CARPEAUX nos explicou, então, que a Europa não se
bizantinizou, e isso muito por conta da invasão dos árabes, que se instalaram
nos portos mediterrâneos impedindo que o comércio marítimo continuasse, o que
forçou uma reagrarização da Europa – ou seja, à extinção (praticamente) da
classe comerciante seguiu-se um retorno à divisão social entre aristocratas e
servos (sobravam uns poucos “homens livres”, que depois formariam novamente a
classe comerciante, mas que nesse período não têm relevância na ordem social
que se instaura; e sobrava também o clero). A essa organização social
corresponde a organização política que conhecemos como “feudalismo”, e os dois
grandes centros feudais organizavam-se em torno do Rei dos francos e do Papa. O
clero funcionava economicamente sobre uma estrutura também latifundiária, mas
que não tinha ligação com o poder político – esses centros são os conventos, nos quais a vida litúrgica se
mantinha intacta, assim como se mantinha toda uma vida intelectual e de
escrita, de modo que Carpeaux chega a afirmar que a (alta) civilização daquela
época “é clerical; ou melhor, é monacal e escolar”. Fora dos muros, continuava
“uma sociedade rudemente agrária” e as “tempestades produzidas pelas invasões dos
bárbaros vikings e húngaros”.
CARPEAUX, então, segue, dizendo:
“A civilização
da época é clerical; ou melhor, é monacal e escolar. O centro de irradiação
dessa civilização pedagógica foram as ilhas britânicas. Mas é preciso
distinguir. Os monges irlandeses revelaram toda a mobilidade da raça céltica.
Viajar – viajar, a pé, pelas florestas e pântanos, era, então, um trabalho bem
penoso – é para eles um meio de fazer vida ascética. Aparecem em toda a parte,
fundando conventos: Luxeuil, na França; Stavelot, na Bélgica; Sankt Gallen, na
Suíça; Bobbio, na Itália. Aos monges irlandeses, de espírito independente,
devem-se as bases de posteriores ‘renascenças’.
Os monges ingleses são mais sedentários;
gostam de dedicar-se, em modestas casas de campo em torno da igreja, ao estudo
das letras clássicas. Beda Venerabilis
é um monge assim; de erudição universal, mas de um horizonte intencionalmente
limitado à sua ilha, escreveu a Historia ecclesiastica gentis Anglorum,
equilibrada, razoável, patriótica sem excesso, clássica sem pedantismo. Beda
é o primeiro scholar inglês.
Entre os anglo-saxões, a
mentalidade cristiano-latina encontra-se com o vivo espírito religioso da raça,
produzindo uma literatura religiosa notável, em idioma germânico. Antes
do fim do século VII escreveu Caedmon
os seus famosos hinos, antecipação da poesia eclesiástica de Quarles e Cowper.
Do século seguinte é a Anglo-Saxon Genesis, paráfrase poética do primeiro
livro de Moisés, na qual a devoção bíblica se mistura com sentimento da
Natureza e certa compreensão do lado noturno, demoníaco, da Criação; Milton,
amigo de Iunius, que descobrira esses poemas, deve ter conhecido essa Genesis.
O último e maior dos poetas anglo-saxões é Cynewulf,
o autor de Christ e Elene, poemas narrativos nos quais a mistura de
religiosidade e gosto pela poesia descritiva já é, outra vez, tipicamente inglesa.
A literatura dos leigos anglo-saxões encontra um centro na corte do grande rei Alfredo, tradutor de Gregório
Magno, Beda e Boécio. Esta última é significativa: o rei é quase um santo, mas
tem as suas veleidades de cultura clássica independente; é o primeiro gentleman-scholar”.
Era o
momento da Renascença (ou Reforma) Carolíngea; quanto a ela, CARPEAUX nos diz:
“Um rebento
continental do humanismo anglo-saxônico é a ‘Renascença carolíngia’, assim
chamada porque foi da iniciativa do imperador Carlos Magno. À ‘Renovatio Romani Imperii’ pela coroação
romana, em 800, devia corresponder a ‘renovatio’
das letras clássicas.
Na residência imperial, em
Aquisgrana, reuniu certo número de clérigos britânicos, em uma escola
palaciana, a cujos trabalhos o imperador assistiu pessoalmente, para dar um
exemplo de aplicação à corte e ao povo; o diretor da escola, Alcuíno, era o seu ministro da educação.
Seria, porém, um erro atribuir a Carlos Magno o intuito de desinteressada
divulgação de cultura. Alcuíno fora discípulo do arcebispo Egbert de York, e
portanto discípulo indireto de Beda Venerabilis; foi mestre-escola e clérigo.
Todas as suas obras têm fins didáticos, às vezes em forma de catecismo,
e a Disputatio puerorum per interrogationes et responsiones dá um
panorama vivo dos métodos pedagógicos, na escola de Aquisgrana. Liam-se
muito os autores pagãos, Virgílio de preferência, por ser capaz de uma
interpretação cristã. O fim imediato era a latinização dos povos germânicos; o
verdadeiro objetivo da Renascença carolíngia era a conquista e dominação
espiritual dos germanos pela Igreja romana: o amplo império de Carlos Magno,
compreendendo a França e a Alemanha de hoje e grande parte da Itália, não tem
outra unidade senão aquela romana.
Daí resulta não serem os efeitos da
Renascença carolíngia muito profundos, mas extensos. À aplicação dos monges
copistas da época carolíngia devemos quase todos os manuscritos conservados, de
poetas e prosadores romanos. Promoviam-se os estudos clássicos nos conventos da
Renânia, da Bélgica e França, em Corvey, Stavelot, Luxeuil. Mais para o
Oriente, Sankt Gallen, na Suíça, torna-se o maior centro de estudos.
Aí, o monge Ekkehard († 973), o
primeiro de quatro monges famosos com este nome, escreveu o poema latino Waltharius
manu fortis, no qual a forma virgiliana e o espírito de guerreiro germânico
se misturam com a nostalgia do monge pelo vasto mundo, lá fora. O Alcuíno de
Sankt Gallen é Notker Labeo († 1022), tradutor de Boécio e das Categoriae,
de Aristóteles; sabemos que traduziu também as Bucolica, de Virgílio, e
a Andria, de Terêncio, para os fins do ensino. O quarto Ekkehard († 1060)
escreveu, nos Casus sancti Galli, a crônica do convento: liturgia e
pequenos incidentes da vida escolar, contatos (às vezes sedutores) com o mundo,
lá fora, olhares para as montanhas suíças e o lago de Constança, invasão dos húngaros,
resistência armada dos monges, devastação, fome, salvação dos manuscritos
preciosos – o convento que ainda hoje existe, na cidade industrializada da Suíça,
tem realmente um passado venerável.
A renascença carolíngia não
sobreviveu ao seu fundador; fora uma tentativa muito intencional,
demasiadamente racional. Mas os efeitos não se perderam de todo, porque
correspondiam a uma realidade. Essa primeira renascença é a superestrutura,
algo precária, do Império feudal, aliado ao Papado romano: edifício político-religioso,
totalmente diferente do Império grego de Bizâncio e oposto a ele pela diferença
linguística. Em Bizâncio, a tradição grega continuou, sem interrupção e, por
isso, sem renascença. No Ocidente, a latinização dos bárbaros germânicos
criou um novo mundo. De uma ‘renascença’ – é preciso chamar a atenção para o
sentido literal da palavra – nasceu a Europa.
Quando o Papa Gregório IV introduziu
na França, em 835, a festa romana de Todos os Santos, da comunhão entre os espíritos
celestes e o gênero humano pela liturgia, sancionou a unidade latina do Ocidente;
a matriz desse culto de todos os santos é a igreja Santa Maria ad Martyres, o
antigo Panteão de todos os deuses romanos, em Roma”.
“Os fundamentos do edifício não
estavam bem seguros. O inimigo, lá fora, vikings e húngaros, não teria
sido tão perigoso, se não houvesse também o inimigo de dentro: o fato
incontestável de a cristianização dos germanos ter ficado imperfeita. Os
testemunhos são muitos. Gregório de Tours
é um bispo da ‘época das migrações dos bárbaros’; ligado pelo sangue à
aristocracia germânica, mas isento de preconceitos bárbaros, pela qualidade de
clérigo e bispo da Igreja Romana. O seu latim é bárbaro e horrivelmente confuso;
mas a sua fé nos milagres de São Martinho e dos santos da região (De vita
patrum), que ele conheceu pessoalmente, é de uma ortodoxia impecável. O
historiador dos merovíngios é fiel, digno de toda a confiança; só a sua
filosofia da história é algo infantil. A História, segundo Gregório, serve para
revelar os desígnios de Deus; o próprio Gregório foi testemunha de
acontecimentos milagrosos, do fim miserável dos aristocratas ímpios e do
triunfo dos bispos ortodoxos. Infelizmente, a frequência dos milagres é
insuficiente. Uma verdadeira santa, como Radegonda, mecenas do poeta Venâncio
Fortunato e fundadora do convento de Saint-Croix, em Poitiers, é personagem
rara entre as figuras terríveis dos reis merovíngios Sigeberto e Quilperico, e
das suas condignas esposas Brunilda e Fredegonda, que devastam a corte e o país,
física e moralmente, por meio da guerra civil, pelo assassínio, veneno,
incesto, estupro, mutilações, profanações, horrores de toda a espécie, dos
quais a História dos Francos é o relato fiel, pitoresco e comovido de
angústia. A conversão de Clóvis não adiantou nada. Os instintos selvagens
dos bárbaros até foram exacerbados pelos requintes da decadência romana.
Mesmo entre os anglo-saxões, o
cristianismo ainda não penetrara no fundo da alma. É testemunho disso o Lay of Beowulf, considerado
hoje, por alguns, como o poema épico mais poderoso que já se escreveu nas ilhas
britânicas. Embora o enredo seja de feição mitológica – a vitória de Beowulf
sobre o gigante antropófago Grendel e a sua morte no momento da vitória sobre
um dragão –, o fundo do poema é histórico, e os acontecimentos, despidos da
transfiguração poética, podiam ser verificados na Dinamarca do século VI. O
desconhecido autor do Beowulf, se não é cristão, pelo menos vive em país
cristão e conhece a moral cristã: Beowulf, um daqueles ‘heróis
da civilização’ que aparecem em muitos mitos primitivos, é ligeiramente
decalcado sobre a figura do Cristo. Mas a profunda seriedade do poema não
se deve ao Evangelho; decorre da força indomável de germanos que, mesmo quando
convertidos, não se convertem.
***
Na pasta de arquivos online, há PDFs de três dos autores tratados acima: São Beda, Alcuíno e Gregório de Tours; há também um PDF de uma versão em inglês moderno da lenda de Beowulf (em português, há uma adaptação da lenda disponível em: http://tinyurl.com/ozmeuk9. O link para a pasta de arquivos online é https://www.dropbox.com/home/Grupo%20de%20Estudo%20e%20Leitura%20dos%20Cl%C3%A1ssicos.