Enquanto a epopeia eclesiástica da liturgia romana acontecia
dentro dos muros da Igreja, “lá fora, havia os bárbaros e a destruição”. Mas
não só: havia também Bizâncio, no
Oriente. Sobre sua “produção literária”, CARPEAUX no diz:
“A epopeia
eclesiástica da liturgia decorreu só dentro dos muros. Lá fora, havia os bárbaros
e a destruição. Do ponto de vista
da história universal, essa visão não é inteiramente exata. Fora da Itália e
das províncias devastadas havia um outro mundo, em condições diferentes: Bizâncio.
Por volta de 550, o Império grego,
restaurado por Justiniano, fez um esforço surpreendente para reconquistar o
mundo. Se esse esforço não se tivesse malogrado – as ruínas melancólicas de
Ravena dão testemunho disso –, o Ocidente seria hoje grego e talvez eslavo. Porque
falhou, Bizâncio não faz parte do mundo ocidental. A literatura
bizantina só tem importância, para nós outros, como fonte de motivos
e como contraste.
Em torno de Bizâncio existe um equívoco:
a palavra emprega-se como sinônimo de estéreis discussões teológicas, de
petrificação. Esse conceito não corresponde aos fatos históricos. A história
bizantina é das mais movimentadas. Despendiam-se esforços, quase ininterruptos,
para revivificar e continuar as tradições gregas, para opô-las às influências
irresistíveis do Oriente e assimilar estas últimas. Durante muitos séculos, Bizâncio
é um centro da civilização. O resultado daquelas lutas foi uma história desgraçada
e uma literatura que não era apenas rica, mas também viva.
O primeiro encontro entre tradições
gregas e influências orientais deu-se na hinografia bizantina. É o hinógrafo
sírio Efrém que imita as formas da língua
de Píndaro. É também sírio o hinógrafo Romanos,
o maior poeta da literatura bizantina, esquecido depois tão inteiramente que só
os estudiosos ocidentais do século XIX o redescobririam.
Por falta de tradições não é possível
verificar a época em que Romanos viveu: indica-se, como data mais verossímil, o
século VI. Romanos não parece muito original; talvez já encontrasse a sua
forma, o kontakios, espécie de homilia metrificada de grande extensão.
Os hinos de Romanos – nem todos autênticos – distinguem-se pela inspiração
desenfreada, que às vezes rompe as formas hieráticas, transformando-se em
balbuciação extática. Para formar idéia da poesia de Romanos, o leitor moderno
pensará nas grandes odes de Claudel, imaginando-as cantadas nas ondas de luz do
serviço noturno de Natal de uma catedral bizantina.
Se Romanos é realmente do século VI,
a sua poesia faz parte do imponente movimento de renascença que o imperador
Justiniano promoveu. As duas fases desse movimento aparecem na reconquista da África
e Itália e no restabelecimento da ordem político-administrativa pelo Corpus
Juris, e, por outro lado, na formação de partidos políticos em Bizâncio,
chegando a explosões de guerra civil, e na corrupção pela qual a Imperatriz
Teodora é responsabilizada. Procópio de
Cesaréia é o historiador de ambos os lados: nas Historia varia descreveu
os feitos militares e a cultura da corte imperial; nas Historia arcana,
a corrupção infame da mesma corte e das mesmas pessoas que tinha elogiado.
A civilização bizantina apresentará
sempre uma cabeça de Jano. É uma civilização de duas classes bem distintas:
aqui, a corte, a aristocracia, o alto clero, munidos de todos os requintes da
civilização madura e da decadência moral; ali, o povo chefiado pelos monges bárbaros
e fanáticos, inculto, tumultuoso e ingênuo. Um poeta da alta sociedade, como
Agathias, pode competir com as elegências do rococó francês; e o seu contemporâneo
Johannes Malalas é o cronista
popular, lido em voz alta nas esquinas, traduzido depois para muitas línguas,
e primeiro fator da europeização dos eslavos. A literatura bizantina é vivíssima;
e cumpre uma grande missão.
Tem a força de se renovar. No século
VIII, Andréas Cretensis e Johannes Damascenus criam uma nova forma de poesia
eclesiástica, o Cânon. Em 863, a Universidade é reaberta. Theodoros Studita, monge e chefe político, protagonista fanático na
luta pela conservação das imagens nas igrejas, é um homem do povo; em Bizâncio,
todos os movimentos populares tomam a feição superestrutural de guerras de
religião. E como homem do povo, Theodoros é poeta realista, apresentando a vida
monacal em cores diversas daquelas por que ela aparece nos ícones e na
hagiografia.
Ouvimos até falar de grandes espetáculos
populares nas igrejas, mas estamos mal informados quanto ao drama religioso e
ao mimo popular e obsceno; contudo, o Cristus patiens do século XI é
qualquer coisa como os mistérios da Paixão que se representarão nas grand’places
das cidades medievais.
A vivacidade da literatura bizantina
só se revela bem quando comparada com a situação no Ocidente. São os séculos
IX, X, XI, realmente os ‘Dark Ages’
da historiografia convencional. Em Bizâncio, o eruditíssimo Photios († 897) reúne no Myrobiblion
as suas anotações de inúmeros livros antigos, e esse herói da formação
universitária é, ao mesmo tempo, patriarca de Bizâncio e adversário cismático
da Santa Sé em Roma. O imperador Constantino
Porfirogênito († 959) digna-se de escrever o De caerimoniis aulae,
espécie de regulamento interno da corte, no qual se criam as ‘magnificências’,
‘excelências’, ‘ilustríssimos’ e ‘excelentíssimos’ da nossa burocracia e dos
nossos envelopes. Konstantinos Michael
Psellos († 1078), filósofo platônico e algo como um poeta parnasiano em
meio dos tumultos na rua e das guerras com eslavos e mongóis, conta, na Chronographia,
um século de história áulica, que ele viu de dentro: intrigas de eunucos, conspirações
de generais, deposições e assassínios de imperadores, intervenções de mulheres
e monges, todo esse caos de sabre, boudoir e liturgia, em meio da mais
requintada arte de viver em palácios e morrer em conventos, ambos cheios dos
mais luxuosos objetos de arte – os ocidentais, chegando a Constantinopla,
ficavam boquiabertos [...]. [E]ntre os admiráveis palácios e igrejas, o povo miúdo
vivacíssimo e turbulento [...] aparece nas poesias populares de Theodoros Prodromos († c. 1180),
mendigo e parasito, boêmio e monge, excessivo e melancólico como um Villon
bizantino.
A imaginação exuberante desse povo já
havia criado uma legião de romances fantásticos, sobre Alexandre e Tróia, sobre
Apolônio de Tiro e os Sete Sábios do Oriente, que irão invadir a imaginação
ocidental, inspirando Chrétien de Troyes e os cronistas de Arthus, Lanzelot e
Amadis. O povo de Bizâncio chegou a criar uma epopeia popular, um ciclo de
romances à maneira espanhola, sobre o guerrilheiro Digenis Akritas, que lutou
na fronteira contra os árabes, e que na imaginação dos eslavos balcânicos se irá
transformar lentamente em herói popular contra os turcos.
Talvez o Ocidente inteiro tivese
sido balcanizado, transformado em fronteira bárbara da civilização grega, se
Bizâncio tivesse vencido. Mas o Ocidente não se bizantinizou nem se balcanizou.
Foi preservado dos gregos pela invasão dos árabes, que fecharam os caminhos marítimos
do Mediterrâneo, isolando Bizâncio de Roma. O Ocidente continuou latino. Nasceu
a Europa”.
Sobre a
fundação da Europa, nos diz
CARPEAUX:
“O primeiro
fato histórico da chamada ‘Idade Média’ é a fundação da Europa moderna: a
delimitação das fronteiras que a definem, a definição das nações que a habitam,
a proclamação da unidade que, apesar de tudo, a caracteriza.
A afirmação parece paradoxal, mas só
enquanto aquela expressão ‘Idade Média’ é mantida. Pressupõe ela um esquema da
história universal em forma de trinômio, no qual o membro médio, impermeável às
influências do primeiro e vencido pelo terceiro, representa uma decadência
intermediária, depois de uma catástrofe e antes de uma renascença. O esquema está
hoje gravemente comprometido. Descobriram-se várias ‘renascenças’ durante a
chamada ‘Idade Média’, das quais a ‘grande’ Renascença dos séculos XV e XVI é
apenas a continuação: a renascença carolíngia do século IX, a renascença ‘franciscana’
dos séculos XII e XIII, a renascença escolástica ou francesa do século XIII, e
ainda outra francesa, a dos nominalistas do século XIV; de modo que existe
continuidade quase ininterrupta.
Por outro lado, a queda do Império
romano não teve as consequências definitivas que se lhe atribuíam antigamente.
Foi possível demonstrar que as instituições romanas sobreviveram em grande
parte à catástrofe, e que a vida administrativa, econômica, social e
intelectual dos primeiros séculos ‘medievais’, até, mais ou menos, a época
carolíngia, não diferia essencialmente da vida nos últimos séculos da Antiguidade.
Com essas duas verificações, o conceito ‘Idade Média’ perde o sentido, a separação
dos três membros do trinômio histórico é substituída pela continuidade.
Mas a continuidade não é perfeita.
Sobretudo quanto ao começo da época intermediária, não se consegue a abolição
total do velho conceito. A grande interrupção é só deslocada, dos séculos V e
VI para os séculos VII e VIII ou IX. Evidentemente, cumpre substituir a ‘catástrofe
do Império’, como acontecimento decisivo, por qualquer outro acontecimento, menos
espetacular, ocorrido dois ou três séculos depois, e que teve as consequências atribuídas
antigamente à invasão dos bárbaros.
Com efeito, houve duas invasões bárbaras;
após a primeira, iniciada no século IV, houve, nos séculos VIII e IX, a dos vikings
germânicos do Norte e a dos húngaros do Oriente. Muitos monumentos e
instituições que tinham sobrevivido à primeira invasão, foram então destruídos.
Contudo, a segunda invasão foi transitória, não chegou ao estabelecimento dos bárbaros
dentro das fronteiras tradicionais da Europa; e as consequências também só não teriam
sido transitórias se vikings e húngaros não tivessem tido, sem o saberem,
um aliado poderoso no Sul. Na mesma época, os árabes conquistaram a Espanha e a
Sicília, invadiram a França e a Itália meridional e chegaram a ameaçar Roma. A
famosa batalha de Poitiers, em 732, salvou o Norte da França, mas não conseguiu
salvar a Provença; os árabes chegaram até Avignon. E já não era possível anular
o acontecimento decisivo: o Mediterrâneo estava fechado.
A civilização antiga baseava-se no
comércio livre entre os países mediterrâneos; e, considerando-se a precariedade
dos transportes terrestres, eram os caminhos marítimos de importância vital. A
separação do Império em duas partes, o Império ocidental de Roma e o oriental
de Bizâncio, não prejudicou o comércio marítimo entre eles; nem o prejudicou a
invasão dos bárbaros, que era uma invasão pelos caminhos terrestres. Nem a própria
queda do Império ocidental teve, por isso, consequências definitivas. Só a ocupação
de quase todas as costas do Mediterrâneo ocidental pelos árabes acabou com o
comércio marítimo. As esperanças bizantinas de uma reconquista do Ocidente
estavam frustradas. Interromperam-se, não completamente aliás, as relações
entre o mundo grego e o mundo latino, e a possibilidade de uma Europa bizantina
estava excluída para sempre.
O fechamento do Mediterrâneo
interrompeu o comércio marítimo, e o comércio nos caminhos terrestres tornou-se
mais precário do que nunca. A troca de produtos manufaturados cessou, e as
aglomerações humanas viram-se obrigadas a produzir, em autarquia perfeita,
aquilo de que precisavam. O Ocidente reagrarizou-se. Os latifúndios aristocráticos
ficaram como únicos centros de atividade econômica. A sociedade hierarquizou-se
em aristocratas e servos.
A organização política
correspondente a essa organização hierárquica da sociedade é o feudalismo. O
capital, excluído dos negócios de competição livre, imobilizou-se nas mãos da
aristocracia rural e da Igreja, que também se feudalizou. Os chefes supremos
desses dois organismos feudais, o rei dos francos e o papa, fizeram a aliança
que substituiu, no Ocidente, o cesaropapismo bizantino. A aliança instável e
insegura, aliás, responsável pelas evoluções futuras e inesperadas.
Aristocratas e servos não eram os únicos
componentes dessa sociedade. Havia também vagabundos sem lar nem categoria
social, e entre eles vão surgir os futuros negociantes e capitalistas. E havia
mais uma classe, de caráter social menos definido: o clero. O alto clero,
bispos e prelados, pertencentes, as mais das vezes, às famílias aristocráticas,
já se estava feudalizando. O clero regular fundou centros independentes, com
a estrutura econômica dos latifúndios, mas sem relação com o poder político: os
grandes conventos. Daí surgiu uma classe de clérigos capazes de conceber e
exprimir o espírito da época.
Economia sedentária, capital
imobilizado e horizontes marítimos fechados produziram fatalmente uma concepção
fechada do mundo. Um mundo espiritual, fechado dentro dos muros sólidos da
disciplina monacal, comparáveis aos muros sólidos das igrejas-fortalezas do
estilo românico. Dentro desses muros eclesiásticos havia uma vida independente:
a vida da liturgia. Os cultores da liturgia são os monges. Em certos conventos
europeus, o canto litúrgico não cessou um dia só, durante mais de mil anos; e
quem assiste hoje uma missa solene, em um desses conventos, com os escolásticos
tonsurados servindo ao abade e o coro cantando o cantochão gregoriano, compreende
a situação insulada daqueles conventos, em meio de uma sociedade rudemente agrária
e das tempestades produzidas pelas invasões dos bárbaros vikings e húngaros.
A civilização da época é clerical; ou melhor, é monacal e escolar”.
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