quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Renascença Carolíngea. 11ª leitura: a lenda de Beowulf.

CARPEAUX nos explicou, então, que a Europa não se bizantinizou, e isso muito por conta da invasão dos árabes, que se instalaram nos portos mediterrâneos impedindo que o comércio marítimo continuasse, o que forçou uma reagrarização da Europa – ou seja, à extinção (praticamente) da classe comerciante seguiu-se um retorno à divisão social entre aristocratas e servos (sobravam uns poucos “homens livres”, que depois formariam novamente a classe comerciante, mas que nesse período não têm relevância na ordem social que se instaura; e sobrava também o clero). A essa organização social corresponde a organização política que conhecemos como “feudalismo”, e os dois grandes centros feudais organizavam-se em torno do Rei dos francos e do Papa. O clero funcionava economicamente sobre uma estrutura também latifundiária, mas que não tinha ligação com o poder político – esses centros são os conventos, nos quais a vida litúrgica se mantinha intacta, assim como se mantinha toda uma vida intelectual e de escrita, de modo que Carpeaux chega a afirmar que a (alta) civilização daquela época “é clerical; ou melhor, é monacal e escolar”. Fora dos muros, continuava “uma sociedade rudemente agrária” e as “tempestades produzidas pelas invasões dos bárbaros vikings e húngaros”.


CARPEAUX, então, segue, dizendo:

“A civilização da época é clerical; ou melhor, é monacal e escolar. O centro de irradiação dessa civilização pedagógica foram as ilhas britânicas. Mas é preciso distinguir. Os monges irlandeses revelaram toda a mobilidade da raça céltica. Viajar – viajar, a pé, pelas florestas e pântanos, era, então, um trabalho bem penoso – é para eles um meio de fazer vida ascética. Aparecem em toda a parte, fundando conventos: Luxeuil, na França; Stavelot, na Bélgica; Sankt Gallen, na Suíça; Bobbio, na Itália. Aos monges irlandeses, de espírito independente, devem-se as bases de posteriores ‘renascenças’.

Os monges ingleses são mais sedentários; gostam de dedicar-se, em modestas casas de campo em torno da igreja, ao estudo das letras clássicas. Beda Venerabilis é um monge assim; de erudição universal, mas de um horizonte intencionalmente limitado à sua ilha, escreveu a Historia ecclesiastica gentis Anglorum, equilibrada, razoável, patriótica sem excesso, clássica sem pedantismo. Beda é o primeiro scholar inglês.

Entre os anglo-saxões, a mentalidade cristiano-latina encontra-se com o vivo espírito religioso da raça, produzindo uma literatura religiosa notável, em idioma germânico. Antes do fim do século VII escreveu Caedmon os seus famosos hinos, antecipação da poesia eclesiástica de Quarles e Cowper. Do século seguinte é a Anglo-Saxon Genesis, paráfrase poética do primeiro livro de Moisés, na qual a devoção bíblica se mistura com sentimento da Natureza e certa compreensão do lado noturno, demoníaco, da Criação; Milton, amigo de Iunius, que descobrira esses poemas, deve ter conhecido essa Genesis. O último e maior dos poetas anglo-saxões é Cynewulf, o autor de Christ e Elene, poemas narrativos nos quais a mistura de religiosidade e gosto pela poesia descritiva já é, outra vez, tipicamente inglesa. A literatura dos leigos anglo-saxões encontra um centro na corte do grande rei Alfredo, tradutor de Gregório Magno, Beda e Boécio. Esta última é significativa: o rei é quase um santo, mas tem as suas veleidades de cultura clássica independente; é o primeiro gentleman-scholar”.


Era o momento da Renascença (ou Reforma) Carolíngea; quanto a ela, CARPEAUX nos diz:

“Um rebento continental do humanismo anglo-saxônico é a ‘Renascença carolíngia’, assim chamada porque foi da iniciativa do imperador Carlos Magno. À ‘Renovatio Romani Imperii’ pela coroação romana, em 800, devia corresponder a ‘renovatio’ das letras clássicas.

Na residência imperial, em Aquisgrana, reuniu certo número de clérigos britânicos, em uma escola palaciana, a cujos trabalhos o imperador assistiu pessoalmente, para dar um exemplo de aplicação à corte e ao povo; o diretor da escola, Alcuíno, era o seu ministro da educação. Seria, porém, um erro atribuir a Carlos Magno o intuito de desinteressada divulgação de cultura. Alcuíno fora discípulo do arcebispo Egbert de York, e portanto discípulo indireto de Beda Venerabilis; foi mestre-escola e clérigo. Todas as suas obras têm fins didáticos, às vezes em forma de catecismo, e a Disputatio puerorum per interrogationes et responsiones um panorama vivo dos métodos pedagógicos, na escola de Aquisgrana. Liam-se muito os autores pagãos, Virgílio de preferência, por ser capaz de uma interpretação cristã. O fim imediato era a latinização dos povos germânicos; o verdadeiro objetivo da Renascença carolíngia era a conquista e dominação espiritual dos germanos pela Igreja romana: o amplo império de Carlos Magno, compreendendo a França e a Alemanha de hoje e grande parte da Itália, não tem outra unidade senão aquela romana.

Daí resulta não serem os efeitos da Renascença carolíngia muito profundos, mas extensos. À aplicação dos monges copistas da época carolíngia devemos quase todos os manuscritos conservados, de poetas e prosadores romanos. Promoviam-se os estudos clássicos nos conventos da Renânia, da Bélgica e França, em Corvey, Stavelot, Luxeuil. Mais para o Oriente, Sankt Gallen, na Suíça, torna-se o maior centro de estudos. 

Aí, o monge Ekkehard ( 973), o primeiro de quatro monges famosos com este nome, escreveu o poema latino Waltharius manu fortis, no qual a forma virgiliana e o espírito de guerreiro germânico se misturam com a nostalgia do monge pelo vasto mundo, lá fora. O Alcuíno de Sankt Gallen é Notker Labeo ( 1022), tradutor de Boécio e das Categoriae, de Aristóteles; sabemos que traduziu também as Bucolica, de Virgílio, e a Andria, de Terêncio, para os fins do ensino. O quarto Ekkehard ( 1060) escreveu, nos Casus sancti Galli, a crônica do convento: liturgia e pequenos incidentes da vida escolar, contatos (às vezes sedutores) com o mundo, lá fora, olhares para as montanhas suíças e o lago de Constança, invasão dos húngaros, resistência armada dos monges, devastação, fome, salvação dos manuscritos preciosos – o convento que ainda hoje existe, na cidade industrializada da Suíça, tem realmente um passado venerável.

A renascença carolíngia não sobreviveu ao seu fundador; fora uma tentativa muito intencional, demasiadamente racional. Mas os efeitos não se perderam de todo, porque correspondiam a uma realidade. Essa primeira renascença é a superestrutura, algo precária, do Império feudal, aliado ao Papado romano: edifício político-religioso, totalmente diferente do Império grego de Bizâncio e oposto a ele pela diferença linguística. Em Bizâncio, a tradição grega continuou, sem interrupção e, por isso, sem renascença. No Ocidente, a latinização dos bárbaros germânicos criou um novo mundo. De uma ‘renascença’ – é preciso chamar a atenção para o sentido literal da palavra – nasceu a Europa.

Quando o Papa Gregório IV introduziu na França, em 835, a festa romana de Todos os Santos, da comunhão entre os espíritos celestes e o gênero humano pela liturgia, sancionou a unidade latina do Ocidente; a matriz desse culto de todos os santos é a igreja Santa Maria ad Martyres, o antigo Panteão de todos os deuses romanos, em Roma”.

“Os fundamentos do edifício não estavam bem seguros. O inimigo, lá fora, vikings e húngaros, não teria sido tão perigoso, se não houvesse também o inimigo de dentro: o fato incontestável de a cristianização dos germanos ter ficado imperfeita. Os testemunhos são muitos. Gregório de Tours é um bispo da ‘época das migrações dos bárbaros’; ligado pelo sangue à aristocracia germânica, mas isento de preconceitos bárbaros, pela qualidade de clérigo e bispo da Igreja Romana. O seu latim é bárbaro e horrivelmente confuso; mas a sua fé nos milagres de São Martinho e dos santos da região (De vita patrum), que ele conheceu pessoalmente, é de uma ortodoxia impecável. O historiador dos merovíngios é fiel, digno de toda a confiança; só a sua filosofia da história é algo infantil. A História, segundo Gregório, serve para revelar os desígnios de Deus; o próprio Gregório foi testemunha de acontecimentos milagrosos, do fim miserável dos aristocratas ímpios e do triunfo dos bispos ortodoxos. Infelizmente, a frequência dos milagres é insuficiente. Uma verdadeira santa, como Radegonda, mecenas do poeta Venâncio Fortunato e fundadora do convento de Saint-Croix, em Poitiers, é personagem rara entre as figuras terríveis dos reis merovíngios Sigeberto e Quilperico, e das suas condignas esposas Brunilda e Fredegonda, que devastam a corte e o país, física e moralmente, por meio da guerra civil, pelo assassínio, veneno, incesto, estupro, mutilações, profanações, horrores de toda a espécie, dos quais a História dos Francos é o relato fiel, pitoresco e comovido de angústia. A conversão de Clóvis não adiantou nada. Os instintos selvagens dos bárbaros até foram exacerbados pelos requintes da decadência romana.

Mesmo entre os anglo-saxões, o cristianismo ainda não penetrara no fundo da alma. É testemunho disso o Lay of Beowulf, considerado hoje, por alguns, como o poema épico mais poderoso que já se escreveu nas ilhas britânicas. Embora o enredo seja de feição mitológica – a vitória de Beowulf sobre o gigante antropófago Grendel e a sua morte no momento da vitória sobre um dragão –, o fundo do poema é histórico, e os acontecimentos, despidos da transfiguração poética, podiam ser verificados na Dinamarca do século VI. O desconhecido autor do Beowulf, se não é cristão, pelo menos vive em país cristão e conhece a moral cristã: Beowulf, um daqueles ‘heróis da civilização’ que aparecem em muitos mitos primitivos, é ligeiramente decalcado sobre a figura do Cristo. Mas a profunda seriedade do poema não se deve ao Evangelho; decorre da força indomável de germanos que, mesmo quando convertidos, não se convertem.

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Na pasta de arquivos online, há PDFs de três dos autores tratados acima: São Beda, Alcuíno e Gregório de Tours; há também um PDF de uma versão em inglês moderno da lenda de Beowulf (em português, há uma adaptação da lenda disponível em: http://tinyurl.com/ozmeuk9. O link para a pasta de arquivos online é https://www.dropbox.com/home/Grupo%20de%20Estudo%20e%20Leitura%20dos%20Cl%C3%A1ssicos.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Literatura Bizantina e fundação da Europa

Enquanto a epopeia eclesiástica da liturgia romana acontecia dentro dos muros da Igreja, “lá fora, havia os bárbaros e a destruição”. Mas não só: havia também Bizâncio, no Oriente. Sobre sua “produção literária”, CARPEAUX no diz:

“A epopeia eclesiástica da liturgia decorreu só dentro dos muros. Lá fora, havia os bárbaros e a destruição. Do ponto de vista da história universal, essa visão não é inteiramente exata. Fora da Itália e das províncias devastadas havia um outro mundo, em condições diferentes: Bizâncio.

Por volta de 550, o Império grego, restaurado por Justiniano, fez um esforço surpreendente para reconquistar o mundo. Se esse esforço não se tivesse malogrado – as ruínas melancólicas de Ravena dão testemunho disso –, o Ocidente seria hoje grego e talvez eslavo. Porque falhou, Bizâncio não faz parte do mundo ocidental. A literatura bizantina só tem importância, para nós outros, como fonte de motivos e como contraste.

Em torno de Bizâncio existe um equívoco: a palavra emprega-se como sinônimo de estéreis discussões teológicas, de petrificação. Esse conceito não corresponde aos fatos históricos. A história bizantina é das mais movimentadas. Despendiam-se esforços, quase ininterruptos, para revivificar e continuar as tradições gregas, para opô-las às influências irresistíveis do Oriente e assimilar estas últimas. Durante muitos séculos, Bizâncio é um centro da civilização. O resultado daquelas lutas foi uma história desgraçada e uma literatura que não era apenas rica, mas também viva.

O primeiro encontro entre tradições gregas e influências orientais deu-se na hinografia bizantina. É o hinógrafo sírio Efrém que imita as formas da língua de Píndaro. É também sírio o hinógrafo Romanos, o maior poeta da literatura bizantina, esquecido depois tão inteiramente que só os estudiosos ocidentais do século XIX o redescobririam.

Por falta de tradições não é possível verificar a época em que Romanos viveu: indica-se, como data mais verossímil, o século VI. Romanos não parece muito original; talvez já encontrasse a sua forma, o kontakios, espécie de homilia metrificada de grande extensão. Os hinos de Romanos – nem todos autênticos – distinguem-se pela inspiração desenfreada, que às vezes rompe as formas hieráticas, transformando-se em balbuciação extática. Para formar idéia da poesia de Romanos, o leitor moderno pensará nas grandes odes de Claudel, imaginando-as cantadas nas ondas de luz do serviço noturno de Natal de uma catedral bizantina.

Se Romanos é realmente do século VI, a sua poesia faz parte do imponente movimento de renascença que o imperador Justiniano promoveu. As duas fases desse movimento aparecem na reconquista da África e Itália e no restabelecimento da ordem político-administrativa pelo Corpus Juris, e, por outro lado, na formação de partidos políticos em Bizâncio, chegando a explosões de guerra civil, e na corrupção pela qual a Imperatriz Teodora é responsabilizada. Procópio de Cesaréia é o historiador de ambos os lados: nas Historia varia descreveu os feitos militares e a cultura da corte imperial; nas Historia arcana, a corrupção infame da mesma corte e das mesmas pessoas que tinha elogiado.

A civilização bizantina apresentará sempre uma cabeça de Jano. É uma civilização de duas classes bem distintas: aqui, a corte, a aristocracia, o alto clero, munidos de todos os requintes da civilização madura e da decadência moral; ali, o povo chefiado pelos monges bárbaros e fanáticos, inculto, tumultuoso e ingênuo. Um poeta da alta sociedade, como Agathias, pode competir com as elegências do rococó francês; e o seu contemporâneo Johannes Malalas é o cronista popular, lido em voz alta nas esquinas, traduzido depois para muitas línguas, e primeiro fator da europeização dos eslavos. A literatura bizantina é vivíssima; e cumpre uma grande missão.

Tem a força de se renovar. No século VIII, Andréas Cretensis e Johannes Damascenus criam uma nova forma de poesia eclesiástica, o Cânon. Em 863, a Universidade é reaberta. Theodoros Studita, monge e chefe político, protagonista fanático na luta pela conservação das imagens nas igrejas, é um homem do povo; em Bizâncio, todos os movimentos populares tomam a feição superestrutural de guerras de religião. E como homem do povo, Theodoros é poeta realista, apresentando a vida monacal em cores diversas daquelas por que ela aparece nos ícones e na hagiografia.

Ouvimos até falar de grandes espetáculos populares nas igrejas, mas estamos mal informados quanto ao drama religioso e ao mimo popular e obsceno; contudo, o Cristus patiens do século XI é qualquer coisa como os mistérios da Paixão que se representarão nas grand’places das cidades medievais.

A vivacidade da literatura bizantina só se revela bem quando comparada com a situação no Ocidente. São os séculos IX, X, XI, realmente os ‘Dark Ages’ da historiografia convencional. Em Bizâncio, o eruditíssimo Photios († 897) reúne no Myrobiblion as suas anotações de inúmeros livros antigos, e esse herói da formação universitária é, ao mesmo tempo, patriarca de Bizâncio e adversário cismático da Santa Sé em Roma. O imperador Constantino Porfirogênito († 959) digna-se de escrever o De caerimoniis aulae, espécie de regulamento interno da corte, no qual se criam as ‘magnificências’, ‘excelências’, ‘ilustríssimos’ e ‘excelentíssimos’ da nossa burocracia e dos nossos envelopes. Konstantinos Michael Psellos († 1078), filósofo platônico e algo como um poeta parnasiano em meio dos tumultos na rua e das guerras com eslavos e mongóis, conta, na Chronographia, um século de história áulica, que ele viu de dentro: intrigas de eunucos, conspirações de generais, deposições e assassínios de imperadores, intervenções de mulheres e monges, todo esse caos de sabre, boudoir e liturgia, em meio da mais requintada arte de viver em palácios e morrer em conventos, ambos cheios dos mais luxuosos objetos de arte – os ocidentais, chegando a Constantinopla, ficavam boquiabertos [...]. [E]ntre os admiráveis palácios e igrejas, o povo miúdo vivacíssimo e turbulento [...] aparece nas poesias populares de Theodoros Prodromos († c. 1180), mendigo e parasito, boêmio e monge, excessivo e melancólico como um Villon bizantino.

A imaginação exuberante desse povo já havia criado uma legião de romances fantásticos, sobre Alexandre e Tróia, sobre Apolônio de Tiro e os Sete Sábios do Oriente, que irão invadir a imaginação ocidental, inspirando Chrétien de Troyes e os cronistas de Arthus, Lanzelot e Amadis. O povo de Bizâncio chegou a criar uma epopeia popular, um ciclo de romances à maneira espanhola, sobre o guerrilheiro Digenis Akritas, que lutou na fronteira contra os árabes, e que na imaginação dos eslavos balcânicos se irá transformar lentamente em herói popular contra os turcos.

Talvez o Ocidente inteiro tivese sido balcanizado, transformado em fronteira bárbara da civilização grega, se Bizâncio tivesse vencido. Mas o Ocidente não se bizantinizou nem se balcanizou. Foi preservado dos gregos pela invasão dos árabes, que fecharam os caminhos marítimos do Mediterrâneo, isolando Bizâncio de Roma. O Ocidente continuou latino. Nasceu a Europa”.

***

Sobre a fundação da Europa, nos diz CARPEAUX:

“O primeiro fato histórico da chamada ‘Idade Média’ é a fundação da Europa moderna: a delimitação das fronteiras que a definem, a definição das nações que a habitam, a proclamação da unidade que, apesar de tudo, a caracteriza.

A afirmação parece paradoxal, mas só enquanto aquela expressão ‘Idade Média’ é mantida. Pressupõe ela um esquema da história universal em forma de trinômio, no qual o membro médio, impermeável às influências do primeiro e vencido pelo terceiro, representa uma decadência intermediária, depois de uma catástrofe e antes de uma renascença. O esquema está hoje gravemente comprometido. Descobriram-se várias ‘renascenças’ durante a chamada ‘Idade Média’, das quais a ‘grande’ Renascença dos séculos XV e XVI é apenas a continuação: a renascença carolíngia do século IX, a renascença ‘franciscana’ dos séculos XII e XIII, a renascença escolástica ou francesa do século XIII, e ainda outra francesa, a dos nominalistas do século XIV; de modo que existe continuidade quase ininterrupta.

Por outro lado, a queda do Império romano não teve as consequências definitivas que se lhe atribuíam antigamente. Foi possível demonstrar que as instituições romanas sobreviveram em grande parte à catástrofe, e que a vida administrativa, econômica, social e intelectual dos primeiros séculos ‘medievais’, até, mais ou menos, a época carolíngia, não diferia essencialmente da vida nos últimos séculos da Antiguidade. Com essas duas verificações, o conceito ‘Idade Média’ perde o sentido, a separação dos três membros do trinômio histórico é substituída pela continuidade.

Mas a continuidade não é perfeita. Sobretudo quanto ao começo da época intermediária, não se consegue a abolição total do velho conceito. A grande interrupção é só deslocada, dos séculos V e VI para os séculos VII e VIII ou IX. Evidentemente, cumpre substituir a ‘catástrofe do Império’, como acontecimento decisivo, por qualquer outro acontecimento, menos espetacular, ocorrido dois ou três séculos depois, e que teve as consequências atribuídas antigamente à invasão dos bárbaros.

Com efeito, houve duas invasões bárbaras; após a primeira, iniciada no século IV, houve, nos séculos VIII e IX, a dos vikings germânicos do Norte e a dos húngaros do Oriente. Muitos monumentos e instituições que tinham sobrevivido à primeira invasão, foram então destruídos. Contudo, a segunda invasão foi transitória, não chegou ao estabelecimento dos bárbaros dentro das fronteiras tradicionais da Europa; e as consequências também só não teriam sido transitórias se vikings e húngaros não tivessem tido, sem o saberem, um aliado poderoso no Sul. Na mesma época, os árabes conquistaram a Espanha e a Sicília, invadiram a França e a Itália meridional e chegaram a ameaçar Roma. A famosa batalha de Poitiers, em 732, salvou o Norte da França, mas não conseguiu salvar a Provença; os árabes chegaram até Avignon. E já não era possível anular o acontecimento decisivo: o Mediterrâneo estava fechado.

A civilização antiga baseava-se no comércio livre entre os países mediterrâneos; e, considerando-se a precariedade dos transportes terrestres, eram os caminhos marítimos de importância vital. A separação do Império em duas partes, o Império ocidental de Roma e o oriental de Bizâncio, não prejudicou o comércio marítimo entre eles; nem o prejudicou a invasão dos bárbaros, que era uma invasão pelos caminhos terrestres. Nem a própria queda do Império ocidental teve, por isso, consequências definitivas. Só a ocupação de quase todas as costas do Mediterrâneo ocidental pelos árabes acabou com o comércio marítimo. As esperanças bizantinas de uma reconquista do Ocidente estavam frustradas. Interromperam-se, não completamente aliás, as relações entre o mundo grego e o mundo latino, e a possibilidade de uma Europa bizantina estava excluída para sempre.

O fechamento do Mediterrâneo interrompeu o comércio marítimo, e o comércio nos caminhos terrestres tornou-se mais precário do que nunca. A troca de produtos manufaturados cessou, e as aglomerações humanas viram-se obrigadas a produzir, em autarquia perfeita, aquilo de que precisavam. O Ocidente reagrarizou-se. Os latifúndios aristocráticos ficaram como únicos centros de atividade econômica. A sociedade hierarquizou-se em aristocratas e servos.

A organização política correspondente a essa organização hierárquica da sociedade é o feudalismo. O capital, excluído dos negócios de competição livre, imobilizou-se nas mãos da aristocracia rural e da Igreja, que também se feudalizou. Os chefes supremos desses dois organismos feudais, o rei dos francos e o papa, fizeram a aliança que substituiu, no Ocidente, o cesaropapismo bizantino. A aliança instável e insegura, aliás, responsável pelas evoluções futuras e inesperadas.

Aristocratas e servos não eram os únicos componentes dessa sociedade. Havia também vagabundos sem lar nem categoria social, e entre eles vão surgir os futuros negociantes e capitalistas. E havia mais uma classe, de caráter social menos definido: o clero. O alto clero, bispos e prelados, pertencentes, as mais das vezes, às famílias aristocráticas, já se estava feudalizando. O clero regular fundou centros independentes, com a estrutura econômica dos latifúndios, mas sem relação com o poder político: os grandes conventos. Daí surgiu uma classe de clérigos capazes de conceber e exprimir o espírito da época.

Economia sedentária, capital imobilizado e horizontes marítimos fechados produziram fatalmente uma concepção fechada do mundo. Um mundo espiritual, fechado dentro dos muros sólidos da disciplina monacal, comparáveis aos muros sólidos das igrejas-fortalezas do estilo românico. Dentro desses muros eclesiásticos havia uma vida independente: a vida da liturgia. Os cultores da liturgia são os monges. Em certos conventos europeus, o canto litúrgico não cessou um dia só, durante mais de mil anos; e quem assiste hoje uma missa solene, em um desses conventos, com os escolásticos tonsurados servindo ao abade e o coro cantando o cantochão gregoriano, compreende a situação insulada daqueles conventos, em meio de uma sociedade rudemente agrária e das tempestades produzidas pelas invasões dos bárbaros vikings e húngaros. A civilização da época é clerical; ou melhor, é monacal e escolar”.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Hinário e liturgia da Igreja romana medieval

CARPEAUX, então, havia distinguido três fases pelas quais passou a mentalidade cristã nos seus primeiros séculos: o período das catacumbas, o encontro com o mundo na Literatura Patrística e um novo recolhimento posterior para dentro dos muros das igrejas. Sto. Agostinho, para Carpeaux, é quem encerra a segunda dessas fases (a da Literatura Patrística) e inicia outra: “após a queda definitiva do Império, o cristianismo retira-se para dentro dos muros da Igreja, e a nova alma encontra a sua nova expressão: eleva-se o hino”. Quanto a ele, Carpeaux nos diz:

“O hinário da Igreja latina é a primeira obra da literatura moderna. Um espírito diferente do espírito da Antiguidade greco-romana cria formas independentes, cuja origem constitui um dos maiores problemas da historiografia literária [cf. a nota de rodapé mais adiante]. [...] A nova estrutura do latim falado é sintoma de uma nova alma que o fala. Um autor anônimo, a alma coletiva, inventa uma nova poesia, os versos de 4 diâmetros jâmbicos,[1] reunidos em estrofes de 4 linhas; primeiro exemplo da poesia ‘moderna’.

Os hinos mais antigos da Igreja atribuem-se a Ambrósio. Em geral, esta tradição foi abandonada pela crítica. Do corpus dos hinos ambrosianos, certamente a maior parte não pertence ao grande bispo de Milão. São de origem incerta os hinos para as horas canônicas, conservados no Breviário Romano: ‘Iam lucis orto sidere’, ‘Nunc sancte nobis Spiritus’, ‘Rector potens, verax Deus’, ‘Rerum Deus tenax vigor’, ‘Lucis creator optime’ e ‘Te lucis ante terminum’; também os hinos mais extensos, ‘Splendor paternae gloriae’, ‘Conditor alme siderum’ e ‘Jesu corona virginum’ não são autênticos. Enfim, é preciso privar Ambrósio da autoria do famoso cântico ‘Te Deum laudamus’. Ficam quando muito, 4 hinos autênticos: ‘Aeterne rerum conditor’, ‘Deus creator omnium’, ‘Iam surgit hora tertia’ e ‘Veni redemptor gentium’; revelam eles que o estoicismo – fonte, tantas vezes, de inspiração lírica – também acendeu no senador eclesiástico e ciceroniano seco a luz da poesia. Revela inspiração ambrosiana, embora indireta, o corpus inteiro dos hinos atribuídos outrora ao bispo; um dos símbolos mais freqüentes na autêntica poesia ambrosiana é o galo que, após a noite que pertence ao demônio, chama os fiéis para o ofício [...].

Como a aurora, cuja luz entra pelas vidraças da igreja, aparece nos hinos ambrosianos a luz de um novo dia, e com ele uma inovação estranhíssima, ‘moderna’, totalmente desconhecida da Antiguidade: a rima”.

CARPEAUX nos introduz então ao “maior poeta da antiga Igreja Romana”, PRUDÊNCIO:

“O verdadeiro Ambrósio da poesia latina cristã é o espanhol Prudêncio, o maior poeta da antiga Igreja Romana. Já foi comparado a Horácio, mas é mais sério, e a Píndaro, mas é mais humano. A grande epopeia alegórica da Psychomachia, a luta das virtudes contra as paixões, talvez interesse hoje menos do que as 14 odes do Peristephanon, em homenagem a 14 mártires espanhóis e africanos, espécie de epinícios cristãos.

Prudêncio, apesar das tentativas de poesia narrativa, é essencialmente um poeta lírico. Nas 12 odes do Cathemerinon, destinadas a certas horas do dia e a certas festas, encontra os acentos mais novos e mais universais [...]. Prudêncio é um dos raros poetas líricos que conseguiram criar um mundo completo de poesia.

A força desse classicismo eclesiástico revela-se na sua capacidade de sobreviver às piores tempestades. Mesmo na corte dos reis merovíngios, num ambiente de assassínio e incesto, um poeta habilíssimo para ocasiões oficiais sabe exprimir os mistérios do credo em símbolos poéticos de autêntica feição romana. Venâncio Fortunato sente o caminho do Cristo para a cruz como triunfo militar – ‘Vexilla Regis prodeunt, fulget crucis mysterium [Avançam os estandartes do Rei, fulgura o mistério da cruz]...’ – e a glória celeste da Virgem como apoteose de uma deusa – ‘O gloriosa domina, Excelsa super sidera [Ó gloriosa senhora, elevada acima dos céus]...’. A língua latina salvara o novo espírito poético”.

CARPEAUX então nos apresenta o grande Papa São GREGÓRIO MAGNO, dizendo:

“O novo mundo lírico encontrou apoio real no trabalho monástico e na organização eclesiástica: dois elementos herdados da realidade romana. Sobrevive espírito romano na regra da ordem de São Bento, na convivência de duro trabalho manual e estudo das letras clássicas; e em relação íntima com o espírito beneditino criou-se o grande papa, que também foi chamado ‘o último romano’ e que é fundador da Igreja medieval: Gregório Magno.

O grande papa aparece nos quadros medievais como simples monge, e isso lhe teria agradado; estimava a simplicidade do coração mais do que os talentos do espírito. Não fez nada para salvar os tesouros ameaçados da civilização clássica; ao contrário, tudo fez para substituir a leitura dos autores pagãos pelos escritores hagiográficos e edificantes, literatura para a qual ele contriuiu com o Liber dialogorum, vidas de santos itálicos, cheias de milagres incríveis, aparições de almas do outro mundo, castigos estranhos infligidos por Deus aos infiéis. É um monge supersticioso, um daqueles a quem ele prescreveu, no Liber regulae pastoralis, as normas de conduta e ação. Chamam-lhe ‘simplista’, ‘inimigo do humanismo’. Mas que valor poderiam ter as disciplinas humanistas para um homem cheio de angústias apocalípticas, que espera o fim do mundo? Essa expectativa impunha disciplina diferente; mas uma disciplina. As ansiedades apocalípticas não transformaram o Papa em quietista angustiado e passivo, e sim em homem de uma atividade enorme, que abrangeu, desde a Itália e a Espanha até a Inglaterra, o mundo inteiro conhecido. Era preciso salvar as almas, antes do cataclismo. E Gregório construiu um abrigo materno para as almas, a Igreja medieval, trabalhando como um monge de São Bento e governando como um ‘consul Dei’.

Era um espírito sóbrio, seco, prático; um romano. Estabilizou o mundo lírico dos hinólogos, construindo-lhes uma catedral invisível. A expressão literária dessa atividade realista e daquele espírito lírico conjugados está na liturgia que tem o nome do papa, embora ela tivesse origens mais remotas, e séculos posteriores, até o século XII, houvessem acrescentado muito à ‘liturgia gregoriana’”.

***

Antes de expor-nos seus comentários a respeito da liturgia romana medieval, CARPEAUX, para bem situá-la, desmistifica o famigerado conceito de “Idade das Trevas”:

“Foi William Robertson, historiógrafo inglês do século XVIII, quem criou a expressão ‘Dark Ages’, ou ‘séculos obscuros’, para qualificar a época em que a ‘Razão’ e as ‘boas letras clássicas’ não iluminaram o mundo. A expressão mudou várias vezes de sentido, estendendo-se à Idade Média inteira, ou aos séculos IX, X e XI, entre a queda do Império carolíngio e as Cruzadas, ou então aos séculos VI, VII e VIII.

Do ponto de vista da história literária, este último sentido da expressão é o mais razoável. A literatura romana acabara e as literaturas modernas ainda não tinham começado, nem em língua latina nem nas línguas nacionais. O vazio explica-se pela destruição geral, a perda de quase todos os bens materiais, inclusive os benefícios de uma administração organizada. Contudo, a relação entre o estado econômico-político e a situação cultural não pode ser formulada à maneira de uma equação algébrica. Antes dos ‘séculos obscuros’ e depois, as maiores devastações materiais não impediram o cultivo das letras, e a hinografia ambrosiana e pós-ambrosiana, literatura original e poderosa, constitui um primeiro desmentido àquele inglês incompreensivo. Outro desmentido, mais forte ainda, revela-se no estudo da liturgia romana. É ela, sem dúvida, uma obra literária, embora de um tipo diferente da literatura pagã e da literatura medieval; constitui uma literatura sui generis, não comparável a nenhuma outra, de modo que nem os critérios classicistas nem os critérios ‘modernos’ a ela se aplicam bem.

A mais geral e mais rigorosa das normas historiográficas exige a compreensão e apreciação de todos os fatos históricos segundo os cânones e critérios da própria época a que pertencem. Vista assim, a liturgia é alguma coisa mais do que um cerimonial eclesiástico; revela-se como obra literária, cujo valor, se bem que relacionado intimamente com o credo que exprime, não pode depender das convicções religiosas da crítica ou do crítico. A apreciação literária da liturgia exige, certamente, uma ‘suspension of disbelief’ da parte do descrente; mas a leitura compreensiva de Dante e Milton exige o mesmo de todos os que não são católicos florentinos ou puritanos ingleses. Após a ‘suspensão da descrença’, ninguém negará à liturgia o caráter de grande obra literária que marca os séculos VI e VII, iluminando-lhes a ‘obscuridade’”.

Agora propriamente sobre a liturgia romana medieval, CARPEAUX diz:

“A liturgia romana compõe-se de certo número de pequenos textos religiosos, reunidos conforme a atuação do sacerdote no altar. Alguns desses textos são iguais, permanentes, em todas as missas, particularmente o Cânon, que inclui o sacrifício e a transubstanciação; outros mudam conforme os domingos e a sua posição nas fases do ano eclesiástico; mais outros, segundo os dias dos santos cujo martírio ou translação se comemora. A origem romana da liturgia em vigor explica, nestes últimos casos, certa preferência dada aos santos locais da cidade de Roma, de modo que a ordem dos serviços religiosos nas igrejas romanas (‘igrejas de estação’) influi na composição da liturgia e do ano eclesiástico. Não é possível verificar com certeza quando, onde e por que todos aqueles textos foram redigidos e depois reunidos em ordem definitiva; as origens da liturgia assemelham-se à maneira como a filologia do século XIX imaginava a criação das ‘epopeias populares’, do Poema del Cid ou do Nibelungenlied, de autoria coletiva. O verdadeiro autor da liturgia é a Igreja.

Havia várias Igrejas e várias liturgias. Só no Oriente existem ou existiam dois grupos inteiros de liturgias, do tipo antioqueno e do tipo alexandrino, redigidas em grego ou em línguas asiáticas, e uma delas foi a primeira liturgia romana, hoje desaparecida. No Ocidente se introduziram variantes da forma oriental: a liturgia ambrosiana da Igreja de Milão; a liturgia moçárabe ou gótica, na Espanha; a liturgia céltica, nas ilhas britânicas; e, particularmente na França, a liturgia galicana, que influiu muito na formação definitiva da liturgia romana, para ceder, enfim, a esta, que suplantou, no Ocidente, todas as outras. A liturgia romana é um compromisso entre as liturgias orientais e ocidentais, e um compromisso extraordinariamente feliz.

A história da liturgia romana encontra-se no Liber pontificalis, a crônica dos primeiros papas, na correspondência papal e nos martiriológios romanos. As missas dos séculos V e VIII subsistem em três velhas coleções: o Sacramentarium Leonianum, o Sacramentarium Gelasianum e o Sacramentarium Gregorianum. Com a interpolação de elementos galicanos no Sacramentarium Gregorianum, na época e a pedido de Carlos Magno, terminou a evolução; na Idade Média fizeram-se apenas modificações sem importância.



O ‘Introibo ad altare Dei’, pórtico da missa, compõe-se de versículos bíblicos e da reza pela absolvição dos pecados; logo a linguagem da Vulgata (‘Judica me, Deus, et discerne causam meam de gente non sancta’) revela a sua qualidade litúrgica.

O início da missa liga-se ao ‘Confiteor’ por uma daquelas fórmulas que sempre voltam, lembrando menos um refrão do que as fórmulas feitas da epopeia homérica: ‘Gloria Patri et Filio et Spiritui Sancto, sicut erat in principio et nunc et semper, in saecula saeculorum. Amen’. É o ‘tema’ da missa.

Após o ‘Introitus’, que alude à festa do dia, Deus é aclamado em palavras gregas que formam uma espécie de tríptico: ‘Kyrie, eleison. Kyrie, eleison. Kyrie, eleison. Christe, eleison. Christe, eleison. Christe, eleison. Kyrie, eleison. Kyrie, eleison. Kyrie, eleison’. Trata-se, com efeito, de uma ‘aclamação’, como a receberam os imperadores de Bizâncio no momento de sentarem-se no trono.

Várias orações cercam a leitura solene da Epístola e do Evangelho, herança do serviço religioso na sinagoga, e entre elas inclui-se o ‘Gloria in excelsis Deo’..., como que abrindo o Céu sobre o altar.

A transição para o serviço de sacrifício é feita por uma das partes mais antigas da missa, o ato de mistura de vinho e água, simbolizando a união dos fiéis com Cristo: ‘Deus, qui humanae substantiae dignitatem mirabiliter condidisti, et mirabilius reformasti’, palavras nas quais a dignidade austera da língua latina se humilha no coletivismo dos ‘divinitatis consortes’.

Sobrevivem, na liturgia romana, apenas algumas palavras das epikleseis, das invocações do Espírito Santo, que nas liturgias gregas quase sufocam, pela sua grande extensão, o Cânon; a liturgia ocidental é de sobriedade romana. Quando, e isso acontece só uma vez, cede à pompa oriental, na Praefatio com o seu júbilo dos exércitos celestes, dos ‘Angeli, Dominationes, Potestates, Seraphim’, seguem-se, então, imediatamente, as palavras secas, de maior economia estilística, do Cânon, que é a parte genuinamente romana da missa latina, romana no sentido local: no momento em que o Cânon é recitado, qualquer altar católico, em qualquer parte do mundo, está idealmente em Roma.

No ‘Communicantes et memoriam venerantes’, a comemoração dos santos mencionam-se, além da Virgem e dos Apóstolos, somente Lino, Cleto, Clemente, Xisto e Cornélio, entre os primeiros sucessores de são Pedro no bispado romano; depois, o africano Cipriano e os mártires locais da cidade: Lourenço, Crisógono, João e Paulo, Cosme e Damião. Estamos em uma basílica dos primeiros séculos, perto das catacumbas.

E em outra oração muito antiga, no ‘Hanc igitur oblationem’, inseriu Gregório Magno as palavras ‘diesque nostro in tua pace disponas’, para lembrar a todos os séculos vindouros as atribulações da cidade de Roma no século VI, cercada pelos longobardos; palavras que são de uma atualidade permanente.

Após a transubstanciação, que se distingue pelo mais alto grau de expressão religiosa – o silêncio – pede-se a Cristo o “locum refrigerii, lucis et pacis’, para os ‘qui nos praecesserunt cum signo fideiet dormiunt in somno pacis’, e, já fora do Cânon, a graça para os que há pouco aclamaram o Kyrios e agora, em outro ‘tríptico’, se curvam perante o Deus sacrificado: ‘Agnus Dei, qui tollis peccata mundi: miserere nobis. Agnus Dei, qui tollis peccata mundi: miserere nobis. Agnus Dei, qui tollis peccata mundi: dona nobis pacem’.

O ciclo está fechado. O fim é a melodia largamente desenvolvida com que a Igreja despede os ‘circunstantes’ para voltarem à vida profana: ‘Ite, Missa est’.



A variedade das missas era, no começo, muito grande: cada dia tinha a sua missa especial, como acontece ainda nas semanas da quaresma, nas quais o mundo inteiro participa do culto nas ‘igrejas de estação’ da Urbs. Mas a sobriedade romana fez tudo para suprir as diversidades exuberantes. Distribuiu-se uma missa mais ou menos uniformizada pelas ‘estações do ano’, constituindo o ano eclesiástico a repetição simbólica da epopéia da história sacra e redenção do gênero humano: Advento, Rorate coeli, Natal, Epiphania, Cinzas, Invocabit, Reminiscere, Oculi, Laetare Jerusalem, Iudica, Palmarum, Semana Santa, Páscoa, Quasimodogeniti, Pentecostes, os 24 domingos, desde a Trindade até à leitura da profecia apocalíptica, Finados; e, de novo, Advento.

Afirmar que a liturgia é uma grande obra de arte implica esteticismo suspeito. Assim como a língua latina, durante muitos séculos de sobrevivência, se adaptou a estados de alma inteiramente novos, assim também a liturgia latina teve significação diferente em todas as épocas. A sua interpretação como drama religioso tem fundamento apenas na relação puramente histórica entre as cerimônias eclesiásticas e o teatro medieval, e na pompa religiosa do Barroco, quando a música e as artes plásticas colaboraram para transformar a missa solene em ‘obra de arte total’, no sentido de Wagner. Essa interpretação ajuda a sufocar a palavra; mas a palavra é a essência da liturgia. A liturgia é essencialmente uma composição literária, sem consideração de efeitos teatrais ou pictórico-musicais.

Talvez se entenda melhor o sentido da liturgia nas missas rezadas na alta madrugada, sem música, quando o sacerdote só murmura as palavras, e o silêncio absoluto em torno do sacrifício é menos efetuoso e mais profundo. É preciso ler e entender o texto – não basta ouvi-lo – para ‘sentire cum Ecclesia’.

Então a permanência de certos textos e as modificações de outros durante o ciclo do ano revelam-se como traços característicos de um ‘ciclo’ em sentido literário, de uma epopéia. A primeira e maior epopéia que o Ocidente criou. Como todas as grandes epopéias, a liturgia constitui um mundo completo – criação, nascimento, vida, morte e fim – dentro dos muros da igreja. Mundo fechado, cuja literatura é ‘exótica’ num sentido diferente do da pagã: literatura de outro mundo.

Para designar o ‘fora’, a Igreja Romana, tão zelosa do uso exclusivo da língua latina, admitiu uma expressão do latim vulgar: ‘fuori le mura’; várias igrejas romanas chamam-se assim. A expressão lembra aqueles ‘diesque nostros in tua pace disponas’ que foi inserto porque ‘fuori le mura’ não havia aquela paz. A epopeia eclesiástica da liturgia decorreu só dentro dos muros. Lá fora, havia os bárbaros e a destruição.

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[1] Jâmbico (ou iâmbico), na literatura grego-latina antiga, era um tipo de unidade de ritmo do verso (ou, do verso), este especificamente composto de uma sílaba curta seguida de uma sílaba longa. A partir do séc. II da era cristã, diz Carpeaux que “perde-se a segurança” na contagem das sílabas poéticas porque “os poetas latinos caem com freqüência em erros prosódicos, enganando-se com respeito à quantidade das sílabas; mas [era] sobre a quantidade das sílabas [que] se base[ava] a métrica greco-romana”. Passa-se portanto a procurar um “novo apoio” para a contagem rítmica dos versos (ou seja, prosódia), que é encontrado então “no acento da palavra falada”: “A liturgia cristã contribuiu para essa modificação essencial, pelo uso das antífonas com a sua prosódia diferente. Contudo, não está esclarecido se a verdadeira origem da nova métrica se encontra na evolução da língua latina ou na liturgia”.

Portanto, o jâmbico (ou iâmbico), a partir deste período, passou a ser a unidade de ritmo do verso composta não mais por uma sílaba curta seguida de uma longa, mas a composta de uma sílaba átona seguida de uma sílaba tônica (ou, uma fraca seguida de uma forte, dentro do conceito de sílaba poética que hoje nos é familiar). Nas epopéias greco-latinas, porém, era comum que se usasse o dáctilo como pé, ou seja, uma sílaba longa seguida de duas curtas, e não o iâmbico.

Na literatura greco-romana antiga, os versos geralmente eram compostos por 6 pés, ou seja, 6 agrupamentos silábicos, e a isso se chamava de hexâmetro. Se o quinto agrupamento (5º pé) desse hexâmetro fosse um dáctilo (longa-curta-curta), tinha-se portanto o conhecido hexâmetro dáctilo.

Assim como, portanto, o hexâmetro dáctilo era um verso de 6 pés cujo 5º devia ser de tipo dáctilo, um diâmetro iâmbico seria (salvo engano) um verso que termina com 2 pés de tipo iâmbico (2 x átona-tônica). Uma estrofe de quatro versos compostos, por sua vez, de quatro diâmetros iâmbicos, que Carpeaux diz ser o caso desses primeiros hinos da Igreja, seria (de novo: salvo engano) algo como:
               
            “Jesu corona virginum
            Quem Mater illa concipit
            Quae sola Virgo parturit
            Haec vota clemens accipe.
  
            Qui pascis inter lilia,
            septus choreis Virginum
            sponsas decorans gloria,
            sponsisque reddens praemia.

            Quocumque pergis, virgines
            sequuntur, atque laudibus
            post te canentes cursitant
            hymnosque dulces personant.

            Te deprecamur largius
            nostris adauge sensibus
            nescire prorsus omnia,
            corruptionis vulnera.

            Virtus, honor, laus, gloria,
            Deo Patri cum Filio,
            Sancto simul Paraclito
            In saeculorum saecula”.

                               (Jesu corona virginum, atribuído a Sto. Ambrósio.
                               Versão cantada em http://tinyurl.com/pmm2pe3)