quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Literatura Bizantina e fundação da Europa

Enquanto a epopeia eclesiástica da liturgia romana acontecia dentro dos muros da Igreja, “lá fora, havia os bárbaros e a destruição”. Mas não só: havia também Bizâncio, no Oriente. Sobre sua “produção literária”, CARPEAUX no diz:

“A epopeia eclesiástica da liturgia decorreu só dentro dos muros. Lá fora, havia os bárbaros e a destruição. Do ponto de vista da história universal, essa visão não é inteiramente exata. Fora da Itália e das províncias devastadas havia um outro mundo, em condições diferentes: Bizâncio.

Por volta de 550, o Império grego, restaurado por Justiniano, fez um esforço surpreendente para reconquistar o mundo. Se esse esforço não se tivesse malogrado – as ruínas melancólicas de Ravena dão testemunho disso –, o Ocidente seria hoje grego e talvez eslavo. Porque falhou, Bizâncio não faz parte do mundo ocidental. A literatura bizantina só tem importância, para nós outros, como fonte de motivos e como contraste.

Em torno de Bizâncio existe um equívoco: a palavra emprega-se como sinônimo de estéreis discussões teológicas, de petrificação. Esse conceito não corresponde aos fatos históricos. A história bizantina é das mais movimentadas. Despendiam-se esforços, quase ininterruptos, para revivificar e continuar as tradições gregas, para opô-las às influências irresistíveis do Oriente e assimilar estas últimas. Durante muitos séculos, Bizâncio é um centro da civilização. O resultado daquelas lutas foi uma história desgraçada e uma literatura que não era apenas rica, mas também viva.

O primeiro encontro entre tradições gregas e influências orientais deu-se na hinografia bizantina. É o hinógrafo sírio Efrém que imita as formas da língua de Píndaro. É também sírio o hinógrafo Romanos, o maior poeta da literatura bizantina, esquecido depois tão inteiramente que só os estudiosos ocidentais do século XIX o redescobririam.

Por falta de tradições não é possível verificar a época em que Romanos viveu: indica-se, como data mais verossímil, o século VI. Romanos não parece muito original; talvez já encontrasse a sua forma, o kontakios, espécie de homilia metrificada de grande extensão. Os hinos de Romanos – nem todos autênticos – distinguem-se pela inspiração desenfreada, que às vezes rompe as formas hieráticas, transformando-se em balbuciação extática. Para formar idéia da poesia de Romanos, o leitor moderno pensará nas grandes odes de Claudel, imaginando-as cantadas nas ondas de luz do serviço noturno de Natal de uma catedral bizantina.

Se Romanos é realmente do século VI, a sua poesia faz parte do imponente movimento de renascença que o imperador Justiniano promoveu. As duas fases desse movimento aparecem na reconquista da África e Itália e no restabelecimento da ordem político-administrativa pelo Corpus Juris, e, por outro lado, na formação de partidos políticos em Bizâncio, chegando a explosões de guerra civil, e na corrupção pela qual a Imperatriz Teodora é responsabilizada. Procópio de Cesaréia é o historiador de ambos os lados: nas Historia varia descreveu os feitos militares e a cultura da corte imperial; nas Historia arcana, a corrupção infame da mesma corte e das mesmas pessoas que tinha elogiado.

A civilização bizantina apresentará sempre uma cabeça de Jano. É uma civilização de duas classes bem distintas: aqui, a corte, a aristocracia, o alto clero, munidos de todos os requintes da civilização madura e da decadência moral; ali, o povo chefiado pelos monges bárbaros e fanáticos, inculto, tumultuoso e ingênuo. Um poeta da alta sociedade, como Agathias, pode competir com as elegências do rococó francês; e o seu contemporâneo Johannes Malalas é o cronista popular, lido em voz alta nas esquinas, traduzido depois para muitas línguas, e primeiro fator da europeização dos eslavos. A literatura bizantina é vivíssima; e cumpre uma grande missão.

Tem a força de se renovar. No século VIII, Andréas Cretensis e Johannes Damascenus criam uma nova forma de poesia eclesiástica, o Cânon. Em 863, a Universidade é reaberta. Theodoros Studita, monge e chefe político, protagonista fanático na luta pela conservação das imagens nas igrejas, é um homem do povo; em Bizâncio, todos os movimentos populares tomam a feição superestrutural de guerras de religião. E como homem do povo, Theodoros é poeta realista, apresentando a vida monacal em cores diversas daquelas por que ela aparece nos ícones e na hagiografia.

Ouvimos até falar de grandes espetáculos populares nas igrejas, mas estamos mal informados quanto ao drama religioso e ao mimo popular e obsceno; contudo, o Cristus patiens do século XI é qualquer coisa como os mistérios da Paixão que se representarão nas grand’places das cidades medievais.

A vivacidade da literatura bizantina só se revela bem quando comparada com a situação no Ocidente. São os séculos IX, X, XI, realmente os ‘Dark Ages’ da historiografia convencional. Em Bizâncio, o eruditíssimo Photios († 897) reúne no Myrobiblion as suas anotações de inúmeros livros antigos, e esse herói da formação universitária é, ao mesmo tempo, patriarca de Bizâncio e adversário cismático da Santa Sé em Roma. O imperador Constantino Porfirogênito († 959) digna-se de escrever o De caerimoniis aulae, espécie de regulamento interno da corte, no qual se criam as ‘magnificências’, ‘excelências’, ‘ilustríssimos’ e ‘excelentíssimos’ da nossa burocracia e dos nossos envelopes. Konstantinos Michael Psellos († 1078), filósofo platônico e algo como um poeta parnasiano em meio dos tumultos na rua e das guerras com eslavos e mongóis, conta, na Chronographia, um século de história áulica, que ele viu de dentro: intrigas de eunucos, conspirações de generais, deposições e assassínios de imperadores, intervenções de mulheres e monges, todo esse caos de sabre, boudoir e liturgia, em meio da mais requintada arte de viver em palácios e morrer em conventos, ambos cheios dos mais luxuosos objetos de arte – os ocidentais, chegando a Constantinopla, ficavam boquiabertos [...]. [E]ntre os admiráveis palácios e igrejas, o povo miúdo vivacíssimo e turbulento [...] aparece nas poesias populares de Theodoros Prodromos († c. 1180), mendigo e parasito, boêmio e monge, excessivo e melancólico como um Villon bizantino.

A imaginação exuberante desse povo já havia criado uma legião de romances fantásticos, sobre Alexandre e Tróia, sobre Apolônio de Tiro e os Sete Sábios do Oriente, que irão invadir a imaginação ocidental, inspirando Chrétien de Troyes e os cronistas de Arthus, Lanzelot e Amadis. O povo de Bizâncio chegou a criar uma epopeia popular, um ciclo de romances à maneira espanhola, sobre o guerrilheiro Digenis Akritas, que lutou na fronteira contra os árabes, e que na imaginação dos eslavos balcânicos se irá transformar lentamente em herói popular contra os turcos.

Talvez o Ocidente inteiro tivese sido balcanizado, transformado em fronteira bárbara da civilização grega, se Bizâncio tivesse vencido. Mas o Ocidente não se bizantinizou nem se balcanizou. Foi preservado dos gregos pela invasão dos árabes, que fecharam os caminhos marítimos do Mediterrâneo, isolando Bizâncio de Roma. O Ocidente continuou latino. Nasceu a Europa”.

***

Sobre a fundação da Europa, nos diz CARPEAUX:

“O primeiro fato histórico da chamada ‘Idade Média’ é a fundação da Europa moderna: a delimitação das fronteiras que a definem, a definição das nações que a habitam, a proclamação da unidade que, apesar de tudo, a caracteriza.

A afirmação parece paradoxal, mas só enquanto aquela expressão ‘Idade Média’ é mantida. Pressupõe ela um esquema da história universal em forma de trinômio, no qual o membro médio, impermeável às influências do primeiro e vencido pelo terceiro, representa uma decadência intermediária, depois de uma catástrofe e antes de uma renascença. O esquema está hoje gravemente comprometido. Descobriram-se várias ‘renascenças’ durante a chamada ‘Idade Média’, das quais a ‘grande’ Renascença dos séculos XV e XVI é apenas a continuação: a renascença carolíngia do século IX, a renascença ‘franciscana’ dos séculos XII e XIII, a renascença escolástica ou francesa do século XIII, e ainda outra francesa, a dos nominalistas do século XIV; de modo que existe continuidade quase ininterrupta.

Por outro lado, a queda do Império romano não teve as consequências definitivas que se lhe atribuíam antigamente. Foi possível demonstrar que as instituições romanas sobreviveram em grande parte à catástrofe, e que a vida administrativa, econômica, social e intelectual dos primeiros séculos ‘medievais’, até, mais ou menos, a época carolíngia, não diferia essencialmente da vida nos últimos séculos da Antiguidade. Com essas duas verificações, o conceito ‘Idade Média’ perde o sentido, a separação dos três membros do trinômio histórico é substituída pela continuidade.

Mas a continuidade não é perfeita. Sobretudo quanto ao começo da época intermediária, não se consegue a abolição total do velho conceito. A grande interrupção é só deslocada, dos séculos V e VI para os séculos VII e VIII ou IX. Evidentemente, cumpre substituir a ‘catástrofe do Império’, como acontecimento decisivo, por qualquer outro acontecimento, menos espetacular, ocorrido dois ou três séculos depois, e que teve as consequências atribuídas antigamente à invasão dos bárbaros.

Com efeito, houve duas invasões bárbaras; após a primeira, iniciada no século IV, houve, nos séculos VIII e IX, a dos vikings germânicos do Norte e a dos húngaros do Oriente. Muitos monumentos e instituições que tinham sobrevivido à primeira invasão, foram então destruídos. Contudo, a segunda invasão foi transitória, não chegou ao estabelecimento dos bárbaros dentro das fronteiras tradicionais da Europa; e as consequências também só não teriam sido transitórias se vikings e húngaros não tivessem tido, sem o saberem, um aliado poderoso no Sul. Na mesma época, os árabes conquistaram a Espanha e a Sicília, invadiram a França e a Itália meridional e chegaram a ameaçar Roma. A famosa batalha de Poitiers, em 732, salvou o Norte da França, mas não conseguiu salvar a Provença; os árabes chegaram até Avignon. E já não era possível anular o acontecimento decisivo: o Mediterrâneo estava fechado.

A civilização antiga baseava-se no comércio livre entre os países mediterrâneos; e, considerando-se a precariedade dos transportes terrestres, eram os caminhos marítimos de importância vital. A separação do Império em duas partes, o Império ocidental de Roma e o oriental de Bizâncio, não prejudicou o comércio marítimo entre eles; nem o prejudicou a invasão dos bárbaros, que era uma invasão pelos caminhos terrestres. Nem a própria queda do Império ocidental teve, por isso, consequências definitivas. Só a ocupação de quase todas as costas do Mediterrâneo ocidental pelos árabes acabou com o comércio marítimo. As esperanças bizantinas de uma reconquista do Ocidente estavam frustradas. Interromperam-se, não completamente aliás, as relações entre o mundo grego e o mundo latino, e a possibilidade de uma Europa bizantina estava excluída para sempre.

O fechamento do Mediterrâneo interrompeu o comércio marítimo, e o comércio nos caminhos terrestres tornou-se mais precário do que nunca. A troca de produtos manufaturados cessou, e as aglomerações humanas viram-se obrigadas a produzir, em autarquia perfeita, aquilo de que precisavam. O Ocidente reagrarizou-se. Os latifúndios aristocráticos ficaram como únicos centros de atividade econômica. A sociedade hierarquizou-se em aristocratas e servos.

A organização política correspondente a essa organização hierárquica da sociedade é o feudalismo. O capital, excluído dos negócios de competição livre, imobilizou-se nas mãos da aristocracia rural e da Igreja, que também se feudalizou. Os chefes supremos desses dois organismos feudais, o rei dos francos e o papa, fizeram a aliança que substituiu, no Ocidente, o cesaropapismo bizantino. A aliança instável e insegura, aliás, responsável pelas evoluções futuras e inesperadas.

Aristocratas e servos não eram os únicos componentes dessa sociedade. Havia também vagabundos sem lar nem categoria social, e entre eles vão surgir os futuros negociantes e capitalistas. E havia mais uma classe, de caráter social menos definido: o clero. O alto clero, bispos e prelados, pertencentes, as mais das vezes, às famílias aristocráticas, já se estava feudalizando. O clero regular fundou centros independentes, com a estrutura econômica dos latifúndios, mas sem relação com o poder político: os grandes conventos. Daí surgiu uma classe de clérigos capazes de conceber e exprimir o espírito da época.

Economia sedentária, capital imobilizado e horizontes marítimos fechados produziram fatalmente uma concepção fechada do mundo. Um mundo espiritual, fechado dentro dos muros sólidos da disciplina monacal, comparáveis aos muros sólidos das igrejas-fortalezas do estilo românico. Dentro desses muros eclesiásticos havia uma vida independente: a vida da liturgia. Os cultores da liturgia são os monges. Em certos conventos europeus, o canto litúrgico não cessou um dia só, durante mais de mil anos; e quem assiste hoje uma missa solene, em um desses conventos, com os escolásticos tonsurados servindo ao abade e o coro cantando o cantochão gregoriano, compreende a situação insulada daqueles conventos, em meio de uma sociedade rudemente agrária e das tempestades produzidas pelas invasões dos bárbaros vikings e húngaros. A civilização da época é clerical; ou melhor, é monacal e escolar”.

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