quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Renascença Carolíngea. 11ª leitura: a lenda de Beowulf.

CARPEAUX nos explicou, então, que a Europa não se bizantinizou, e isso muito por conta da invasão dos árabes, que se instalaram nos portos mediterrâneos impedindo que o comércio marítimo continuasse, o que forçou uma reagrarização da Europa – ou seja, à extinção (praticamente) da classe comerciante seguiu-se um retorno à divisão social entre aristocratas e servos (sobravam uns poucos “homens livres”, que depois formariam novamente a classe comerciante, mas que nesse período não têm relevância na ordem social que se instaura; e sobrava também o clero). A essa organização social corresponde a organização política que conhecemos como “feudalismo”, e os dois grandes centros feudais organizavam-se em torno do Rei dos francos e do Papa. O clero funcionava economicamente sobre uma estrutura também latifundiária, mas que não tinha ligação com o poder político – esses centros são os conventos, nos quais a vida litúrgica se mantinha intacta, assim como se mantinha toda uma vida intelectual e de escrita, de modo que Carpeaux chega a afirmar que a (alta) civilização daquela época “é clerical; ou melhor, é monacal e escolar”. Fora dos muros, continuava “uma sociedade rudemente agrária” e as “tempestades produzidas pelas invasões dos bárbaros vikings e húngaros”.


CARPEAUX, então, segue, dizendo:

“A civilização da época é clerical; ou melhor, é monacal e escolar. O centro de irradiação dessa civilização pedagógica foram as ilhas britânicas. Mas é preciso distinguir. Os monges irlandeses revelaram toda a mobilidade da raça céltica. Viajar – viajar, a pé, pelas florestas e pântanos, era, então, um trabalho bem penoso – é para eles um meio de fazer vida ascética. Aparecem em toda a parte, fundando conventos: Luxeuil, na França; Stavelot, na Bélgica; Sankt Gallen, na Suíça; Bobbio, na Itália. Aos monges irlandeses, de espírito independente, devem-se as bases de posteriores ‘renascenças’.

Os monges ingleses são mais sedentários; gostam de dedicar-se, em modestas casas de campo em torno da igreja, ao estudo das letras clássicas. Beda Venerabilis é um monge assim; de erudição universal, mas de um horizonte intencionalmente limitado à sua ilha, escreveu a Historia ecclesiastica gentis Anglorum, equilibrada, razoável, patriótica sem excesso, clássica sem pedantismo. Beda é o primeiro scholar inglês.

Entre os anglo-saxões, a mentalidade cristiano-latina encontra-se com o vivo espírito religioso da raça, produzindo uma literatura religiosa notável, em idioma germânico. Antes do fim do século VII escreveu Caedmon os seus famosos hinos, antecipação da poesia eclesiástica de Quarles e Cowper. Do século seguinte é a Anglo-Saxon Genesis, paráfrase poética do primeiro livro de Moisés, na qual a devoção bíblica se mistura com sentimento da Natureza e certa compreensão do lado noturno, demoníaco, da Criação; Milton, amigo de Iunius, que descobrira esses poemas, deve ter conhecido essa Genesis. O último e maior dos poetas anglo-saxões é Cynewulf, o autor de Christ e Elene, poemas narrativos nos quais a mistura de religiosidade e gosto pela poesia descritiva já é, outra vez, tipicamente inglesa. A literatura dos leigos anglo-saxões encontra um centro na corte do grande rei Alfredo, tradutor de Gregório Magno, Beda e Boécio. Esta última é significativa: o rei é quase um santo, mas tem as suas veleidades de cultura clássica independente; é o primeiro gentleman-scholar”.


Era o momento da Renascença (ou Reforma) Carolíngea; quanto a ela, CARPEAUX nos diz:

“Um rebento continental do humanismo anglo-saxônico é a ‘Renascença carolíngia’, assim chamada porque foi da iniciativa do imperador Carlos Magno. À ‘Renovatio Romani Imperii’ pela coroação romana, em 800, devia corresponder a ‘renovatio’ das letras clássicas.

Na residência imperial, em Aquisgrana, reuniu certo número de clérigos britânicos, em uma escola palaciana, a cujos trabalhos o imperador assistiu pessoalmente, para dar um exemplo de aplicação à corte e ao povo; o diretor da escola, Alcuíno, era o seu ministro da educação. Seria, porém, um erro atribuir a Carlos Magno o intuito de desinteressada divulgação de cultura. Alcuíno fora discípulo do arcebispo Egbert de York, e portanto discípulo indireto de Beda Venerabilis; foi mestre-escola e clérigo. Todas as suas obras têm fins didáticos, às vezes em forma de catecismo, e a Disputatio puerorum per interrogationes et responsiones um panorama vivo dos métodos pedagógicos, na escola de Aquisgrana. Liam-se muito os autores pagãos, Virgílio de preferência, por ser capaz de uma interpretação cristã. O fim imediato era a latinização dos povos germânicos; o verdadeiro objetivo da Renascença carolíngia era a conquista e dominação espiritual dos germanos pela Igreja romana: o amplo império de Carlos Magno, compreendendo a França e a Alemanha de hoje e grande parte da Itália, não tem outra unidade senão aquela romana.

Daí resulta não serem os efeitos da Renascença carolíngia muito profundos, mas extensos. À aplicação dos monges copistas da época carolíngia devemos quase todos os manuscritos conservados, de poetas e prosadores romanos. Promoviam-se os estudos clássicos nos conventos da Renânia, da Bélgica e França, em Corvey, Stavelot, Luxeuil. Mais para o Oriente, Sankt Gallen, na Suíça, torna-se o maior centro de estudos. 

Aí, o monge Ekkehard ( 973), o primeiro de quatro monges famosos com este nome, escreveu o poema latino Waltharius manu fortis, no qual a forma virgiliana e o espírito de guerreiro germânico se misturam com a nostalgia do monge pelo vasto mundo, lá fora. O Alcuíno de Sankt Gallen é Notker Labeo ( 1022), tradutor de Boécio e das Categoriae, de Aristóteles; sabemos que traduziu também as Bucolica, de Virgílio, e a Andria, de Terêncio, para os fins do ensino. O quarto Ekkehard ( 1060) escreveu, nos Casus sancti Galli, a crônica do convento: liturgia e pequenos incidentes da vida escolar, contatos (às vezes sedutores) com o mundo, lá fora, olhares para as montanhas suíças e o lago de Constança, invasão dos húngaros, resistência armada dos monges, devastação, fome, salvação dos manuscritos preciosos – o convento que ainda hoje existe, na cidade industrializada da Suíça, tem realmente um passado venerável.

A renascença carolíngia não sobreviveu ao seu fundador; fora uma tentativa muito intencional, demasiadamente racional. Mas os efeitos não se perderam de todo, porque correspondiam a uma realidade. Essa primeira renascença é a superestrutura, algo precária, do Império feudal, aliado ao Papado romano: edifício político-religioso, totalmente diferente do Império grego de Bizâncio e oposto a ele pela diferença linguística. Em Bizâncio, a tradição grega continuou, sem interrupção e, por isso, sem renascença. No Ocidente, a latinização dos bárbaros germânicos criou um novo mundo. De uma ‘renascença’ – é preciso chamar a atenção para o sentido literal da palavra – nasceu a Europa.

Quando o Papa Gregório IV introduziu na França, em 835, a festa romana de Todos os Santos, da comunhão entre os espíritos celestes e o gênero humano pela liturgia, sancionou a unidade latina do Ocidente; a matriz desse culto de todos os santos é a igreja Santa Maria ad Martyres, o antigo Panteão de todos os deuses romanos, em Roma”.

“Os fundamentos do edifício não estavam bem seguros. O inimigo, lá fora, vikings e húngaros, não teria sido tão perigoso, se não houvesse também o inimigo de dentro: o fato incontestável de a cristianização dos germanos ter ficado imperfeita. Os testemunhos são muitos. Gregório de Tours é um bispo da ‘época das migrações dos bárbaros’; ligado pelo sangue à aristocracia germânica, mas isento de preconceitos bárbaros, pela qualidade de clérigo e bispo da Igreja Romana. O seu latim é bárbaro e horrivelmente confuso; mas a sua fé nos milagres de São Martinho e dos santos da região (De vita patrum), que ele conheceu pessoalmente, é de uma ortodoxia impecável. O historiador dos merovíngios é fiel, digno de toda a confiança; só a sua filosofia da história é algo infantil. A História, segundo Gregório, serve para revelar os desígnios de Deus; o próprio Gregório foi testemunha de acontecimentos milagrosos, do fim miserável dos aristocratas ímpios e do triunfo dos bispos ortodoxos. Infelizmente, a frequência dos milagres é insuficiente. Uma verdadeira santa, como Radegonda, mecenas do poeta Venâncio Fortunato e fundadora do convento de Saint-Croix, em Poitiers, é personagem rara entre as figuras terríveis dos reis merovíngios Sigeberto e Quilperico, e das suas condignas esposas Brunilda e Fredegonda, que devastam a corte e o país, física e moralmente, por meio da guerra civil, pelo assassínio, veneno, incesto, estupro, mutilações, profanações, horrores de toda a espécie, dos quais a História dos Francos é o relato fiel, pitoresco e comovido de angústia. A conversão de Clóvis não adiantou nada. Os instintos selvagens dos bárbaros até foram exacerbados pelos requintes da decadência romana.

Mesmo entre os anglo-saxões, o cristianismo ainda não penetrara no fundo da alma. É testemunho disso o Lay of Beowulf, considerado hoje, por alguns, como o poema épico mais poderoso que já se escreveu nas ilhas britânicas. Embora o enredo seja de feição mitológica – a vitória de Beowulf sobre o gigante antropófago Grendel e a sua morte no momento da vitória sobre um dragão –, o fundo do poema é histórico, e os acontecimentos, despidos da transfiguração poética, podiam ser verificados na Dinamarca do século VI. O desconhecido autor do Beowulf, se não é cristão, pelo menos vive em país cristão e conhece a moral cristã: Beowulf, um daqueles ‘heróis da civilização’ que aparecem em muitos mitos primitivos, é ligeiramente decalcado sobre a figura do Cristo. Mas a profunda seriedade do poema não se deve ao Evangelho; decorre da força indomável de germanos que, mesmo quando convertidos, não se convertem.

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Na pasta de arquivos online, há PDFs de três dos autores tratados acima: São Beda, Alcuíno e Gregório de Tours; há também um PDF de uma versão em inglês moderno da lenda de Beowulf (em português, há uma adaptação da lenda disponível em: http://tinyurl.com/ozmeuk9. O link para a pasta de arquivos online é https://www.dropbox.com/home/Grupo%20de%20Estudo%20e%20Leitura%20dos%20Cl%C3%A1ssicos.

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