Enfim, sobre
Sto. Agostinho, CARPEAUX nos diz o
seguinte:
“Chegou,
enfim, o momento em que a aliança entre a Igreja e as letras pagãs se rompeu:
na realidade, porque o Império caiu; na literatura, porque um espírito poderosíssimo
destruiu o equilíbrio.
Agostinho
é uma das maiores personalidades da literatura universal; muitos, porém, não o
considerarão ‘simpático’, e a culpa é dele mesmo. É o destino de todos os que, como
ele nas Confissões e mais tarde Rousseau e Strindberg, contaram com sinceridade
irreverente a própria vida: a mocidade devassa, o estágio entre os adeptos da
estranha seita dos maniqueus, os estudos de retórica e a vida literária, os
remorsos e angústias que duraram anos terríveis, enfim a conversão, a vocação
sacerdotal, o bispado, as lutas contra heréticos de toda a espécie, as vitórias
políticas; no fim da vida, Agostinho é ‘magnus
sacerdos’, o rei episcopal da África cristã, morrendo no momento em que a
sua província e a sua Igreja se desmoronavam sob os golpes dos bárbaros.
Este homem de atividades extraordinárias
é um introspectivo. ‘Surgunt indocti et
rapiunt regnum coelorum, nos autem, cum nostris litteris, mergimur in profundum’
[Os ignorantes elevam-se e raptam (conquistam) o reino dos céus; mas nós, com
nossos escritos, mergulhamos nas profundezas]. Eis o lema da sua vida ativa. E
o lema da sua vida contemplativa foi a advertência de procurar a Verdade dentro
da própria alma: ‘Noli foras ire, in te
ipsum redi; in interiore hominis habitat veritas’ [Não queiras ir para
fora, mas retorna para dentro de ti mesmo; é no interior do homem que habita a
Verdade].
Os efeitos dessa atitude ambígua são
fatalmente contraditórios. No mundo exterior, em que a anarquia destrói uma
civilização inteira, Agostinho sabe impor a sua autoridade espiritual de bispo,
sabe restabelecer a ordem. No mundo interior, sacodem-no ‘tormenta parturientis cordis mei’, reina a noite da anarquia espiritual,
iluminada pelos raios dolorosos da graça que se impõe.
Agostinho é um anarquista procurando
a ordem, sabendo que precisa nascer outra vez, como homem diferente. É da raça
dos ‘twice born’, à qual pertencem os
maiores gênios religiosos da Humanidade, um Paulo, um Lutero, um Pascal. Para
justificar perante Deus e os homens a sua natureza ambígua, o teólogo Agostinho
tem de responsabilizar uma força exterior e mais forte que as suas próprias forças:
a Graça, esse seu conceito teológico que será, depois, suscetível de tantas
interpretações ambíguas. Esse homem fortíssimo precisa sempre de um apoio de
fora: daí provém a sua confiança ilimitada na autoridade da Igreja Romana; daí
o seu susto em face da catástrofe do Império, daí a necessidade imperiosa de
substituir a derrotada ‘civitas terrena’
pela ‘civitas Dei’, objeto do seu
grande mito filosófico-histórico.
Agostinho está contra o Império e não
pode viver fora do Império: é um romano. O que o distinguiu, porém, dos outros
romanos foi ser um santo, e a demonstração disso está no ‘humano, humano demais’
das Confissões. Um santo não é um anjo, e sim um homem. Agostinho foi o
primeiro, em todos os tempos, a expor a sua humanidade fraca, falível e até
antipática, pelo lirismo exuberante e efusivo daquele grande livro. Para a
literatura universal, é o Colombo de um novo continente. Para a sua época, encerra
uma fase decisiva [a segunda das três distinguidas no começo; cf. post anterior] da evolução da mentalidade cristã,
e inicia outra fase: após a queda definitiva do Império, o cristianismo
retira-se para dentro dos muros da Igreja, e a nova alma encontra a sua
nova expressão: eleva-se o hino”.
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Na pasta de arquivos online, há um PDF com o texto completo das Confissões: https://www.dropbox.com/home/Grupo%20de%20Estudo%20e%20Leitura%20dos%20Cl%C3%A1ssicos/2%C2%BA%20semestre%20(2015)/Scans%20e%20PDFs