noite, enquanto está em sono pesado, num porto escondido em Ítaca. Lá ele consegue chegar à casa de um de seus antigos escravos, o pastor de porcos Eumeu. Ulisses se disfarça como um mendigo vagante, para descobrir como estão as coisas em sua residência. Após jantar, conta aos trabalhadores da fazenda uma história fictícia sobre si, para não revelar sua identidade.

Enquanto isso, Telêmaco navega para casa, vindo de Esparta, fugindo de uma emboscada preparada pelos pretendentes. Desembarca na costa de Ítaca e se dirige à casa de Eumeu; lá, pai e filho se encontram, e Ulisses se identifica para o filho (embora ainda não para Eumeu), e decidem que os pretendentes devem ser mortos.

Telêmaco chega à sua casa primeiro; acompanhado por Eumeu, Ulisses retorna ao seu lar, ainda fingindo ser um mendigo, e presencia as arruaças dos pretendentes. Encontra-se com Penélope, e testa suas intenções com uma história inventada sobre seu nascimento em Creta onde, segundo ele, teria se encontrado com Ulisses e havia sido informado sobre as suas viagens recentes.

No dia seguinte, instigada por Atena, Penélope convence os pretendentes a competir por sua mão, numa competição de arco-e-flecha, utilizando o arco de Ulisses – que participa da competição, ainda disfarçado, e, após ser o único com força suficiente para dobrar o arco, a vence.

Ulisses passa então a disparar flechas contra os pretendentes; com a ajuda de Atena, Telêmaco, Eumeu e Filoteu, um pastor; todos são mortos. Ulisses então finalmente se revela para Penélope, que, hesitante, o aceita após ele descrevê-la a cama que teria construído para ela após se casarem.

No dia seguinte Ulisses e Telêmaco visitam a fazenda de seu velho pai, Laertes, que também só aceita sua identidade após ver Ulisses descrever corretamente o pomar que Laertes lhe dera certa vez.

Os cidadãos de Ítaca, no entanto, seguem Ulisses e Telêmaco ao longo da estrada, planejando vingar as mortes dos pretendentes, seus filhos. O líder do grupo afirma que Ulisses havia causado a morte de duas gerações de homens de Ítaca – seus marinheiros, nenhum dos quais havia sobrevivido à jornada de volta, e os pretendentes, que ele havia agora executado. A deusa Atena intervém pessoalmente, e convence ambos os lados a abandonar a vingança. Ítaca finalmente está em paz novamente. É o fim da Odisseia.

Estrutura dos cantos:
Cantos de I a IV:           Invocação, assembléia dos deuses e telemaquia
Cantos de V a VIII:      Odisseu na ilha de Calipso e entre os feácios
Cantos IX a XIII:          Aventuras de Odisseu após a guerra de Tróia
Cantos XIII e XIV:       Odisseu volta para Ítaca
Cantos XV a XVII:       Pai e filho
Cantos XVIII a XXII:   O fim dos pretendentes
Canto XXIII:                 Odisseu e Penélope
Canto XXIV:                 Odisseu e Laerte. Paz em Ítaca

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Otto Maria CARPEAUX nos diz o seguinte:

“[...] Na aparência, não há ligação entre o ‘Nostos’, a viagem de Ulisses pelo Mediterrâneo em busca da pátria, e o ‘Romance de Ítaca’, a expulsão dos pretendentes da fiel Penélope. O ‘Nostos’ é um grande conto de fadas: as aventuras de um capitão fantástico, entre lotófagos, ciclopes, sereias, faiacos, nas ilhas da Calipso e da Circe, entre os rochedos de Cilas e Caríbdis; é, ao mesmo tempo, pesadelo e sonho de felicidade de marinheiros gregos. O ‘Romance de Ítaca’ não é conto de fadas: é um quadro doméstico, quase burguês, descrito com o realismo de um comediógrafo parisiense do século XIX, com intervenções de realismo popular, desde a figura do pastor até o cão de Ulisses, que reconhece o dono e morre. Exatamente no meio, entre as duas partes, no canto XI, há a ‘Nekyia’, a descida de Ulisses ao Hades, onde encontra os mortos da guerra troiana lamentando a vida perdida. Com esse episódio as aventuras acabam. A partir desse momento o poeta dos heróis canta a realidade prosaica: a casa, a família, os criados e o cão. No reino da Morte, Ulisses encontra o caminho da vida. A ‘Nekya’, entre as aventuras fantásticas e o caminho de casa, serve para comemorar o fim sombrio de Troia e o destino trágico dos gregos, dos quais só Ulisses encontrará a paz final na vida de um aristocrata grego com os seus filhos, criados e animais domésticos. Com esse ‘realismo nobre’, confirma-se a unidade íntima entre a Ilíada e a Odisseia”.

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Os arquivos de texto e áudio a respeito desta leitura (apostila, cantos e a própria leitura feita em sala) encontram-se disponíveis na pasta de arquivos online através do seguinte link:

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quinta-feira, 19 de março de 2015

Primeira leitura: "Ilíada", de Homero

Otto Maria CARPEAUX nos diz o seguinte:

“A literatura grega, tão variada com respeito aos metros da versificação, estilos de expressão, gêneros e temperamentos, parece um pouco monótona quanto aos assuntos. Muitas vezes voltam nas peças teatrais os mesmos enredos, a poesia celebra sempre os mesmos ideais, os prosadores sempre se apóiam nas mesmas citações. A base da literatura grega continua, durante os séculos, sempre a mesma, e essa base é um ciclo de poesias épicas que constituem um cânone tradicional e invariável. A maior parte dessas epopeias e poemas estava ligada, de qualquer maneira, ao nome de um poeta lendário; nome que se encontra até hoje nas folhas de rosto das nossas edições da Ilíada e da Odisseia: o nome de Homero.

Nenhum autor clássico alcançou jamais fama tão indiscutida. [...] Homero é o maior dos poetas. Os gregos antigos consentiram, mas por outros motivos; porque nunca – senão nas últimas fases da decadência literária – um poeta grego pensou em imitar Homero. As epopeias homéricas eram consideradas como cânone fixo, ao qual não era lícito acrescentar outras epopeias, de origem mais moderna. A Ilíada e a Odisseia eram usadas, nas escolas gregas, como livros didáticos; não da maneira como nós outros fazemos ler aos meninos algumas grandes obras de poesia para educar-lhes o gosto literário; mas sim da maneira como se aprende de cor um catecismo. Para os antigos, Homero não era uma obra literária, leitura obrigatória dos estudantes e objeto de discussão crítica entre os homens de letras. Na Antiguidade também, assim como nos tempos modernos, Homero era indiscutido: mas não como epopeia, e sim como Bíblia. Era um Código. Versos de Homero serviam para apoiar opiniões literárias, teses filosóficas, sentimentos religiosos, sentenças dos tribunais, moções políticas. Versos de Homero citaram-se nos discursos dos advogados e estadistas, como argumentos irrefutáveis. “Homero”: isto significava a “tradição”, no sentido em que a Igreja Romana emprega a palavra, como norma de interpretação da doutrina e da vida.

[...] Homero fala de tudo o que é humano; inclui na vida humana os deuses, que têm feição nossa, mas também o lado infra-humano e até animal da nossa vida. As fadigas físicas, a comida, o amor nas suas expressões físicas, tudo entra em Homero [...] tudo parece dignificado, nobre, e não pela escolha de eufemismos, mas pelo emprego de adjetivos e comparações estereotipados. A monotonia aparente dessas repetições parece dizer-nos: vejam, a vida humana é sempre assim, é eternamente assim; e esse aspecto das coisas sub specie aeternitatis dignifica tudo, sem desfigurar jamais a verdade. Homero – ou como quer que se tenha chamado o poeta, não importa – consegue o milagre de dar vida verdadeira em fórmulas fixas, em clichês. Não importa se isso é resultado das capacidades inatas de um povo genial ou do trabalho de um gênio poético. Revela a presença de uma grande capacidade de estilização, da mesma que se mostra na composição das duas epopeias.

[...] ‘Homero’ é o próprio mundo grego. Nasceu com a civilização grega: a língua e o metro, o hexâmetro, nascem ao mesmo tempo. Pertencendo a uma época que é, do ponto de vista histórico, uma época primitiva, as epopeias homéricas revelam simultaneamente a existência de uma literatura perfeitamente amadurecida. Não é possível determinar com exatidão a época em que as epopeias homéricas foram redigidas. [...] Não se conseguiu, porém, estabelecer um acordo perfeito entre as análises filológicas e as descobertas arqueológicas. A Ilíada descreve fielmente a época feudal da Grécia, e o conteúdo da Odisseia está em relação íntima com a época fenícia da civilização mediterrânea. Mas não é possível distinguir entre a realidade histórica e o panorama poético. A época mais provável das origens homéricas situa-se entre o século IX e o século VII antes da nossa era. [...] Homero compreende tudo: sol e noite, tragédia e humor, universo grego inteiro, do qual é a bíblia e o cânone ideal. Cânone estético e religioso, pedagógico e político; uma realidade completa, mas não o reflexo imediato de uma realidade. Se Homero só fosse este reflexo, teria perdido toda a importância com a queda da civilização grega. Mas era já, para os gregos, uma imagem ideal; e não desapareceu nunca. O equilíbrio entre realismo e idealidade é o que confere aos poemas homéricos a vida eterna: a bíblia estética, religiosa e política dos gregos podia transformar-se em bíblia literária da civilização ocidental inteira.

[...] A Ilíada está cheia de ruído de batalhas e lutas pessoais. À primeira vista, é difícil distinguir os pormenores; tudo e todos parecem iguais, como nos quadros dos pintores florentinos do século XV, nos quais todas as figuras têm a mesma altura. A análise do enredo patenteia logo uma multiplicidade de episódios em torno dos personagens principais [...]”.


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Eis um resumo da trama de “ÍLÍADA”, pela edição da PENGUIN de 2013:

"O troiano Páris seduziu Helena, a esposa de Menelau, e levou-a para Ílion. Menelau recorreu a seu irmão Agamêmnon, e juntos eles organizaram uma expedição para resgatá-la. A Ilíada transcorre no último ano do sítio dos gregos a Ílion e se inicia com um desentendimento.

Agamêmnon, o comandante da força expedicionária grega, recebeu como butim a filha de um sacerdote local de Apolo. Obrigado a devolvê-la, exige uma substituta. Depois de uma briga furiosa com Aquiles e seu companheiro Pátroclo toma para si Briseida, o espólio de guerra de Aquiles, o que leva este e seu grande amigo Pátroclo a se retirarem da luta. A deusa Tétis, a mãe de Aquiles, arranca de Zeus, o soberano dos deuses, a promessa de que os gregos começarão a ser derrotados, para que Aquiles seja chamado de volta e se desfaça o agravo. Isso causa imediatamente problemas para Zeus com sua esposa Hera, que é favorável aos gregos (Canto I).

Nos Cantos II-VIII, Homero deixa de lado o desentendimento pontual e apresenta um panorama mais amplo: os combatentes gregos e troianos na terra e os deuses no Olimpo. Vemos Agamêmnon testar o moral das tropas e fazer um papel vexatório (II); o troiano Páris derrotado em um duelo com Menelau, mas sendo salvo por sua deusa padroeira Afrodite (III); as deusas mais hostis a Troia, Hera e Atena, fazendo com que a luta recomece (IV); o herói grego Diomedes vencendo os troianos e até ferindo Afrodite e o deus da guerra Ares (V); Heitor, o maior guerreiro de Troia, em uma conversa comovente com a esposa Andrômaca e o filho (VI); Heitor travando um duelo que não chega ao fim com Álax e os gregos construindo uma muralha e um fosso para defender suas naus (VII); e Zeus favorecendo os troia­nos, que obrigam os gregos a recuar de suas novas defesas e a passar a noite acampados na planície (VIII).

Agamêmnon agora reconhece que fez mal em insultar Aquiles e aceita enviar uma compensação substancial para obter seu retorno. Ulisses, Fênix e Ájax lideram a delegação, mas, para seu assombro, Aquiles os repele. É quando começa a sua tragédia. (Canto IX).

Nos Cantos X-XV, Homero prepara as bases para a entrada em combate de Pátroclo, o companheiro inseparável de Aquiles. Em uma expedição noturna, Diomedes e Ulisses invadem o território troiano e roubam os famosos cavalos de Reso (X); Agamêmnon consegue uma breve façanha solitária, mas os gregos são obrigados a retroceder. Aquiles manda Pátroclo averiguar o que está acontecendo, e o velho e sábio Nestor sugere a este que, se Aquiles não voltar a combater, ele, Pátroclo, o faça vestindo a armadura do amigo (XI). Entrementes, os troianos intensificam o ataque contra as defesas gregas. Parte da muralha é destruída; Heitor põe abaixo o portão e os troianos entram precipitadamente (XII). Supondo que a vitória dos troianos está encaminhada, Zeus se distrai com outros assuntos, e Posêidon aproveita a oportunidade para auxiliar os gregos (XIII). Hera faz amor com Zeus para distraí-lo. Os troianos são derrotados (XIV). Zeus acorda e, enfurecido, ameaça os deuses com violência se voltarem a interferir. Posêidon recua, Apolo destrói as defesas adversárias e Heitor conduz os troianos até as embarcações gregas (XV).

Pátroclo volta para junto de Aquiles e repete a sugestão de Nestor para que entre em combate com sua armadura. Aquiles concorda (fatalmente). Em uma grande façanha individual, Pátroclo obriga os troianos a retrocederem, mas é despido da armadura por Apolo e morto por Heitor (Canto XVI). Irrompe uma feroz batalha pelo corpo de Pátroclo, e Hetor veste a armadura deste (na verdade, de Aquiles). Os gregos se retiram com o corpo de Pátroclo (Canto XVII). Informado da morte do amigo querido, Aquiles assume toda a culpa e anuncia que vai se vingar de Heitor. Tétis avisa-o de que morrerá logo depois, e Aquiles aceita o preço. Eis a sua tragédia. Hefesto faz uma armadura nova para Aquiles, inclusive seu célebre escudo (Canto XVIII).

Agamêmnon e Aquiles se reconciliam, e os presentes são entregues ao guerreiro, que agora tem urgência de se vingar (Canto XIX). Avança com tanto ímpeto que Posêidon é obrigado a salvar Eneias de sua fúria, e Apolo aconselha Heitor a buscar abrigo (Canto XX). O rio Xanto, também ele uma divindade, tenta afogar Aquiles, que bloqueou seus canais com os cadáveres; até os deuses se põem a combater entre si (Canto XXI).

Aquiles isola e mata Heitor. Contrariando os costumes, fica com o cadáver e o mutila (Canto XXII). Pátroclo é cremado, e Aquiles organiza os jogos fúnebres (Canto XXIII). Ainda incapaz de aceitar os fatos, arrasta o corpo de Heitor inutilmente ao redor da tumba de Pátroclo. Os deuses concordam que Aquiles foi longe demais e fazem com que o pai de Heitor, Príamo, rei de Troia, vá suplicar a devolução do cadáver. No encontro noturno no alojamento de Aquiles, o velho Príamo é bem-sucedido (Canto XXIV). Aqui termina a Ilíada, mas Homero nos deixa com uma ideia clara do que sucederá num futuro próximo: a morte de Aquiles e a destruição de Ílion".

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Os arquivos de texto e áudio a respeito desta leitura (apostila, cantos e a própria leitura feita em sala) encontram-se disponíveis na pasta de arquivos online através do seguinte link:

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terça-feira, 17 de março de 2015

Pasta de arquivos online

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Este é o link para a pasta online de arquivos do nosso estudo. Ela será atualizada semanalmente.

Quanto ao seu conteúdo, trata-se dos arquivos de áudio e texto que registram nossos encontros: as gravações das leituras e as apostilas com os textos lidos. Uma ou outra coisa a mais virá com o tempo.

terça-feira, 10 de março de 2015

Origens e fins

O objetivo deste nosso estudo é conhecer os maiores e mais importantes escritos literários da história do ocidente. Tomaremos como guia a História da Literatura Ocidental, de Otto Maria Carpeaux, e alguns apontamentos sobre técnicas de leitura, de Mortimer Adler. 

A ênfase em "conhecer" revela o caráter introdutório do estudo: a idéia é colocarmo-nos nas condições básicas necessárias para a absorção proveitosa dos clássicos; conhecê-los, portanto, no sentido de sermos devidamente apresentados a eles. Lê-los na íntegra deve ser, justamente, a conseqüência irresistível do nosso trabalho.

A viagem não é pequena, mas a alma também não; e, afinal, navegar é preciso!



Sto. Agostinho