sexta-feira, 5 de junho de 2015

Fim de Roma: lista de obras e autores romanos

Assim como quando finalizamos a era grega, ao chegarmos ao final da era romana podemos extrair dos escritos de CARPEAUX uma lista de autores e obras que ele comenta em seu estudo e que podemos tomar por resumo do que melhor se escreveu naquela época. Abaixo, segue uma versão dessa lista, junto de alguns comentários do próprio CARPEAUX a respeito dos autores, ou seja, sua fortuna crítica:

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JÚLIO CÉSAR
“Não é escritor profissional”; “Só escreve para explicar os seus fins políticos”.
            Commentarii de Bello Gallico
            Commentarii de Bello Civili

VITRÚVIO POLIÃO
“É criador daquela arquitetura oficial que até hoje forma os centros das nossas capitais”.
            De architectura

SALÚSTIO
“Historiador inexato”; “estilista artificial e obscuro”; “de vez em quando atualíssimo”; “o maior observador da literatura romana”.
            De coniuratione Catilinae
            De Bello Iugurthino

CÍCERO
“Jornalista, advogado, político”; “é literato”; “exerceu uma influência universal”; “sua influência criou o tipo do homme de lettres”.
            Pro Milone
            Filípicas
            Academica
            Tusculanae disputationes
            Cato Maior seu De senectute (Da velhice)
            Laelius seu De amicitia (Da amizade)
            De officiis

LUCRÉCIO
“É um mestre”; “pretende ensinar, convencer”; “[nele] encontram-se quase todas as teorias do positivismo científico”; “seria um grande erudito, se não fosse um grande poeta”.
            De rerum natura

CATULO
“É um poeta muito humano”; “um poeta moderno”; “o primeiro que se comove com a paisagem”; “o leitor moderno [o] sente como um irmão”.
            Elegias

PROPÉRCIO
“A imitação dos modelos gregos sufoca-o”; “depois de havermos lido uma imitação genial de Propércio [...] as Elegias romanas de Goethe [...] descobrimos a flama da sua paixão”.
            Elegias

OVÍDIO
“Virtuose [...] Sabe fazer tudo”; “um artista elegante, um parnasiano”; “tornou-se o poeta mais lido da Idade Média”; “o mais moderno dos poetas da Antigüidade”.
            Amores
            Heroides
            Arte de amar
            Remedia amoris
            Metamorfoses
            Tristes
            Epistolae ex Ponto

HORÁCIO
“O maior entre os poetas menores: sensível sem sentimentalismo, alegre sem excesso, espirituoso sem prosaísmo”; “o mais completo dos poetas romanos”; “poet’s poet”.
            Odes
            Epodos
            Sátiras
            Epístolas
            Arte poética
            Ad Pisonem

TITO LÍVIO
“Impulso de idealizar a história romana”; “é inexato”; “salvou-se pelo idealismo”.
            Ab urbe condita

VIRGÍLIO
“Um artista incomparável do verso da música das palavras”; “é difícil imaginar perfeição maior que os versos virgilianos”; “é ‘pai do Ocidente’ num sentido muito amplo”.
            Geórgicas
            Bucólicas
            Eneida

LUCANO
“O primeiro estóico autêntico da literatura romana”; “poeta da grande cólera”; “o primeiro poeta que pensou em basear uma epopeia em acontecimentos históricos”.
            Farsália

SENÊCA
“O cristianismo, em sua atitude ética, foi profundamente influenciado pelo [seu] estoicismo”; “[sua] filosofia estóica é uma tentativa apaixonada de vencer a angústia que se exprime nas suas tragédias”.
            Diálogos
            Cartas a Lucílio
            Tragédias

QUINTILIANO
“O grande mestre-escola da literatura romana, sistematizador do gosto arcaizante da ‘oposição’ conservadora”.
            Instituto Oratoria

PETRÔNIO
“Nem sempre temos a coragem de dizer a verdade com o [seu] realismo [e] seu riso espirituoso”; “[sua] obra é de estranha e alegre atualidade”.
            Satyricon

JUVENAL
“Estóico duro só pretende dizer a verdade”; “encontra as palavras mais justas, mais definitivas”; “expressões de um profeta bíblico”; “a voz da consciência romana”.
            Sátiras

SUETÔNIO
“Conta crimes horrorosos [...] com a frieza de um autor de relatórios oficiais”; “sem vontade de mentir, nem sempre diz a verdade”.
            A vida dos Doze Césares

TÁCITO
“É burguês e intelectual, preocupado com a decadência da retórica”; “[seu tema é] o comportamento do indivíduo livre em face da tirania e do aviltamento geral”.
            Dialogus de oratoribus, sive de causis corruptae eloquentiae
            Germânia
            Histórias
            Anais

LUCIANO
“É um jornalista”; “[seu] mundo é um caos espiritual”; “é um grande humorista [...] mas não é um satírico, porque não conhece critério moral”.
            Deorum concilium
            De mercede conducti
            Menippus
            Icaromenippus
            Mortuorum dialogi

APULEIO
“É um grande literato”; “é uma figura da época”; “[é de] insinceridade inata [e] habilidade de narrador”.
            Metamorphoseon seu Asinus aureus

MARCO AURÉLIO
“Homem de ação e escritor ao mesmo tempo”; “último dos grandes individualistas romanos, anota os movimentos da sua alma solitária”; “sinceridade de um grande poeta”.
            Meditações

BOÉCIO
“Não pergunta pelo Império, está preocupado apenas com a sua própria alma”; “é individualista, é romano”; “o livro preferido dos espíritos estoicos de todos os tempos”.
            A consolação da filosofia
            De Trinitate
            Tratados de geometria e música

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O último romano: Boécio. Nona leitura: "A consolação da filosofia"

Sobre Boécio, “o último dos romanos”, CARPEAUX nos diz:

“No Ocidente, o compromisso entre cristianismo e civilização pagã foi concluído pelos inimigos apaixonados dessa civilização: Tertuliano, Ambrósio, Jerônimo, Agostinho, os Padres da Igreja latina. Mas estes já são homens ‘modernos’. O último romano cristão é Boécio.

Mas seria Boécio um cristão? Existem tratados teológicos de sua autoria: De Trinitate, Contra Eutychen et Nestorium, e outros. Mas nas obras mais importantes de Boécio, até na Consolatio Philosophiae, que trata de Deus e do destino humano, não se encontra a mínima alusão ao cristianismo. Boécio é romano pela atitude; pertenceu ao círculo ilustrado em que o poeta Sidônio Apolinário fez versos pitorescos, e em que Cassiodoro, acumulando tesouros de manuscritos na sua vila ‘Vivarium’, preparou os caminhos para a ordem de São Bento. São os monges da civilização pagã, monges do estoicismo. Boécio suportou assim a prisão, na qual escreveu a Consolatio, e a morte pelo carrasco germânico. Cristão, Boécio não o é, a não ser pela confissão dos lábios. Mas já é homem medieval. Com toda a razão, a Idade Média irá escolher os seus tratados sobre geometria e música como base do ensino superior e encontrará nos seus comentários aristotélicos e neoplatônicos o problema escolástico dos ‘Universalia’”.

Sobre sua clássica obra, “A consolação da filosofia”, diz CARPEAUX:

“Na Consolatio Philosophiae, um homem de mentalidade medieval acalma as suas angústias com as respostas da filosofia estoica. São perguntas de um monge medieval – sobre a injustiça no mundo e a Providência divina – mas a resposta é dada pelo aparecimento de uma visão, que se dá a conhecer com a ‘Philosophia’. Por isso, a Consolatio ficou sendo o livro preferido dos espíritos estoicos de todos os tempos, que não se sentiam sujeitos, no foro íntimo, à religião cristã: Boécio era o manual do laicismo entre os heréticos da Provença, entre os humanistas do Quattrocento, entre os eruditos do Barroco, que fugiram das guerras de religião.

Contudo, Boécio não é moderno, nem medieval, nem cristão herético, nem cristão sans phrase. Em face da catástrofe do mundo antigo, um grande cristão, Santo Agostinho, tinha justificado a obra da Providência divina por uma grandiosa filosofia da História, explicando o advento e a queda dos impérios. O romano Boécio não pergunta pelo Império. Está preocupado apenas com a sua própria alma. É individualista, é romano. A Consolatio Philosophiae é um pendant das Meditações de Marco Aurélio, apenas sem medo da morte. Na sua última hora – que foi a última hora de um mundo magnífico e que pereceu incompreensivelmente – Boécio pôde repetir as palavras com as quais o imperador-filósofo terminara livro e vida:

Ó homem, foste cidadão nesta grande cidade, e que importa se passaste aqui cinco anos ou trinta? O que é conforme à lei, não é duro para ninguém. Será tão terrível se a mesma Natureza que te mandou para esta cidade, agora te manda sair? É como se um ator fosse demitido pelo mesmo pretor que o chamou. ‘Mas não representei todos os cinco atos da peça e sim apenas três!’. Bem; mas, na vida, três atos já constituem uma peça completa, pois o fim é determinado por aquele que outro dia iniciou a representação e hoje a termina. Começo e fim não dependem de ti. Então, despede-te com ânimo sereno; ele, que te despede, também é sereno”.


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Na pasta de arquivos online, há um PDF do Livro III de "A consolação da filosofia" em português:
https://www.dropbox.com/home/Grupo%20de%20Estudo%20e%20Leitura%20dos%20Cl%C3%A1ssicos