quinta-feira, 29 de outubro de 2015

O "Nibelungenlied".

Os germânicos também fabricam sua própria epopéia “nacional”, trabalhada sobre lendas populares, resquícios de mitologia pagã, espírito guerreiro nórdico e enxertos de elementos do cristianismo. Quanto ao produto final desta mistura, o Nibelungenlied, CARPEAUX (que, vale a pena lembrar, era ele mesmo um germânico, que nasceu e viveu por 39 anos na Áustria) comenta o seguinte:

“A composição do Nibelungenlied é assimétrica. O texto atual foi redigido na Áustria, por volta de 1200, baseando-se, conforme Heusler,[1] numa lenda de Brunhild, de origem franco-renana, com vestígios da mitologia nórdica, e, por outro lado, em uma lenda dos burgundos Hagen e Gudrun, de origem austríaca e baseada em acontecimentos históricos; pode ser que essas duas lendas tenham existido antes, em forma de canções épicas – não o sabemos. A redação final foi feita por um poeta de gênio extraordinário, transformando os acontecimentos confusos da saga em série lógica de crimes, vinganças e expiações, acabando por um coro de lamentos; é a única obra ‘moderna’ em que existe algo do espírito da tragédia grega.

O autor anônimo empregou os processos da epopeia medieval, das ‘gestes’, transformando as personagens em cavaleiros feudais e damas de castelo. Mas não conseguiu bem essa transformação, porque se esqueceu de um elemento importante: o cristianismo. Fala-se de igrejas, e aparece até um capelão. Mas os Nibelungen, assim como os seus inimigos, não sabem nada do Evangelho. São cavaleiros cristãos, mas agem segundo o código dos heróis das sagas islandesas, e ninguém os repreende. Siegfried enganou Brunhild; mas continua como herói luminoso. Hagen assassinou, mas a sua morte em combate não é expiação, e sim resignação estóica em face do destino. Kriemhild vinga uma perfídia monstruosa, repetindo-a por sua vez, e no fim ela é, chorando e desesperando, uma espécie de Grande Mãe das mitologias primitivas, lamentando o fim da era dos deuses noturnos.

O Nibelungenlied é o canto fúnebre do mundo germânico pagão. Revela que no século XIII o cristianismo ainda não tinha penetrado a fundo na alma alemã. Antes, os alemães precisaram esquecer a sua epopeia nacional, que, apesar dos esforços dos germanistas e poetas modernos, não ressuscitou realmente. Só na época da Reforma se completou a cristianização dos alemães e começou a formar-se a nação alemã”.

***

Antes de dar prosseguimento aos comentários de CARPEAUX, parece necessário, para melhor compreendê-los, que se tenha em mente ao menos um resumo do enredo da epopéia; tentemos esboçá-lo, então:

Pode-se dividir a epopéia em duas partes: a primeira, com 19 capítulos, conta a história de Kriemhild, irmã virgem de Gunther, um dos três Reis dos Burgundos, e da sua união com o herói Siegfried, Príncipe de Xanten e Soberano dos Nibelungos; conta também do fim trágico dessa união pela morte dele e do conseqüente desejo de vingança dela. A segunda parte, com 20 capítulos, conta dos planos de vingança da viúva Kriemhild, de seu casamento com Átila (Etzel), Imperador dos Hunos, da viagem dos burgundos à corte de Átila e da morte de todos eles, inclusive de Kriemhild, a última dos Nibelungos, pelas mãos dos húngaros.

A primeira parte começa com um pequeno prólogo [cap. 1] dizendo que antigos contos já relataram maravilhas de grandes heróis – de suas vitórias e, em alguns casos, de suas mortes trágicas. Dessa vez, ouviríamos a história do nobre Rei Siegfried e de sua bela Kriemhild, que foi causa da morte de muitos e valentes cavaleiros.

Kriemhild cresceu na Borgonha com seus três irmãos Gunther, Gernot e Giselher. Seu pai, o Rei Dancrat, e sua mãe, a Rainha Uote, mantinham sua corte na cidade de Worms, próxima ao Reno. Dancrat, já velho, havia passado a soberania adiante para os três filhos. Somos introduzidos também a outro importante personagem dessa história: Hagen de Troneck, um valoroso guerreiro e vassalo do Rei.

Certa noite, Kriemhild tem um sonho estranho: um falcão alçava vôo, mas logo era despedaçado por duas águias. Ela conta isso à mãe, que interpreta o sonho dizendo que o falcão era um nobre cavaleiro, com quem ela se casaria, mas que logo seria tirado dela. A filha, então, nega a intenção de se casar e diz que permanecerá virgem para sempre, ao que a mãe responde com um alerta, pois “A verdadeira felicidade só vem com o amor de um homem”.

A profecia da mãe de fato se realiza. Com o tempo, Kriemhild realmente se casa com um nobre guerreiro, apenas para logo perdê-lo em virtude de uma traição. Sua vingança trouxe a morte a muitos homens, inclusive aos seus mais próximos escudeiros.

Somos então apresentados ao herói Siegfried [cap. 2], que cresceu na cidade de Xanten, também próxima ao Reno, onde hoje seria a Holanda. Ele era filho do Rei Siegmund e da Rainha Sieglind. O jovem príncipe torna-se cavaleiro em meio ao verão. Parte da celebração é uma missa, rezada para a maior glória de Deus. Depois disso, toma lugar um grande torneio: nunca antes houve tamanha aglomeração de tão bravos guerreiros. Seguiu-se um banquete descomunal, como menestréis e trovadores por toda a parte, que recebiam um pagamento generoso por seu serviço: cavalos, roupas e outros presentes eram distribuídos em abundância.

Com o passar do tempo [cap. 3-4], começa a se espalhar a fama da Princesa Kriemhild e de sua beleza e nobreza, e o Príncipe Siegfried resolve que ele definitivamente se casaria com essa mulher e mais nenhuma outra. Ele então parte para a Borgonha, acompanhado de doze guerreiros. Armados com as melhores armas e os mais fortes escudos, o cortejo causou uma grande impressão nos burgundos.

O nobre Hagen, ainda que nunca tivesse visto Siegfried, sabia quem ele era: “É o poderoso Siegfried. Não sei qual é o seu propósito aqui, mas devemos tratá-lo com respeito. Ele é o grande guerreiro que dizimou os nibelungos e tomou posse de seu tesouro, tão vasto que encheu uma centena de carruagens de transporte. Junto com todo o ouro e as preciosas pedras, no tesouro estava também a famosa espada Balmung. Alberich, o anão, guardião do tesouro dos nibelungos, tentou vingar seus antigos mestres atacando Siegfried, mas totalmente em vão. O bravo príncipe o venceu imediatamente, e tomou dele a mágica capa de invisibilidade. De ali em diante, Alberich jurou lealdade a Siegfried, o novo dono do tesouro dos nibelungos, e assim manteve seu posto de guardião.

Tempos depois, o grande herói ainda matou um dragão e banhou-se em seu sangue, o que o fez invencível perante a todas as armas – nenhum mortal poderia vencê-lo em combate. Devemos recebê-lo com todas as honras e buscar ser seus amigos”.

Siegfried aceitou a hospitalidade dos burgundos e viveu em sua corte por um ano inteiro, mas em nenhum momento durante esse período ele pôde ver a bela princesa Kriemhild.

A casa real dos burgundos freqüentemente realizava jogos e torneios, e Siegfried provou suas habilidades por várias vezes. Uma prova maior ainda veio com a notícia de que os saxões estavam planejando atacar os burgundos. Siegfried lutou por seus aliados e liderou o contra-ataque aos saxões, derrotando-os de uma vez por todas. Ele voltou à Borgonha para ser recebido como herói.

O Rei Dancrat então ordena [cap. 5] que se faça um grande festival para celebrar a vitória dos burgundos. Foi nessa ocasião que Siegfried vê pela primeira vez a bela Kriemhild, parada em sua janela, observando as festividades que aconteciam lá embaixo. Sua beleza irradiava incomparavelmente. Siegfried soube de cara que ela era a mulher com quem sempre sonhara. A partir de então, a cada dia ele encontrava um jeito de visitá-la; eles passavam muito tempo juntos e com grande prazer, mas também sentiam o presságio de grandes tragédias que logo viriam.

Neste ponto [cap. 6], entra na história uma nova personagem: a Rainha Brunhild, da Islândia. Rumores e sua beleza estonteante já haviam se espalhado pela cidade de Worms, e o Rei Gunther, um dos três filhos governantes de Dancrat, resolve que irá tê-la como sua esposa. No entanto, Brunhild era conhecida não só por sua beleza, mas também por sua força avassaladora, bem como por suas habilidades de atirar lanças, arremessar pedregulhos e saltar distâncias enormes. Todo homem que quisesse se casar com ela deveria vencê-la nessas três competições. O prêmio seria ela mesma, em pessoa; mas, em caso de derrota, o pretendente tinha sua cabeça cortada. Muitos já haviam desafiado a bela Rainha nessas competições, mas ninguém a havia derrotado ainda, e todos foram decapitados.

Gunther contou que gostaria de cortejar a bela Brunhild, mas Siegfried, que sabia quão poderosa ela era, deixou claro que não era uma boa idéia. Mas não havia meio de dissuadi-lo e, portanto, Siegfried, por lealdade ao seu futuro cunhado (assim ele desejava) concordou em ajudá-lo em sua perigosa empreitada. Preparando-se para a viagem, ele cuidadosamente embala a capa de invisibilidade que havia tirado de Alberich, o anão. A capa não apenas fazia com que seu usuário ficasse invisível, como também concedia a ele a força de doze homens. Com a ajuda de sua capa, ele de fato consegue ganhar Brunhild para seu amigo Gunther, mas chegaria o dia em que ele se arrependeria amargamente desse seu ato.

Um barco então é preparado para a levar o cortejo pelo alto mar e Siegfried, que conhecia muito bem aquelas águas, foi escolhido capitão. No décimo segundo dia de viagem, eles atracam na grande fortaleza de Isenstein. Siegfried reconhece que está nos domínios de Brunhild.

Cauteloso quanto aos grandes poderes da Rainha, Sigfried insiste em não ter sua identidade revelada [cap. 7-8]. Para preservar-se anônimo, portanto, ele se apresenta como um mero vassalo de Gunther. Brunhild recebe o cortejo com aparente cortesia, não sem deixar claro que, caso Gunther falhasse, a tripulação inteira que o acompanhava deveria morrer.

Enquanto se faziam as preparações para o fatídico evento, Siegried retorna secretamente ao barco e coloca sua capa mágica. Invisível, ele retorna ao grupo.

A primeira prova era arremessar o mais longe possível uma lança enorme, tão pesada que três cavaleiros juntos quase não conseguiam sequer levantá-la do chão. A Rainha, como quem abaixa para pegar uma moeda, empunha a lança e a arremessa na direção certeira de Gunther, que estava parado a uma boa distância dela. A lança esmigalha seu escudo e o transforma numa chuva de brilhantes. Siegried, invisível, mantinha-se parado ao lado de Gunther e lhe cochichava instruções no ouvido. Siegfried pega então a lança, de tal modo que parece que Gunther é quem o faz, e a arremessa de volta na direção de Brunhild. Ela recebe o golpe mortal com seu escudo, mas ele veio com tanta força que o impacto a fez tropeçar e cair.

Ao levantar, ela dá os parabéns a Gunther por seu retorno inesperadamente potente, e então se dirige à próxima prova. Pega do chão um pedregulho monstruoso e o arremessa a 24 jardas de distância, e então, com apenas um impulso, dá um salto para ainda mais longe. Gunther observa. Aproxima-se então do pedregulho, põe suas mãos nele, no entanto é Siegfried quem o levanta e o arremessa a uma distância ainda maior que a atingida por Brunhild. Em seqüência, ele agarra Gunther e dá um salto com ele, caindo mais adiante ainda que a pedra.

Brunhild, então, fica sem alternativas: aceita a proposta de casamento de Gunther [cap. 9] e retorna com ele para a Borgonha. Conforme a comitiva se aproximava de Worms, Siegfried é mandado na frente para anunciar o sucesso da aventura de Gunther.

Brunhild é recebida em Worms [cap. 10] com uma celebração digna de sua nobreza, fama e beleza: jogos, festas, banquetes e representações eram feitos em sua honra. A Rainha Uote e a princesa Kriemhild ficaram especialmente maravilhadas com a nova parente.

Dois casamentos reais eram então preparados: o da Rainha Brunhild da Islândia com o Rei Gunther da Borgonha, e o da princesa Kriemhild da Borgonha com o príncipe Siegfried de Xanten. Só que, para Brunhild, Siegfried não era da nobreza, mas apenas um vassalo. “Por que”, perguntava a seu futuro marido, “sua irmã está noiva de um simples vassalo?”. “Ele é um nobre Rei, tão nobre quanto eu”, respondia Gunther. “Tem enorme poder e abundante riqueza”. A resposta calava Brunhild, mas não tirava a suspeita de seu coração.

Os dois casamentos transcorreram com igual esplendor, mas as duas noites de núpcias não foram nem um pouco parecidas.

Brunhild, inquieta com suas suspeitas quanto a Siegfried e sua suposta nobreza, se recusa a ir para a cama com Gunther até que ele conte a ela tudo que sabia sobre Siegfried. Ele insiste em que não havia segredos a serem revelados e, sozinhos no quarto, ambos continuaram discutindo por um bom tempo. Ela o ameaçava, dizendo: “A não ser que me conte toda a verdade a respeito de Siegfried, permanecerei virgem”.

Gunther se enfurecia e, esquecendo-se da força descomunal de sua esposa, ele tenta agarrá-la à força. Ela resiste ao ataque com uma facilidade tremenda. Tirando o cinto que cingia seus quadris, ela amarra-o na parede por um prego, pelos pés e pelas mãos, e lá ele fica durante a noite inteira.

Na manhã seguinte, os maridos se encontram e cumprimentam e Gunther confessa que sua noite de núpcias não foi nem um pouco parecida com o que tinha em mente. Profundamente embaraçado, ele relata sua desventura ao seu novo cunhado, Siegfried, que, mais uma vez, concorda em ajudar seu infeliz parente. Naquela mesma noite, escondido pela capa de invisibilidade, Siegfried adentra o quarto de Gunther e Brunhild. “Pare de amassar meus lençóis”, ordenou a virgem Rainha, pensando que era Gunther quem a apalpava. Mas dessa vez não era ele. O invisível Siegfried luta com ela em sua cama e rapidamente a paralisa, até que finalmente ela se submete a Gunther.

Isso teria resolvido o assunto, mas Siegfried, ainda invisível, não se sabe se por orgulho ou por qualquer outra motivação, rouba um anel de ouro de um dos dedos da Rainha e também o cinto maravilhosamente bordado que cingia seus quadris, e só então deixa os dois dormindo juntos.

Mais tarde, Siegfried dá de presente a Kriemhild, como um troféu, os objetos que roubou de Brunhild. Mas chegaria o dia em que ele se arrependeria desse seu ato.

O tempo passa. Siegfried e Kriemhild retornam a Xanten [cap. 11]. Lá, seu velho pai nomeia-o Rei e como sua mãe havia morrido recentemente, sua mulher Kriemhild torna-se Rainha. Lá os vivem dez maravilhosos anos. Seu casamento foi abençoado com um filho, a quem eles deram o nome de Gunther. Em Worms, na Borgonha, Gunther e Brunhild também têm um filho, a quem dão o nome de Siegfried.

Enquanto isso [cap. 12], Brunhild ainda guarda a mesma e velha suspeita quanto ao marido de sua cunhada. Para ela, Siegfried era um mero vassalo de Gunther e portanto não teria o direito de se casar com Kriemhild. Sedenta por tirar essa cisma, ela propõe ao seu marido que Siegfried e Kriemhild sejam convidados para um grande festival da corte. Gunther, que nem suspeita dos motivos secretos de sua mulher, concorda e envia a eles o convite.

Siegfried e Kriemhild, então, retornam a Worms [cap. 13-14], onde são recebidos com grande pompa. No entanto, ao invés de tratar Kriemhild com falsa amizade, Brunhild logo revela sua impaciência e ambas passam a disputar quanto aos méritos de seus respectivos maridos. “Seu marido se diz Rei”, provoca Brunhild, “mas ele não passa de um vassalo do meu marido, um verdadeiro Rei”. Ao que Kriemhild retruca: “Seu marido não é nem rei nem homem. Seu pseudo-marido não foi nem homem o bastante para lhe domar na noite de núpcias. Foi o meu marido quem teve de fazer esse trabalho para ele!”. “Prove-o!” – Brunhild já espumava. “Pois provarei!”, disse Kriemhild, ao que acrescentou: “Eis aqui o anel que ele tirou de seu dedo naquela noite, e aqui está o cinto que ele retirou da sua cintura!”, e enquanto dizia isso, ela tirava de seu próprio dedo e de seus próprios quadris os troféus que Siegfried havia secretamente tomado de Brunhild naquela noite de núpcias.

Brunhild, sempre tão valente e tão orgulhosa, agora petrificada, dissolve-se em lágrimas. Ela pergunta a seu marido a respeito das coisas que sua irmã havia dito, mas nada que ele pudesse dizer confortaria seu coração. Ela então se retira.

Hagen, fiel vassalo do Rei Gunther, assiste a todos o episódio e, vendo o desespero de sua Rainha, jura vingança ao homem que, conforme entendia, era o responsável por essa dor: Siegfried. “Devo matá-lo”, promete Hagen.


[O resumo da história continua, em inglês, em: http://www.pitt.edu/~dash/nibelungenlied.html; por enquanto, só o traduzimos até este ponto. Outros links que podem interessar para a compreensão da história são os seguintes:

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De volta aos comentários de CARPEAUX, agora aptos a compreendê-los melhor, lemos o seguinte:

“Quanto ao Nibelungenlied, [Thomas] Carlyle exprimiu a opinião seguinte: ‘The city of Worms, had we a right imagination, ought to be as venerable to us moderns as any Thebes or Troy was to the ancients’ [A cidade de Worms, se tivéssemos a imaginação apropriada, deveria ser tão venerável a nós modernos como qualquer Tebas ou Tróia o foi para os antigos]. Desde então, popularizaram-se muitas traduções – o alemão medieval é uma língua muito diferente do alemão moderno e não imediatamente compreensível a leitores modernos; e o drama musical de Wagner conquistou o mundo. Mas a exigência de Carlyle não encontrou eco. Em parte, porque não se trata de Worms ou só de Worms, que aparece apenas na primeira parte do poema.

[...] A cena d[a] segunda parte fica localizada na Áustria, às margens do Danúbio, na corte do rei Etzel (Átila), que casou com Kriemhild, a viúva de Siegfried; ela o instigou a convidar os Nibelungen, Hagen e os outros assassinos de Siegfried, para mandar matá-los; e eles caem, apesar da culpa sinistra, com heroísmo sombrio, até grandioso. Compreende-se, no fim, o lamento de um mundo em agonia, em ‘nôt. Mas isso não tem nada com a cidade renana de Worms. Lá se perpetrara o assassínio, e o começo da primeira parte passa-se até na Islândia, onde Siegfried, por meio de um truque, conquistou Brunhild, entregando-a ao rei Gudrun [Gunther] e iniciando, assim, a série de perfídias, crimes e mortes, que o poema celebra

[...] A epopéia acaba com [...] o lamento geral de homens e mulheres ‘pela desgraça dos Nibelungen’. Nibelungen nôt’, ‘Desgraça dos Nibelungen’, seria o título adequado do poema, porque se refere à parte mais importante: à segunda”.



[1] O Nibelungenlied foi redigido entre 1190 e 1200, provavelmente na Áustria. O texto existe em três redações diferentes: os manuscritos A (Muenchen), B (St. Gallen) e C (Donaueschingen).

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

"El Cid".

CARPEAUX havia dito que as três primeiras criações importantes das literaturas nacionais européias foram a Canção de Rolando, o Poema de mío Cid e a saga do Nibelungenlied. Segundo ele, de acordo com as teorias mais definitivas e prováveis quanto à origem dessas epopéias, canções populares formaram a base dessas narrativas, que depois foram agrupadas e arranjadas por alguém já em forma de romance (no sentido espanhol do termo).

A Canção de Rolando é produto certo da geste de Charlemagne, conjunto de histórias sobre o grande Rei e Imperador franco; unindo-se a ela estão o Poema de mío Cid e o Nibelungelied, que, no entanto, CARPEAUX não atribui diretamente a nenhum dos três ciclos de epopéia medieval – parecem ter surgido “isoladamente”, de outras fontes. Sobre o Poema de mío Cid, CARPEAUX nos diz o seguinte:

“Ruy Díaz de Vivar, herói de lutas dos espanhóis contra os árabes, e de outras lutas de senhor feudal contra o seu rei, morreu em 1099; o Poema de mío Cid foi redigido por volta de 1140, isto é, imediatamente após os acontecimentos. Esse fato explica a exatidão geográfico-histórica do poema. Ao passo que na Chanson de Roland os acontecimentos históricos se transformam em façanhas sobre-humanas e a geografia é fabulosa, é possível acompanhar o Cid no mapa e nos anais. Tudo está certo, e [o teórico] Menéndez Pidal pôde estabelecer a relação mais íntima entre a epopéia e, por outro lado, a história e a sociedade espanholas do século XI.

Contudo, o Poema de mío Cid não é uma crônica ritmada. É – o que a Chanson de Roland não é – uma obra de arte, intencionalmente feita, da qual [o teórico] Dámaso Alonso pôde analisar o estilo. Não se compõe de ‘cantilènes’ anteriores, mas está dividido em três partes bem distintas, em composição simétrica: o conflito do herói com o poder real, e o seu desterro; o casamento das suas filhas com os infantes de Carrión; e a ação do Cid contra os genros covardes e traidores.

O que a imaginação popular considera como assunto principal do poema – a luta contra os árabes e a conquista de Valência – é apenas a conseqüência do seu desterro, e fica reduzido, à luz da análise da composição, a valor episódico. Resta explicar o forte acento patriótico-religioso da epopeia, no sentido do ‘patriotismo’ medieval. Menéndez Pidal afirma, com toda a razão, o fundo germânico, visigótico, da inspiração do poema. Não é possível, porém, negar a influência francesa.

A literatura francesa é a mais poderosa entre as medievais, irradiando influências por toda a parte. Assim como o exemplo da ‘geste de Charlemagne’ inspirou Geoffrey de Monmouth na transformação de confusas lendas célticas em romances de cavalaria feudal, assim a Chanson de Roland inspirou a um anônimo de Medinaceli [possível autor do poema] a idéia de cantar o Cid como herói da guerra nacional contra os infiéis. Nesse sentido, o Poema de mío Cid é uma ‘geste’; mas é uma gesta espanhola, ou antes – mais exatamente – uma gesta castelhana, ‘dura e sólida como os muros românicos de Ávila’.

O Cid do poema não tem nada de bravura romântica que a imaginação dos povos do norte dos Pirineus acredita encontrar na Espanha. É um castelhano sóbrio, leal, mas com vontade indomável de independência pessoal, com forte senso de justiça, cruel e violento às vezes, capaz de elevações sublimes, mas desconfiado e avarento como um camponês da sua terra. O poema está escrito como se o próprio Cid o tivesse feito: com realismo sóbrio, sem intervenção de forças sobrenaturais, e principalmente sem retórica.

‘De Castiella la gentil exidos somos acá,
Si con moros non lidiáremos, no nos darán el pan’.

Eis a chave do poema: o Cid luta contra os árabes para ganhar o pão, a vida, porque está desterrado. Em primeiro plano, é ele o revoltado feudal contra o rei, o primeiro revolucionário espanhol; por isso é intensamente popular, por isso têm ele e o seu poema todos os traços característicos do homem castelhano e da sua natureza. Mas o ambiente em que o poema foi redigido era o da Chanson de Roland, do feudalismo de cruzados. Deste modo, o herói popular transformou-se em herói nacional e herói de cruzada.

Assim como na Chanson de Roland, influências ‘clericais’, quer dizer, dos clérigos, transfiguraram as virtudes pouco cristãs do herói bárbaro. Roland e o Cid representam fases da cristianização pelas quais Egil Skallagrimsson nunca passara. A memória popular, porém, acertou bem: o Cid é a encarnação do caráter espanhol antigo, e o seu poema é o monumento mais notável – e mais antigo – da literatura espanhola”.

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Segue um breve resumo da trama do Poema de mío Cid:

A história pode ser dividida em três partes.

Na primeira parte – Cantar del destierro –, que vai dos versos 1 a 1084, conta-se a história do desterro de Rodrigo Diaz de Vivar. Ele foi exilado de Castilla, sua terra natal, pelo Rei Alfonso VI, acusado de roubo. Deve então abandonar sua esposa e suas filhas, que deixa sob os cuidados do abade do monastério de San Pedro de Cardeña. Ele inicia uma campanha militar, junto de seus fieis escudeiros, por terras não cristãs, e a cada vitória ele envia ao Rei que o exilou um presente, no intuito de conseguir dele seu perdão.

Na segunda parte da epopéia – Cantar de las bodas –, que vai dos versos 1085 a 2277, conta-se como o Campeador Rodrigo dirige-se a Valencia, terra tomada pelos mouros, e consegue conquistar a cidade. Então ele envia seu braço direito, Álvar Fáñez, com mais presentes para o Rei, e manda-o pedir ao Rei que permitisse que ele revesse sua família em Valencia. O Rei aceita o pedido e inclusive perdoa finalmente o exilado e suspende a punição que pesava sobre o cavaleiro e seus homens. Como recompensa ao Cid, suas filhas deveriam se casar com os príncipes de Carrión, e assim se elevariam à condição de nobres. O Rei pede que Rodrigo aceite essa condição, e ele aceita, ainda que não confiasse muito nos príncipes. As bodas são celebradas solenemente.

Na terceira e última parte do poema – Cantar de la afrenta de Corpes –, que vai dos versos 2278 a 3730, os príncipes revelam sua covardia e baixeza, fugindo da luta contra os árabes. Sentindo-se humilhados, decidem se vingar: empreendem uma viagem a Carrión com suas esposas e, ao chegar ao rochedo de Corpes, amarram-nas e as abandonam lá, desfalecendo. O Cid, ao saber-se assim desonrado, pede justiça ao Rei. Tudo culmina num duelo entre os soldados do Cid e os dos príncipes, do qual saem vencedores os do Cid. Os outros caem desonrados e os casamentos são anulados. A história então termina com a perspectiva de que as filhas de Rodrigo, o Cid, logo se casariam com os príncipes de Navarra e Aragón.

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Na falta de uma tradução portuguesa completa, há alguns links na internet que são úteis para compreender a história:

-- Filme “El Cid” (1961), com Charlton Heston e Sofia Loren, completo, em inglês, sem legendas: https://www.youtube.com/watch?v=LtuvHew1zi4

-- Vídeo de apresentação e contextualização do poema, em espanhol: https://www.youtube.com/watch?v=luJ42ikTcgQ

-- Vídeo com o resumo da trama, em espanhol: https://www.youtube.com/watch?v=hJ5AfNTA1qY

-- Artigo da Wikipedia espanhola sobre o poema: https://es.wikipedia.org/wiki/Cantar_de_mio_Cid

-- Tradução brasileira dos 190 primeiros versos da história (por María de la Concepción Piñero Valverde): http://hottopos.com/notand3/miocid.htm

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

13ª leitura: "A Canção de Rolando".

Quanto à Canção de Rolando, CARPEAUX nos diz:

"Segundo a opinião de certos críticos estrangeiros, os franceses exageram o valor da Chanson de Roland; a ‘geste’ não poderia comparar-se às grandes epopeias populares das outras nações. Essa opinião não se justifica. É verdade que a Chanson de Roland carece de arte consciente, de ‘poesia feita’; mas as outras epopeias populares estão no mesmo caso. O valor dessas produções reside na capacidade de representar uma nação, uma época. Com a nação francesa dos tempos posteriores, nação de patriotas cristãos, a Chanson de Roland pouco tem que ver. Roland e outros personagens revelam devoção cristã; porém esta não é motivo da sua ação. E patriotismo, no sentido moderno, a Idade Média não o conheceu.

A ‘Dulce France’, a palavra chave do poema, só revela que o último redator do texto atual conhecia Virgílio, mas o espírito da obra não é virgiliano. Os costumes que a epopeia apresenta são um grande anacronismo; os guerreiros do século VIII aparecem como cavaleiros feudais; está em contradição com isso o exagero, evidentemente primitivo, das forças físicas e das façanhas corporais. Sentimentos mais delicados não existem – além do forte sentimento de honra – e não há nenhum vestígio de psicologia.

Mas, com isso, o poema está perfeitamente caracterizado. Os costumes feudais e as expressões religiosas não passam de um verniz. A Chanson de Roland representa a época em que os franceses estavam mal cristianizados, e, por assim dizer, ainda não eram franceses. Eram francos. Assim como no Poema de mío Cid castelhano subsiste espírito visigótico, e assim como no Nibelungenlied alemão subsiste o espírito escandinavo, assim também a Chanson de Roland pertence à época da transição entre a barbaria germânica e a civilização francesa. A esta última deve simplesmente a existência. À primeira deve a grandeza sombria das cenas mais famosas, da despedida de Roland, e da sua morte.

A Chanson de Roland é, dentro da literatura francesa, como um monumento que está tão distante de nós que mal se lhe enxergam os contornos; a Idade Média considerava a epopeia como monumento do feudalismo valente, na luta contra os infiéis, e o romantismo considerava-a como monumento do patriotismo religioso. Na verdade, a Chanson de Roland é um dos grandes e um dos mais fortes poemas bárbaros da literatura universal. Em toda a literatura francesa posterior não existe, porém, tradição de barbaria, nem outra tradição épica nem, por isso, outra grande epopeia".

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Segue-se um breve resumo da trama da Canção de Rolando:

Carlos Magno, imperador franco cristão, luta contra os sarracenos (mouros) há sete anos na Espanha, mas uma praça ainda resiste: Saragoça, administrada pelo traiçoeiro rei sarraceno Marsílio. Marsílio e os seus nobres, certos de que a derrota é inevitável, desenvolvem um plano para ludibriar os francos. Enviados de Marsílio prometem que ele será vassalo de Carlos Magno e que se converterá ao Cristianismo, uma vez que o imperador tenha partido da Espanha. Mas o rei sarraceno não pensa em concretizar o prometido: tudo não passa de um plano rigorosamente elaborado de modo a fazer com que os francos saiam do seu território.

Carlos Magno e os seus vassalos estão cansados da guerra e não confiam na palavra de Marsílio. Entre eles estão o conde Rolando, sobrinho do rei, Oliveiros, amigo de Rolando, e Ganelão, padrasto de Rolando. Rolando aconselha a não confiar em Marsílio, enquanto Ganelão quer pôr termo à guerra já. Os conselheiros do imperador decidem então enviar uma embaixada a Saragoça, uma empreitada perigosa porque Marsílio já matou enviados anteriores. Vários cavaleiros se oferecem, inclusive Rolando, mas o imperador não lhes consente. Então Rolando sugere Ganelão como embaixador, e o rei concorda. Isso aumenta o terrível ódio que Ganelão sente contra Rolando.

Ganelão viaja a Saragoça. Num tenso encontro com Marsílio, os dois armam um plano para matar Rolando e os seus companheiros. Ganelão informa-os de que poderão matar o conde quando os francos retornem ao seu reino, pois fará com que Rolando esteja no comando da retaguarda. Ganelão promete aos sarracenos que, com o sobrinho morto, Carlos Magno perderá o ânimo para lutar.

Ao retornar com os francos, Ganelão convence-os das boas intenções de Marsílio e consegue que Rolando se converta no comandante da retaguarda. O conde é acompanhado por vinte mil homens e pelos chamados doze pares de França, os melhores cavaleiros francos. Entre estes estão Oliveiros, o grande amigo de Rolando, e o Arcebispo Turpino, que além de religioso é um grande guerreiro.

No passo de Roncesvales, a retaguarda é vítima de uma emboscada, sendo atacada por vários batalhões de sarracenos que ascendem, no total, a 400 milhares de homens. Oliveiros implora a Rolando que soe o olifante – uma trombeta – para avisar as tropas de Carlos Magno, mas Rolando recusa-se a fazê-lo. Os francos lutam valentemente; Rolando, com sua espada Durindana e seu cavalo Vigilante, é o que derrota mais inimigos. Mas os sarracenos são muitos e não há esperança para os cristãos. Quando já não há mais que sessenta francos, Rolando, usando as suas últimas forças, finalmente toca o olifante, para que Carlos Magno possa vir vingá-los. Oliveiros repreende-o pela sua arrogância: por não ter tocado antes o olifante, morrerão todos os nobres cavaleiros da retaguarda.

Finalmente morrem todos os francos. A alma de Rolando é levada ao céu por anjos e santos.

Carlos Magno e os seus homens, ao chegar, chocam-se com a visão do massacre. Ocorre então um milagre: o sol deixa de girar no céu, impedindo que anoiteça, e assim os sarracenos não podem esconder-se na escuridão. O exército franco persegue os infiéis até ao rio Ebro. Os que não morrem pela espada acabam por perecer afogados no rio.

Marsílio retorna a Saragoça, onde o ânimo dos muçulmanos é fraco. A sua mão direita foi decepada por Rolando durante a batalha. Baligante, poderoso emir da Babilônia, vem socorrer o seu vassalo. Em Roncesvales, onde os francos enterram e lamentam os seus mortos, ocorre uma batalha entre as forças do emir e dos francos. O clímax da luta é um combate entre Baligante e Carlos Magno em que, com ajuda divina, o rei franco derrota o emir. O exército franco toma Saragoça, destruindo todos os itens religiosos islâmicos e judaicos da cidade. Todos os habitantes da cidade devem então se converter ao catolicismo, exceto a rainha Bramimonda, que é levada ao país dos francos, para que aceite espontaneamente o cristianismo.

Em Aquisgrão, a capital dos francos, começa o julgamento de Ganelão. Pinabel, eloqüente parente de Ganelão, convence os jurados de que o réu traiu Rolando mas não o seu senhor, Carlos Magno. Thierry, um corajoso mas débil cavaleiro, argumenta que trair Rolando foi o mesmo que trair o rei, e desafia Pinabel a um combate. Durante a luta, com intervenção divina, Thierry vence. Ganelão é executado cruelmente: cada um dos seus braços e pernas são atados a um cavalo, que puxam cada um numa direção e assim o seu corpo é esquartejado. Outros parentes de Ganelão, que tinham ficado do seu lado na disputa, são também executados.

Bramimonda aceita o cristianismo e é batizada, e tudo parece estar finalmente em paz. Mas, durante a noite, aparece a Carlos Magno o anjo Gabriel num sonho, anunciando que deve partir para mais uma guerra contra os pagãos. Triste e cansado, mas obediente, Carlos Magno prepara-se para mais batalhas.


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Na pasta de arquivos online, encontra-se um PDF d'A Canção de Rolando traduzida: https://www.dropbox.com/home/Grupo%20de%20Estudo%20e%20Leitura%20dos%20Cl%C3%A1ssicos/2%C2%BA%20semestre%20(2015)/Scans%20e%20PDFs

Epopéias medievais: Canção de Rolando, Poema del mío Cid e Nibelungenlied.

Essa restauração iniciada dentro da Igreja acaba tomando lugar também fora dela e enfim tem início a cristianização definitiva de todo o Ocidente. CARPEAUX nos explica como isso acaba dando origem às epopéias medievais:

“Esse edifício [a ‘catedral escolástica’ do ‘homo liturgicus’] não está, de modo algum, separado do mundo profano. Ao contrário, só agora a Igreja é capaz de vencer os restos do paganismo germânico e penetrar até nos modos da vida profana. As catedrais levantam-se nas grand’places das cidades. Em todo o castelo há uma capela particular. Já com os cluniacenses, os ideais cristãos começam a modificar o ideal do guerreiro germânico; começa a esboçar-se o tipo do cavaleiro cristão, do futuro cruzado. As cabeças dessa gente estão cheias de lendas fantásticas, tradições pagãs, lembranças bélicas. Acontece, porém, que a elaboração literária desse mundo ideal é feita, principalmente, por clérigos. As origens da epopeia medieval ligam-se à cristianização definitiva do Ocidente.

A historiografia literária francesa distingue tradicionalmente três ciclos de epopeia medieval: o Ciclo de Carlos Magno, o Ciclo Bretão e o Ciclo Antigo.

O Ciclo de Carlos Magno, a ‘geste de Charlemagne’, tem origem histórica. A batalha de Roncesvales, contra os árabes espanhóis, em 15 de agosto de 778, nunca foi esquecida; tornou-se lendária. À memória do herói Rolando acrescentaram-se as lendas locais das igrejas, situadas nos caminhos da romaria para Santiago de Compostela, a qual tinha que passar por aqueles lugares de recordações bélicas. E os clérigos daquelas igrejas eram os que, conforme a hipótese de Bédier, elaboraram as lendas épicas. A intervenção de Carlos Magno e dos seus ‘pares’ naquela luta introduziu extensa matéria de outra proveniência, lembranças de guerras feudais francesas, na própria França e em todo o mundo; tradições germânicas, pedaços do ciclo bretão, lembranças das Cruzadas contribuíram também para a elaboração de numerosas gestas em torno da ‘geste de Charlemagne’. Guillaume d’Orange, Aimeri de Narbonne, Enfances Ogier, Berte aux grands pieds, Elie de Saint-Gilles, Fierabras pertencem mais diretamente ao ciclo central. Em Doon de Mayence, Renaud de Montauban, Raoul de Cambrai, Girart de Roussillon, Carlos Magno aparece menos simpático; porque essas gentes tratam da luta dos feudais contra o poder real, refletindo a época anterior à ‘Treuga Dei’. Enfim, em Enfances Godefroy, Chevalier au Cygne e na Chanson d’Antioche aparecem as Cruzadas. O conjunto, muito heterogêneo, constitui a ‘Geste française’.

O Ciclo Bretão, no qual se destacam os feitos do rei Artur e dos cavaleiros da Távola Redonda, as aventuras de Gavain, Lancelot, Tristão e Isolda, Parcifal e a Demanda do Santo Graal, tem origem céltica. Na Historia Britonum, de Nennius, obscuro historiador latino do século VIII, Artur aparece como herói dos celtas britânicos contra os invasores anglo-saxões. As versões autenticamente célticas da lenda estão no Mabinogion, coleção de narrações na língua do País de Gales; aqui a figura de Artur e dos cavaleiros já perdeu todo o caráter histórico, achando-se inteiramente transformados pela vivíssima imaginação céltica, nutrida de lendas de feiticeiros, fadas, florestas encantadas, castelos misteriosos, espectros. O Mabinogion, na sua forma atual, foi redigido só no século XIV; os seus heróis célticos já têm a feição de cavaleiros franco-normandos. Para o mundo não céltico, a mesma transformação foi operada pelo ‘historiador’ Geoffrey of Monmouth, cuja fantástica Historia regum Britanniae foi escrita entre 1135 e 1138; parece que Geoffrey pretendeu criar, intencionalmente, um pendant inglês da geste francesa. O último retoque, enfim, foi de natureza religiosa. Deu-se sentido cristão a certos episódios do ciclo, e como episódio final apareceu, em vez da viagem do rei Artur para a ilha de Avalun, paraíso dos celtas, a Demanda do Santo Graal e a transformação da Távola Redonda de grupo de cavaleiros aventurosos em irmandade de cruzados místicos.

O Ciclo Antigo representa a sobrevivência de certos temas greco-romanos, tratados de maneira anacrônica como se os heróis e heroínas de Homero e Virgílio fossem cavaleiros e damas medievais. A Idade Média ignorava as epopeias homéricas. Conheceu apenas duas abstrusas versões da decadência latina: as Ephemeris Belli Troiani, de um pretenso grego Dictys Cretensis, que foram traduzidas, no século IV da nossa era, pelo romano não menos obscuro Quintus Septimius; e a De excidio Troiae Historia, de um falso frígio Dares, do século V. Dictys e Dares distinguem-se de Homero, não só pelo valor literário, mas pelo ponto de vista. Tomam o partido dos troianos contra os gregos, e disso gostavam os cavaleiros e damas medievais, porque simpatizavam com o casal adulterino Páris e Helena. Motivos parecidos causaram a popularidade de um episódio da Eneida: Eneias e Dido. As versões romanescas das conquistas e viagens de Alexandre Magno satisfizeram a curiosidade geográfica. E um acaso incompreensível deixou sobreviver a fastidiosa Tebaida, de Estácio, da qual existem umas filhas medievais, igualmente feias. Em geral, a Idade Média viu os enredos de Homero e Virgílio pelos olhos de Ovídio; o interesse no assunto era principalmente erótico, de trovadores e clérigos enamorados; o Alexandre Magno medieval não era – como acontece, em geral, com a literatura de viagens – um herói de evasão, e sim um trânsfuga do mundo fechado dos castelos e das igrejas. Era difícil encontrar sentido religioso na ‘matière antique’. Em todo o caso, justificou-se o interesse por Troia e pelo troiano Eneias, por terem sido os troianos que fundaram Roma, mais tarde capital do cristianismo, de modo que as aventuras amorosas de Páris e Eneias estavam preestabelecidas no plano da Providência; e o aventuroso Alexandre Magno foi interpretado como símbolo do homem que viaja, sempre insatisfeito, até o fim do mundo, para encontrar a verdade divina. Essas interpretações não passaram de artifícios; não é possível negar que o ciclo antigo e a maneira de tratá-lo representaram uma irrupção de espírito leigo.
            
[...]

O problema [a questão das origens dos três ciclos e, portanto, da origem da literatura profana medieval] assemelha-se à questão homérica, e nasceu, realmente, com ela. O romantismo, grande amador da poesia popular e admirador do gênio coletivo, acreditava que no começo da literatura havia pequenos poemas populares, de autoria anônima, reunidos depois por ‘redatores’ pessoalmente sem importância; esta solução satisfez também a admiração dos românticos ao gênio instintivo e o desprezo à epopeia intencionalmente feita do classicismo. Deste modo, Lachmann extraiu do Nibelungenlied 20 ‘canções originais’, que teriam constituído a base da redação posterior. Fauriel fez a mesma operação cirúrgica com a Chanson de Roland, e Durán com o Poema del Cid. Enfim, Gaston Paris organizou a teoria definitiva: no começo havia canções curtas, ‘cantilènes’ de origem popular, que foram reunidas, depois, em epopeias coerentes, as quais, afinal, se dissolveram em ‘romances’, no sentido espanhol da palavra romance.

[...] Como qualidades essenciais da lenda [oral] primitiva notam-se a falta de começo e o fim do enredo e o gosto da repetição, que são também qualidades típicas da epopeia primitiva, das ‘gestes’. As canções revelam-se como produtos de decomposição, e as grandes ‘epopeias populares’ medievais, que têm começo e fim, apresentam-se como obras de poetas individuais, se bem que anônimos.

A primeira vítima das novas teorias é a classificação tradicional das ‘gestes’ em três ciclos. Quanto ao espírito que preside ao tratamento dos assuntos, é perfeitamente o mesmo nas obras dos três ciclos, de modo que a classificação conforme os assuntos não se justifica. Quanto aos próprios assuntos, o ciclo bretão relaciona-se pouco com as lendas célticas que lhe serviram de base, e o ciclo antigo nada tem que ver com os modelos greco-romanos: as ‘gestes’ desses dois ciclos são criações tardias e artificiais. Resta a ‘geste de Charlemagne’, que, no entanto, não está isolada na Europa; o Poema de mío Cid e o Nibelungenlied estão ao lado da Chanson de Roland. São as três primeiras criações importantes das literaturas nacionais da Europa".

Reforma cluniacense: poemas em seqüências e novos hinos litúrgicos.

Vimos, com CARPEAUX, que tipo de gente invadia e assolava o Ocidente a partir do século IX, e como a devastação era também moral e chegava inclusive aos claustros e monastérios. Mas “a reação veio da Igreja”:

“A reação veio da Igreja. Em 910, Odo fundou o convento de Cluny. A regularidade da disciplina litúrgica suplantou a anarquia espiritual. A ascese venceu a sujeira física, a intemperança da mesa, a sexualidade desordenada. Às portas do convento aboliu-se a propriedade, com todas as consequências. A reforma cluniacense limitava-se no começo a certos conventos e ‘igrejas locais’. Roma permanecia inacessível. Mas conquistaram-se, enfim, países inteiros, constituindo-se ilhas moralizadas dentro da Igreja universal, as igrejas nacionais da França e da Alemanha, das quais os bispos eram cluniacenses: os bispados constituíram os fundamentos da reorganização administrativa. Surgiram, assim, o Estado francês dos Capetingos e o Império romano-alemão dos três imperadores de nome Otto. E a ideia da reforma se universalizou. Otto I ainda é um rei alemão; Otto II já tem grandes projetos na Itália; Otto III julga-se César e passa a residir em Roma. Com o universalismo, era incompatível a guerra civil generalizada. Os monges promovem uma reação democrática do povo contra os feudais, exaltam a ideia da ‘Treuga Dei’, do armistício pelo amor de Deus. Em 989, conclui-se o pacto de paz geral, em Charroux; em 1000, em Poitiers, a guerra feudal é solenemente abolida. Aparecem outros monges, os cistercienses, e substituem a guerra pelo trabalho. Com a pacificação e a reconquista da terra devastada ressuscita o conceito da tradição, que recebe, de maneira muito especial, a sanção eclesiástica: o abade Odilo de Cluny ( 1048) institui o dia santo de Finados, a primeira festa da Igreja ocidental, que não se conheceu antes no Oriente grego; é a festa da comunhão que liga os vivos aos mortos. Nas almas, nutridas de liturgia, constrói-se um mundo completo, hierárquico, o mundo dos três reinos: inferno, purgatório, paraíso. A pobre vida terrestre é superada por outra vida, espiritual e mais real. É o único momento da história ocidental moderna que tem semelhança, se bem que longínqua, com o ‘realismo’ grego, capaz de construir mundos ideais e de transformá-los em realidades.

Os criadores da nova mentalidade tinham, às vezes, plena consciência disso. Citam-se agora as palavras com as quais Rabanus Maurus exaltou a gramática ‘imperecível’, quase como se fosse um sacramento: ‘Grammata sola carent fato, fortemque repellunt’ [A palavra escrita, por si só, zomba do destino]. Se fosse apenas disciplina escolar, seria a repetição do experimento carolíngio; e, com efeito, houve, no tempo dos três imperadores de nome Otto, uma tentativa de ‘renascença otoniana’; a religiosa alemã Hrotswith escreveu oito comédias hagiográficas, em estilo terenciano, primeira tentativa do humanismo cristão para criar um teatro. Desta vez, porém, já não se trata só de exercícios gramaticais de mestres-escolas. Agora, a gramática rege a língua dos anjos. A nova literatura começa com um coro interminável de hinos.

Os hinos mais antigos são quase todos anônimos, como a própria liturgia, da qual chegam a fazer parte. A tradição atribui a Rabanus Maurus (856) o hino que clama pelo advento do Espírito Santo: ‘Veni, creator Spiritus [...] Accende lumen sensibus: Infunde amorem cordibus’; outros hinos são atribuídos a Venâncio Fortunato, Teodulfo de Orléans, a nomes famosos do passado. Lugar mais preciso na história literária está reservado a Notker Balbulus ( 912), que, ao que parece, inventou uma nova forma litúrgica: a sequência, poemas em versículos, espécie de verso livre; entre os autores – quase sempre incertos – de sequências, aparece o polígrafo Hermanus Contractus ( 1054), que teria sido autor do ‘Salve, Regina misericordiae’, em que os versos ‘[...] ad te clamamus, exsules filii Hevae, ad te suspiramus gementes et flentes in hac lacrymarum valle’ [a vós clamamos, os degradados filhos de Eva, a vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas] exprimem a angústia da época.

A sequência esconde, no seu aparente prosaísmo, certos artifícios, quase claudelianos: cadências que se repetem, assonâncias e aliterações, rimas internas. Quando o hino se renovou, sob a influência das ‘renascenças’ sucessivas, introduziram-se aqueles artifícios em uma linguagem mais clássica, produzindo uma forma nova de poesia, arcaica e ‘moderna’ ao mesmo tempo. São desse tipo as poesias de Petrus Damiani. Este asceta furioso, que se flagela duramente a si mesmo, não é menos rigoroso para com o mundo; inimigo feroz do papa Gregório VII, porque o poder corrompe a alma, e inimigo feroz da filosofia e das letras, porque a cultura corrompe o espírito. Mas esta alma ‘naturalmente conventual’ é também a de um político, no mais alto sentido da palavra, a de um diretor de consciências e homens; e quando o inimigo das letras pretende exprimir as suas ânsias apocalípticas, a obsessão da morte e do demônio e do último dia do mundo, então lhe ocorrem versos de uma precisão romana: ‘Hora novissima, tempora pessima sunt, vigelemus. Ecce minaciter imminet arbiter ile supremus’ [Esta é a última hora, o pior dos tempos – vigiemos. Eis que é iminente a ameaça do juízo final].

A aliança de asceta visionário e político ascético volta na alma mais suave de Bernardo de Clairvaux [São Bernardo de Claraval]. Também ele é inimigo do poder corruptor, mas o livro De consideratione, dirigido ao papa Eugênio III, ensina uma política do amor. O rigorismo moral de Bernardo, pregador extático sobre o Cântico dos Cânticos, acaba na contemplação e na união mística, e o seu ascetismo cultural, de que deu testemunho na luta inquisitorial contra Abelardo, é susceptível de efusões líricas. Os hinos, que a tradição lhe atribuiu, não lhe pertencem. Mas nasceram no seu ambiente, porque são do seu espírito o ardor místico do ‘Jesu dulcis memoria’ e a emoção dolorosa do ‘Salve, caput cruentatum’.

São os hinos mais sentidos, mais líricos da Igreja latina. São quase da mesma época numerosos outros hinos, anônimos todos, e na maior parte marianos, que se assemelham bastante aos hinos pseudobernardinos, distinguindo-se, no entanto, pelo lirismo mais musical. A modificação parece puramente literária; mas é de uma importância muito maior.

Os hinos litúrgicos caracterizam-se pela estranha magia da língua: vogais longas, com preferência pelos ditongos; determinadas combinações de sons; recitativos monótonos; a melodia do verso encontra-se ‘abaixo do limiar dos conceitos intelectuais’, como se as palavras fossem feitas para acomodar-se a um ritmo já preexistente, à inaudível harmonia das esferas. Essa magia linguística é que exprime as angústias apocalípticas e júbilos angélicos do ‘homo cluniacensis’. Pela magia linguística, o hino representa, em forma adequada, certos sentimentos religiosos – a ‘majestas tremenda’, o ‘amor mystic’ – que são, por si mesmos, inefáveis: os sentimentos ‘numinosos’ [do espírito, ou inspirados].

Esse traço característico é comum aos hinos de todas as religiões em certa fase da sua evolução: ressoam hinos assim nos templos budistas e nas sinagogas. O hino litúrgico em língua latina distingue-se pelo fato de conservar a capacidade de exprimir conteúdos dogmáticos de maneira muito precisa. Naqueles hinos marianos, porém, o ritmo prejudica o conteúdo, transformando o dogma mariano em substrato de uma poesia quase erótica; as cesuras não são determinadas pela lógica da frase, e sim pela música do verso; um elemento musical, a rima, rompe o equilíbrio métrico; os símbolos, que pretendem representar o dogma, tornam-se independentes.

O grande poeta dessa fase é Adam de S. Victor. Grande poeta exatamente porque o valor da sua poesia reside mais nas qualidades literárias do que nas qualidades litúrgicas. O poeta do ‘Salve, mater salvatoris’ e do ‘Ave, virgo singularis’ [foi] um criador de símbolos: inventou ou popularizou um conjunto impressionante de metáforas mariológicas. Desde Adam de St. Victor, toda a gente entende imediatamente o ‘Rosa mystica / Turris Davidica / Turris ebúrnea / Domus aurea / Foederis arca / Janua coeli / Stella matutina’ [Rosa mística / Torre de David / Torre de marfim / Casa de ouro / Arca da aliança / Porta do céu / Estrela da manhã]. Adam de St. Victor moveu esses símbolos por meio de uma arte extraordinária do verso, de troqueus de sete ou oito sílabas, fortemente ritmadas e suavemente rimadas. Arte quase parnasiana, que devia acabar, nos seus imitadores, em rotina.

O hino salvou-se pela influência do grande movimento religioso que deu ímpeto inédito aos sentimentos numinosos do franciscanismo. Mas a última palavra coube à solidificação do sentimento: a volta ao conteúdo dogmático sem o qual o hino da Igreja perderia a sua significação especial. Por isso, o maior teólogo dogmático da Igreja romana também é o seu maior poeta litúrgico: Tomás de Aquino. Os seus poucos hinos – ‘Pangue, lingua, gloriosi’ e ‘Lauda, Sion, Salvatorem’ – reúnem duas qualidades que raramente se encontram na poesia lírica: a maior precisão e a maior musicalidade. Seria possível comentar esses hinos como se fossem tratados teológicos sobre a eucaristia; ao mesmo tempo, versos como ‘Tantum ergo sacramentum / Veneremur cernui / Et antiquum documentum / Novo cedat ritui: / Praestet fides supplementum / Sensuum defectui’ [Este grande sacramento / inclinados, adoremos; / os antigos manuscritos / dão lugar a novo rito. / Sirva a fé de complemento / na fraqueza dos sentidos] ficam indelevelmente na memória, o que é um dos critérios mais seguros da grande poesia.

Esta última fase da hinografia latina tem, outra vez, importância mais do que literária. A Igreja romana não adotou o ‘credo ut intelligam’, algo fideísta, de santo Anselmo, mas tomou como base do seu dogma a filosofia aristotélica. Também não foi aos discípulos entusiasmados de são Francisco, e sim aos filhos eruditos de são Domingos, que coube a tarefa de construir a catedral da escolástica. Quando ficou pronto o edifício, que o ‘homo liturgicus’ de Cluny começara, era um sistema filosófico e uma instituição jurídica”.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Edda: literatura nórdica. 12ª leitura: "Hávamál", Edda poética.

CARPEAUX havia dito que os germanos, “mesmo quando convertidos, não se convertem”: “Com efeito, os germanos não esqueceram”. E prossegue, explicando as raízes do paganismo germânico na mitologia e nas sagas nórdicas:

“O paganismo germânico tem vida mais tenaz entre a gente do Norte. Lá, produz uma literatura notável em língua islandesa. O seu monumento principal é a Edda, vasta compilação de canções mitológico-heroicas e poemas didáticos, estes últimos muito ao gosto dos germanos. Os poemas heróicos da Edda, como a Helgakvida, a Sigurdakvida, a Helreid Brynhildar e a Godrunarvida, foram outrora considerados como as fontes mais antigas da Nibelungensaga alemã; são, porém, versões posteriores da lenda semi-histórica dos germanos do Sul, adaptadas apenas ao espírito nórdico, que aparece nu e cru nos poemas mitológicos da Edda: Voeluspa, Balders draumar, Hávamál, Grimnismál, Voelundarkvida. Constituem verdadeiro compêndio da mitologia nórdica, de Odin, Thor, Frigg, Freyr, Loki, sem a mínima influência cristã, sem as atenuantes poéticas e subentendidos filosóficos, que o romantismo e Wagner introduziram nas suas versões anacrônicas. O mesmo estado de espírito informa a historiografia de Snorri Sturluson; a sua Heimskringla é uma coleção admirável das sagas históricas que se referem aos primeiros séculos da história noruego-islandesa.

As ‘sagas’ constituem uma literatura sui generis. São relatos rigorosamente históricos, às vezes biográficos, que ora tratam da biografia de uma família inteira, ora se limitam à autobiografia: Eyrbyggjasaga, Egilssaga, Grettissaga, Vapnfridngasaga e outras contam a vida dos conquistadores noruegueses da Islândia, a partir do século IX, as lutas sangrentas entre famílias inimigas e irmãos que se odeiam, as batalhas e os extermínios, os adultérios e as vinganças, a vida miserável dos proscritos, as aventuras além-mar, na Inglaterra e, mais tarde, até no Mediterrâneo, na Palestina, na Groenlândia. A Njálssaga, sobretudo, oferece um panorama completo dessa gente terrível. O estilo do relato é lacônico, abrupto como a linguagem deles. Não se sente a mínima influência do latim, fato que torna as sagas fenômeno único na literatura medieval. Aquela gente também não é cristã, embora batizada. Não dissimula as paixões violentas, os atos vergonhosos, nem sente remorsos. Do ponto de vista cristão, são monstros.

Os eclesiásticos sabiam de tudo isso. No século XI, o cônego e historiador Adamus de Bremen assusta-se com os germanos setentrionais: não conhecem pudor nem clemência nem arrependimento, a sua aparente ascese só serve para fortalecer o corpo. Até o seu famoso heroísmo é apenas egoísmo e ambição do poder, e a sua lealdade uma lenda; estão sempre dispostos a trair amigos e inimigos. E, apesar de tudo, o cônego devoto não dissimula certa admiração por esses monstros inconversíveis; ele mesmo também é germano. As suas observações constituiriam o melhor comentário moralista à vida e obra de Egil Skallagrimsson; viking violento, que esteve na Noruega e na Inglaterra, expulso e vitorioso, batido e indomável, cruel e nobre, avarento e infame, e um grande poeta. Escrevendo ‘lausar visur’, poemas em louvor de reis e guerreiros, não hesitou em prostituir, por dinheiro, a sua poesia. Em outras canções exulta com as suas conquistas eróticas, que mais se asssemelham a estupros, e as suas vitórias, que se parecem com assassínios. Mas era um amigo fiel e amava os seus, e, quando lhe morreu o filho, escreveu a admirável canção fúnebre ‘Sanatorrek’, furioso contra o injusto deus Odin e conformando-se com o destino, em resignação estoica. Nenhuma tradução para línguas modernas é capaz de exprimir a força primitiva dos versos finais, em que o poeta, de espírito indomável, espera a própria morte e – até – a eternidade do Inferno. [...] Pois Egil é o menos ‘europeu’ de todos os poetas da história literária europeia: reflete, nos seus poemas, uma primitivíssima economia, quase de silvícolas, e ignora o cristianismo.

O grande monumento dessa mentalidade é a historia dos dinamarqueses de Saxo Grammaticus. Chamaram-lhe ‘Grammaticus’ porque foi cônego da catedral de Roeskild e escreveu em latim. Com efeito, o núcleo da sua obra é a biografia do seu admirado arcebispo Absalon, biografia que constitui, hoje, o livro XIV dos Gesta Danorum; pois Saxo continuou a narração histórica além da morte do arcebispo, e, mais tarde, escreveu os 13 livros de introdução, da história antiga e lendária dos dinamarqueses. O latim da obra é duro, mas não bárbaro. Saxo pertence ao número dos humanistas do século XIII da estirpe de Johannes de Salisbury e Alexander de Hales; é o Lívio de sua nação. Como Lívio, inclui as lendas nacionais na sua história, não por credulidade, mas por orgulho. Todas as tradições do Norte lhe são familiares, inclusive as norueguesas; e entre os personagens pseudo-históricos aparece um pálido príncipe da Dinamarca, Amleth. O humanista também se revela nos metros antigos que empregou para traduzir as velhas canções. Só uma parte do tesouro comum da civilização daquele tempo foi completamente esquecida pelo cônego da catedral de Roeskilde: o cristianismo. O nome de Deus não aparece no Gesta Danorum".

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"Eis a gente que invadiu, a partir do século IX, o Ocidente, devastando-o de maneira impiedosa. Foi então que muitas instituições e monumentos da Antigüidade, já transformados em meros resíduos inúteis pela reagrarização, desapareceram. Foi então que se apagaram os últimos vestígios da vida urbana. Quando os habitantes voltaram para a Treves devastada, contentaram-se com barracas de madeira, colocadas sobre os restos dos muros romanos. Muitas cidades sobreviveram apenas como nomes de comarcas rurais. Criminosos, sectários e feiticeiros residiam nas ruínas do Forum Romanum, que a imaginação popular povoava com espectros e fantasmas, últimas encarnações dos deuses pagãos. Administração não havia; a usurpação dos senhores feudais era lei; famílias, castelos e aldeias fizeram guerras privadas; a Fehde ou feud – não existe palavra neolatina para designar o estado de guerra civil permanente entre os feudais – era fenômeno geral. A devastação moral não parou às portas da Igreja Romana, governada por assassinos e suas concubinas: a famosa ‘pornocracia’ romana do século X. A fome chegou a extremos do canibalismo”.

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Na pasta de arquivos online, há 3 Edda disponíveis, traduzidos: https://www.dropbox.com/home/Grupo%20de%20Estudo%20e%20Leitura%20dos%20Cl%C3%A1ssicos/2%C2%BA%20semestre%20(2015)/Scans%20e%20PDFs